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O estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro e a

Sabendo-se da triste realidade em que se encontra o sistema penitenciário brasileiro, é de suma importância que se verifique e se aprofundem estudos acerca de possibilidades que poderiam tornar a vida no cárcere mais digna e compatível com direitos fundamentais. De outra banda, alternativas para reduzir o número de prisões desnecessárias também são essenciais. São esses, portanto, os principais intuitos da audiência de custódia.

Antes mesmo de se ater à explanação específica sobre audiência de custódia, tema deste trabalho, é fundamental que se entenda o que é, e como surgiu o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro. Pois bem.

O estado de coisas inconstitucional, segundo Dirley da Cunha Junior (2015), tem origem nas decisões da Corte Constitucional Colombiana (CCC), diante da constatação de violações generalizadas, contínuas e sistemáticas de direitos fundamentais. Tem por finalidade a construção de soluções estruturais voltadas à superação desse lamentável quadro de violação massiva de direitos das populações vulneráveis em face das omissões do poder público.

Complementa Cunha Junior (2015) que o caso de coisas inconstitucional colombiano adveio de uma demanda movida por diversos professores que tiveram seus direitos previdenciários violados. E, no Brasil, como já referido no subtítulo do presente capítulo, o estado de coisas inconstitucional alegado foi do sistema penitenciário.

Conforme notícia divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça, em junho de 2014, a população carcerária brasileira chegava a 711.463 pessoas, considerando presos provisórios e aqueles que se encontravam em prisão domiciliar. Afirma a pesquisa que diante da utilização da prisão domiciliar, a porcentagem de presos provisórios (sem condenação penal transitada em julgado) passou de 41% para 32%. Mesmo assim, os números são assustadores, quando se recorda do caráter

excepcional da prisão preventiva, diante da entrada em vigor da Lei nº 12.403, em junho de 2011.

Ainda, com base nos dados (CNJ, 2014), verifica-se que o Brasil possui déficit de aproximadamente 206.307 vagas e de 354.244 vagas, quando computada a prisão domiciliar. Assim sendo, segundo informações do Centro Internacional de Estudos Prisionais (ICPS), o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, ultrapassando a Rússia, que possuía, em 2014, 337.991 presos, incluindo aqueles em prisão domiciliar.

O que se percebe, de forma clara, é a utilização em massa da prisão preventiva. E, com o propósito não apenas de reduzir esses números, mas também de se buscar melhores condições estruturais, que visem o respeito aos direitos fundamentais dos presos, e que, evidentemente caem na inércia diante de ações e omissões dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal, é que foi introduzida a realização da Audiência de Custódia, ainda que não regulamentada pela legislação processual penal brasileira, mas que está em trâmite, em razão da Resolução n.º 213/2015, do CNJ.

Segundo Patrícia Borges Moura (2016), considerando-se a realidade caótica dos estabelecimentos prisionais do Brasil, que apresenta não só problemas estruturais, entre os quais podem ser citadas as condições insalubres e desumanas em que se encontram os encarcerados, somados aos casos de tortura e de maus- tratos a que ficam expostos, a medida deve também ser considerada dentre as políticas públicas de segurança, a partir de uma perspectiva de promover garantias para todos, e não só numa perspectiva individualista e seletiva. O enfoque é visualizar a segurança pública como um direito de todos e, para tanto, é importante “ter os olhos voltados” para os tão negligenciados ambientes prisionais.

Outrossim, cabe ressaltar os inúmeros casos de motins e rebeliões que já aconteceram nas casas prisionais brasileiras. Exemplo é o ocorrido no ano de 2013 no Complexo Penitenciário de Pedrinhas no Maranhão, que, em consequência de motim, desencadeou inúmeros atos de violência.

Segundo Daniel Mello (2016), em notícia divulgada em março de 2016, apesar

de decorridos dois anos desse ponto de inflexão da história de Pedrinhas, mesmo que reduzido o número de assassinatos, o quadro de tortura e maus-tratos generalizado ainda se mantém.

Percebe-se, dessa forma, que a superlotação dos presídios é um fator influente nas práticas prisionais conflituosas. Com esse intuito, dentre os demais já citados, é que, em setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal deferiu liminarmente, em apreciação à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 347/DF, o Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) do sistema carcerário brasileiro. A ação foi ajuizada pelo PSOL – Partido Socialismo e Liberdade, cuja argumentação foi justamente o “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro. (BRASIL, 2015)

Dentre os fundamentos da APF 347/DF (BRASIL, 2015), restou elencado que:

[...] a superlotação e as condições degradantes do sistema prisional configuram o cenário fático incompatível com a Constituição Federal, presente a ofensa a diversos preceitos fundamentais consideradas a dignidade da pessoa humana, a vedação de tortura e de tratamento desumano, o direito de acesso à Justiça e os direitos sociais à saúde, educação, trabalho e segurança dos presos.

Da mesma maneira, conforme Moura (2016), foi destacado que a União não estaria repassando aos Estados recursos do FUNPEN – Fundo Penitenciário Nacional -, apesar de disponíveis e necessários à melhoria do quadro. Verifica-se, então, que mesmo prevista em pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário, a audiência de custódia não vinha sendo observada pelo Poder Judiciário.

O que se nota, finalmente, é que o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro serviu de preceito para a impetração da APF 347/2016 e, consequentemente, para destacar alguns pontos já previstos na legislação processual penal brasileira. Exemplo disso são as medidas cautelares diversas ao cárcere que restam elencadas no artigo 319, do Código de Processo Penal brasileiro, que, infelizmente, apesar de instituídos com a alteração legislativa de 2011, ainda são pouco usadas, em comparação com a prisão preventiva.

Digno de nota, como referido anteriormente, que apesar de ainda não prevista pela lei processual penal brasileira, a audiência de custódia está conjecturada em pactos internacionais devidamente ratificados pelo Brasil.

Primeiramente, cabe aludir acerca de tais tratados, que a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), também é conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, tendo sido assinado na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em 22 de novembro de 1969, na cidade de San José, na Costa Rica, com base em informações da Presidência da República (BRASIL, 2015).

O Brasil ratificou a CADH através do Decreto Legislativo nº 27, de 28 de maio de 1992, e a promulgou pelo Decreto Executivo nº 678, de 6 de novembro de 1992, assumindo a obrigação internacional de segurar o seu cumprimento, a ela vinculando-se, conforme Nereu Giacomolli (apud NUNES; TÓPOR, 2015). Impõe, portanto, o artigo 7.5, do referido Pacto:

[...] toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.

No mesmo sentido, o artigo 9.3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aduz que:

[...] qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se for necessário, para a execução da sentença.

Assinala-se, então, que o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, apesar de ter sido aprovado em 1966, entrou em vigor apenas dez anos depois, em

1976, tendo em vista que somente nesta data atingiu o número necessário de assinaturas para tanto, com base no que aduz Flávia Piovesan (apud NUNES; TÓPOR, 2015). Nesse viés, destaca-se que o Brasil ratificou o referido pacto através do Decreto Legislativo nº 226, de 12 de dezembro de 1992, e o promulgou pelo Decreto Executivo nº 592, de 6 de julho de 1992.

Por conseguinte, o que se verifica é a precisão considerável da realização da audiência de custódia em todas as Comarcas do território brasileiro. Primeiro, porque, apesar de não prevista em norma infraconstitucional, está elencada em tratados internacionais que o Brasil é subscritor e, mesmo assim, não os cumpre de forma integral.

E segundo, pois diante de todas as explanações acima, além das inúmeras informações midiáticas atuais, se percebe a precariedade em que se encontra o sistema carcerário brasileiro, o qual necessita, de forma gritante, de real valoração dos direitos fundamentais dos recolhidos, bem como, consequentemente, de melhorias estruturais.

Dessa maneira é que no próximo item se persistirá no estudo específico de que realmente se trata a audiência de custódia e o porquê é necessária.