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CAPÍTULO II – ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

2.6. O Estatuto da Cidade e a proteção da ordem urbanística

Em 1976, Hely Lopes Meirelles, reclamando uma normatização ao Direito

Urbanístico, foi categórico ao afirmar:

“A União, até hoje, não editou qualquer norma geral de urbanismo pela

qual pudessem os Estados-membros e Municípios pautar sua ação

planificadora e a regulamentação edilícia. A legislação urbanística

federal restringe-se a umas poucas disposições dispersas em diplomas

versantes sobre assuntos conexos, tais como as que regem o

loteamento urbano e o tombamento em geral (...). Falta-nos uma

legislação federal orgânica e sistemática, abrangente de todos os

assuntos urbanísticos, um Código de Urbanismo, uma Lei Geral de

Urbanismo, como já possuem os países mais adiantados no assunto”.

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E mesmo o advento da Constituição Federal de 1988, continuava a faltar a

regulamentação necessária para disciplinar a atividade urbanística, quer do ponto

de vista do planejamento, quer sob o aspecto da execução da política urbana.

Conforme já salientado, a Lei Federal 10.257/2001, autodenominada Estatuto da

Cidade, regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal e acrescentou

outras normas de intervenção na política urbana das cidades. O Estatuto

significou, assim, um marco para o Direito Urbanístico, pois proporcionou aos

municípios um conjunto inovador de instrumentos de intervenção nos espaços

urbanos, a despeito das normas constitucionais que já regulavam a matéria.

Apesar disto - e como já assinalamos - a promulgação do Estatuto não prescinde

que os Municípios venham a legislar no sentido de detalhar a aplicação de vários

de seus dispositivos. Em outros termos, pode-se afirmar que o Estatuto da Cidade

não é por si só suficiente para equacionar toda a questão da normatização (ou da

falta dela) na questão urbanística. Existe ainda um longo caminho a ser percorrido

até que se atinja a condição ideal normativa para a organização do espaço urbano

com vistas ao bem estar da população.

A este propósito, Carlos Ari Sundfeld, ao comentar a promulgação do Estatuto da

Cidade já observava:

“Convém não superestimar os efeitos imediatos do Estatuto, pois ele,

em larga medida, é ainda um conjunto normativo intermediário. É

verdade que várias de suas normas, dispensadas de qualquer

complementação legislativa, são já diretamente invocáveis pelos

interessados como base do estabelecimento de relações jurídicas

concretas; são os caso dos capítulos relativos ao usucapião especial de

imóveis urbanos e ao direito de superfície, bem como as regras para

sobre a concessão de uso especial para moradia (editadas pela MP

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2.220, de 4/9/2000). Porém, tudo o mais exigirá desdobramentos

legislativos ulteriores”.

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Na mesma linha, Odete Medauar sintetiza:

“O Estatuto da Cidade vem disciplinar e reiterar várias figuras e

institutos do Direito Urbanístico, alguns já presentes na Constituição de

1988 (...). Fornece um instrumental a ser utilizado em matéria

urbanística, sobretudo em nível municipal, visando à melhor ordenação

do espaço urbano, com observância da proteção ambiental, e à busca

de solução para problemas sociais graves, com a moradia, o

saneamento, por exemplo, que o caos urbano faz incidir, de modo

contundente, sobre as camadas carentes da sociedade. Mas a edição

do Estatuto não acarreta, por si, automaticamente, os resultados

pretendidos. Trata-se, como se disse, de um conjunto de figuras

jurídicas, de um instrumental a ser operacionalizado em nível municipal,

adaptado à realidade da cada cidade”.

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Logo de plano, o artigo 2º do Estatuto da Cidade estabelece que a política urbana

deve ter por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da

cidade e da propriedade urbana (caput), sempre de forma a garantir o direito a

cidades sustentáveis (incisos I, V, VIII e X). Para tanto, o Estatuto estabeleceu as

diretrizes gerais a serem obedecidas no intuito de alcançar dita finalidade.

Estas diretrizes, em síntese, dizem respeito à garantia do direito a cidades

sustentáveis, à participação popular nas atividades de planejamento e

desenvolvimento urbano, à cooperação entre governos, iniciativa privada e

sociedade civil na busca do interesse comum, distribuição espacial adequada nas

65 SUNDFELD, Carlos Ari. Estatuto da Cidade e suas Diretrizes Gerais. In: DALLARI, Adilson de Abreu; FERRAZ, Sérgio (coords.), Estatuto da Cidade (comentários à Lei Federal 10.257/2001), p. 52.

66MEDAUAR, Odete, ALMEIDA,Fernando Dias Menezes (coords). Estatuto da Cidade - Lei Federal 10.257, de 10/07/2001 – Comentários, p. 17.

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atividades exercidas nas cidades, prevendo, enfim, mecanismos de política

urbana com o objetivo de garantir a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos.

Em sentido oposto, o mesmo artigo 2º do Estatuto, em seu inciso VI, determinou o

que se deve evitar, no exercício da ordenação e controle do uso do solo: a

utilização inadequada dos imóveis urbanos; a proximidade dos usos

incompatíveis ou inconvenientes; o parcelamento do solo, a edificação ou o uso

excessivo ou inadequado em relação à infra-estrutura urbana; a instalação de

empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de

tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente; a retenção

especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização;

a deterioração das áreas urbanizadas e a poluição e a degradação ambiental.

Fica claro que o legislador preocupou-se com o impacto dessas atividades sobre a

coletividade, repelindo atitudes negativas quanto ao parcelamento do solo,

especulação imobiliária e realização de empreendimentos sem o prévio estudo

das conseqüências ao tráfego, com explícita conotação ao princípio da função

social da propriedade.

Sobre tal aspecto, Adilson de Abreu Dallari comenta:

“O Estatuto da Cidade assume, como pilar de sua normatividade, uma

corajosa redefinição da função social da propriedade, outorgando-lhe

contornos firmes e conseqüentes (...) A grande novidade trazida por

esta lei está exatamente na criação de instrumentos que possibilitarão

uma intervenção mais concreta e efetiva do Poder Público no

desenvolvimento urbano. Com isto, espera-se alcançar, pelo menos

dois objetivos: mitigar a especulação imobiliária e fazer com que a

propriedade imobiliária urbana cumpra a sua função social”.

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67 Prefácio. In: DALLARI, Adilson de Abreu; FERRAZ, Sérgio (coords.). Estatuto da Cidade (comentários à Lei Federal 10.257/2001), p. 19.

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Em sua outra face, o Estatuto da Cidade impõe atenção aos governantes

municipais e ao setor privado, uma vez que a ordem urbanística encontra-se no rol

de itens suscetíveis de ação civil pública (artigo 1º, VI, da Lei 7.347/1985). Deste

modo, o Ministério Público, a quem cabe a representação da sociedade em prol do

interesse social, encontra-se legitimado a propor esta espécie de ação em face de

agentes causadores de eventos lesivos à ordem urbanística ou que tenham

licenciado construções ou atividades de forma irregular.

Trata-se da tutela jurisdicional coletiva que pode ser perseguida sempre que

houver ameaça ou lesão de direito ou de interesses difusos, assim compreendidos

os interesses indivisíveis, cujos titulares são indeterminados e indetermináveis e

as circunstâncias fáticas (eventos danosos ou ameaçadores) atingirem a todos.

Em matéria de ordem urbanística, a dispersão dos interessados faz com que haja

interesse social e, portanto, direitos difusos a serem defendidos de forma coletiva,

sendo esta possibilidade também prevista no Código de Defesa do Consumidor

(artigo 81, § único, I).

Nos interesses ou direitos difusos, a sua natureza indivisível e a inexistência de

relação jurídica base não possibilitam a determinação dos titulares. Embora seja

sempre possível encontrar um vínculo que une as pessoas, como a nacionalidade

ou fato de habitarem a mesma cidade ou região, a relação jurídica base que

importa é aquela da qual é derivado o interesse tutelando, portanto interesse que

guarda relação imediata e próxima com a lesão ou ameaça de lesão.

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Mesmo sem organização, os interesses ou direitos coletivos apresentam

identidade tal que, independentemente de sua organização formal ou

amalgamação pela reunião de seus titulares em torno de uma entidade

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representativa, passam a formar uma só unidade, tornando-se perfeitamente

viável, e mesmo desejável, a sua proteção jurisdicional em forma molecular.

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Por isto, sendo a ordem urbanística um bem jurídico de titularidade indivisível, ou

seja, pertencente a toda a sociedade, pode e deve ser defendida pelos meios

processuais disponíveis para a tutela dos direitos difusos, por meio de ação civil

pública ou ação popular (artigo 5º, LXXIII, da Constituição Federal).

Do quanto exposto, concluímos que o Estatuto da Cidade representa passo

marcante em matéria urbanística e assume, portanto, papel de relevância no

cenário jurídico nacional, pois servirá de norte para a coordenação das ações

urbanísticas pelo Poder Público e também para inibir atividades ou

empreendimentos indesejados, ou seja, aqueles cujo potencial de degradação da

qualidade de vida seja maior que os possíveis benefícios gerados à população.

Por outro lado, cabe à sociedade, por intermédio do Ministério Público ou das

associações organizadas, salvaguardar a ordem urbanística pelos meios

processuais referidos, sempre que a via judicial se fizer necessária.

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CAPÍTULO III – ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA

3.1. Elementos históricos. 3.2. Conceitos e definições.