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CARACTERIZAÇÃO DE ETHOS DISCURSIVO DE DILMA ROUSSEFF

3.2. A relevância das cenografias na constituição de ethos nos discursos de Dilma Rousseff

3.2.2. Cenografia no D2: a imagem de si globalizada

3.2.2.2. O ethos de autoridade

Nesse D2, o enunciador estrutura suas falas, direcionando-as de modo eficaz e particular para determinados co-enunciadores para causar efeitos de

sentidos mais impactantes, compondo não só a força do argumento mas também o ethos de força e autoridade. A escolha de abrir e fechar o discurso, assumindo-se como voz feminina, implica, para o sujeito enunciador, posicio- namento discursivo demarcado intencionalmente. Falar enquanto mulher e referir-se por várias vezes às mulheres nivela os interlocutores em mesmo patamar de igualdade, de cumplicidade, recursos afeitos à área da proxê- mica18. Quanto mais próximo o enunciador se fizer dos co-enunciadores, mais adesão vai obter. Pela maneira de dizer, ao se aproximar do grupo das mulheres, co-enunciadores femininos, o enunciador vai construindo sua ima- gem de liderança feminina, outorgando-se o papel de porta-voz das mulheres. Abre sua fala da seguinte forma:

Além do meu querido Brasil, sinto-me, aqui, representando todas as mulheres do mundo.

Dirigir-se às mulheres em momentos específicos e no meio de falas des- tinadas ao público estadista ali presente, compõe o jogo de forças enunciativo com foco na adesão. Da mesma maneira, o fechamento do discurso, exemplificado a seguir, também explora o olhar feminino sobre o posiciona- mento político e maneira de ser e de agir no exercício da governança:

Como mulher que sofreu tortura no cárcere, sei como são importantes os valores da democracia, da justiça, dos direitos humanos e da liberdade.

E é com a esperança de que estes valores continuem inspirando o trabalho desta Casa das Nações que tenho a honra de iniciar o Debate Geral da 66ª Assembleia Geral da ONU.

Ao fechar o discurso falando de si, de mulher para mulher, deixando em suspenso (stand by) a presença masculina, traz a cena para si como reforço de seu ethos discursivo, mudando o foco de atenção para a questão feminina em ambiente tipicamente de embate diplomático da política internacional.

Nesse momento final, o enunciador se anuncia como pertencente ao gênero feminino, constituindo argumento e maneira de envolver os co-enunci- adores, especialmente as mulheres, e provocar sua adesão. O eixo, referencial

18

O termo proxêmica (proxemics, em inglês) foi cunhado pelo antropólogo Edward T. Hall em 1963 para descrever o espaço pessoal de indivíduos num meio social, definindo-o como o conjunto das observações e teorias referentes ao uso que o homem faz do espaço enquanto produto cultural específico. Descreve as distâncias mensuráveis entre as pessoas conforme interagem, distâncias e posturas involuntárias, resultantes da aculturação. É exemplo de proxêmica um indivíduo encontrar banco de praça já ocupado numa das extremidades, tendendo a sentar-se na extremidade oposta, preservando espaço entre ambos.

de constituição de ethos discursivo de enunciador feminino, centra-se na defesa do próprio gênero, mesclando com a ideia de denúncia, crítica, reivindicação, de defesa e proteção dos direitos femininos.

As mulheres anônimas, aquelas que passam fome e não podem dar de comer aos seus filhos; aquelas que padecem de doenças e não podem se tratar; aquelas que sofrem violência e são discriminadas no emprego, na sociedade e na vida familiar; aquelas cujo trabalho no lar cria as gerações futuras. [grifos nossos]

Ao usar dessa estratégia, o enunciador e co-enunciadores coincidem na mesma voz, na mesma proposta, no agrupamento de forças para contrapor séculos de dominação masculina em vários níveis da estrutura social, subju- gando a mulher à vivência em segundo plano. O tom do discurso adquire ares de protesto, vitimização, cumplicidade, irmandade, fraternidade, revelado, ora pelo posicionamento do enunciador no grupo das mulheres de todo o mundo, ora restringindo-se ao grupo de mulheres brasileiras. Marca esse tom discur- sivo a repetição do pronome demonstrativo aquelas, dando ritmo cadenciado às enumerações das sofridas mulheres.

Esse trânsito na abrangência da população feminina visa sensibilizar a atenção e os sentimentos dos referidos co-enunciadores com propósito político implícito de mostrar que o próprio enunciador faz parte de determinado grupo

discriminado ou pouco considerado até então para obter a adesão.

Junto minha voz às vozes das mulheres que ousaram lutar, que ousaram participar da vida política e da vida profissional, e conquistaram o espaço de poder que me permite estar aqui hoje.

Entretanto, o sujeito enunciador enquanto ser político é parte interes- sada em encorpar a voz do conjunto de mulheres na busca e desejo de toma- rem postos de liderança em condições de igualdade com os homens, mistu- rando-se ao universo masculino, fonte e origem de vários tipos de poderes. Veladamente, a estratégia política feminina assemelha-se ao processo popular- mente conhecido de comer pelas beiradas, de penetrar de modo lento e gradual, obtendo pequenos avanços sociais, legais, jurídicos e, finalmente, os de caráter políticos. Como lembra Avelar (1996), a participação feminina no campo político começa pela conscientização da própria mulher da necessidade

de ocupar espaços na sociedade, em postos chaves, assumindo lideranças de níveis diversificados, não somente aqueles relegados a segundo plano ou considerados menores.

No passado, havia maior associação da imagem da mulher nos conteú- dos veiculados na propaganda e publicidade à ideia de perfumaria, pertinente às vaidades femininas, de caráter estético e cosmético. Atualmente, como contraponto, observa-se o crescimento e interesse masculino em cuidar mais da aparência, ocupando-se com cuidados pessoais de estética, antes restritos às mulheres. A igualdade dos gêneros transita pelas equivalências de atitudes, posicionamentos espraiando-se em várias áreas da sociedade e gerando o que poderíamos chamar de revolução cultural branca, alterando comportamentos antes consolidados pela tradição.

Na medida em que a mulher avança na ocupação de espaços em seto- res antes eminentemente reservados aos homens, da mesma maneira os homens adentram em comportamentos e hábitos antes usualmente conside- rados do universo feminino.

Semanticamente dizer é diferente de mostrar, equivalendo à diferençiação estabelecida por Maingueneau entre ethos dito e ethos mostrado. No D2, o enunciador utiliza seu dizer para mostrar os resultados conquistados a partir de suas decisões e ações, tornando discursivamente palpáveis suas realizações:

O Brasil avançou política, econômica e socialmente sem compro- meter sequer uma das liberdades democráticas. Cumprimos quase todos os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, antes de 2015. Saíram da pobreza e ascenderam para a classe média no meu país quase 40 milhões de brasileiras e brasileiros.

[...]

No meu país, a mulher tem sido fundamental na superação das desigualdades sociais.

[...]

Nossos programas de distribuição de renda têm nas mães a figura central. São elas que cuidam dos recursos que permitem às famílias investir na saúde e na educação de seus filhos.

Mas o meu país, como todos os países do mundo, ainda precisa fazer muito mais pela valorização e afirmação da mulher.

A evocação de ações de governo já implementadas, em especial aos programas destinados às mulheres, apoia a construção da imagem de si do

enunciador perante plateia seleta de centenas dos principais dirigentes mundiais. A constituição de ethos, em particular o de credibilidade, reside em fazer os co-enunciadores notarem aquilo que o sujeito enunciador quer mostrar. Podemos resumir essa ideia, muito comum no discurso político, em uma pequena frase: mostre os feitos e terá as adesões necessárias.

3.2.3. Cenografia no D3: as relações entre interdiscurso e memória