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O experimento de David Rosenhan

No documento O DSM, o sujeito e a clínica (páginas 57-60)

2. O DSM, O SUJEITO E A CLÍNICA

2.10 O experimento de David Rosenhan

Na década de 60, as relações entre psicanálise e psiquiatria achavam-se desgastadas. Os psiquiatras consideravam que a psicanálise não oferecia a eficácia além de ser uma teoria que postulava uma etiologia psicogênica, afrouxava mais que fortalecia os laços com a medicina científica. O assunto já havia sido tratado por Spitzer e Bayer em um relatório de 1985 onde defendiam que se extirpasse a neurose da nomenclatura do DSM além de outros freudismos (KIRK & KUTCHINS, 1998, p. 140).

Além da presença de conceitos psicanalíticos no DSM, eventos como o debate sobre a validade científica do conceito de homossexualidade e a publicidade em torno da falta de confiabilidade dos diagnósticos, abalariam a psiquiatria americana. Robert Spitzer, nomeado presidente do Grupo de Trabalho sobre Nomenclatura e Estatística da APA, em maio de 1974 (KIRK & KUTCHINS, 1988, p. 166), enfrentaria, ainda na condição de defensor do DSM, os efeitos da divulgação de uma pesquisa conduzida por David Rosenhan, professor emérito de psicologia e de direito da Universidade de Stanford, na prestigiosa revista Science. (ROSENHAN, 1973, pp. 250-258).

Rosenhan, psicólogo, empreendeu um experimento em psicologia social considerado um dos mais importantes do século XX. Sua pesquisa destinava-se a verificar até que ponto os diagnósticos psiquiátricos baseados em categorias sindrômicas diziam mais sobre o ambiente e o contexto em que se observam os pacientes que sobre os próprios pacientes observados. Ele não pretendia negar a existência da doença mental nem do sofrimento psíquico, mas questionar até que ponto as noções de normalidade e de anormalidade dependiam de diagnósticos que não diziam a verdade sobre as pessoas que os recebiam. Com isso, Rosenhan postulava que, assim como na teoria estatística, em medicina há um tipo de viés que induz os médicos a dois tipos de erro na atribuição de um diagnóstico.

O erro mais comum em medicina denomina-se “erro de tipo 2”, e refere-se à maior inclinação dos médicos em atribuir a alguém saudável um diagnóstico de enfermidade (falso positivo, tipo 2), do que atribuir a alguém enfermo um estado de boa saúde. Esse tipo de erro acontece devido à prudência médica, porque é preferível se enganar e submeter a tratamento alguém que goze de boa saúde, que dispensar alguém doente sem providenciar-lhe nenhum cuidado. É melhor errar por precaução.

não são as mesmas para o paciente que as de outra área médica, como a cardiologia ou a nefrologia. Doenças fisiológicas não têm, geralmente, uma conotação pejorativa e não produzem, em sua maioria, nenhum tipo de estigma social. A situação dos diagnósticos psiquiátricos é bem diferente para o paciente, porque induzem a estigmas e são geradores de preconceitos sobre a vida pessoal, no plano legal e social.

O experimento visava testar se pessoas normais podiam ser identificadas em ambientes de tratamento para alienados. Se assim fosse, normalidade e anormalidade seriam distintas e discerníveis pela confiabilidade das categorias diagnósticas usadas nessas situações. Porém, se a sanidade dos pseudopacientes não fosse descoberta, isso reforçaria a tese de que os diagnósticos psiquiátricos dizem pouco sobre o paciente e mais sobre o ambiente em que ele é submetido à observação.

Oito pseudopacientes, entre eles Rosenhan, se apresentaram a hospitais psiquiátricos com alegação de ouvirem uma voz que lhes dizia “vazio” ou “oco”. As vozes seriam do mesmo sexo do paciente. A expressão do delírio, sugestiva da alucinação verbal, foi previamente combinada pela equipe de pesquisa pelo fato de fazer referência a dilemas existenciais e poder ser expressa sob a forma de um fenômeno clínico da psicose e por não haver na psiquiatria nenhuma referência a nenhuma psicose ou esquizofrenia existencial. Sete dos pseudopacientes foram admitidos com diagnósticos de esquizofrenia e um com o de psicose depressiva. As equipes dos hospitais não tiveram, em nenhum momento, conhecimento oficial do experimento. Para o restante da entrevista, os pseudopacientes combinaram entre si que forneceriam informações verídicas, pois estas informações poderiam influenciar favoravelmente num diagnóstico de sanidade, já que as histórias retratavam vidas comuns sem comportamentos considerados patológicos.

Uma vez internados, os pseudopacientes voltaram a se comportar normalmente, e passaram explicitamente a tomar notas sobre a conduta da equipe na relação aos internos. Passaram também a dispensar a medicação recebida nos lavatórios e comprovaram ser esta uma prática comum entre os pacientes. Também era comum que os pacientes verdadeiros identificassem a sanidade dos pesquisadores.

O tempo de internação em média foi de 19 dias, e os pseudopacientes receberam alta com o diagnóstico de “esquizofrenia em remissão”. O termo “em remissão”, observa Rosenhan, não significa que os pacientes tenham sido necessariamente acompanhados. Indica

que, uma vez diagnosticados como esquizofrênicos os pseudopacientes ficaram marcados com um rótulo e, já que receberiam alta, não poderiam receber outra classificação que não essa.

Rosenhan, logo após a realização dessa pesquisa, empreendeu outra pesquisa visando verificar se a tendência dos psiquiatras em classificar pessoas normais como loucas poderia ser revertida. Ele acertou com um hospital de pesquisa e ensino que enviaria alguns pseudopacientes para entrevista de internação, advertindo previamente as equipes sobre os resultados da pesquisa anterior. Durante três meses, que foi o prazo acordado entre Rosenhan e a direção do hospital, as equipes trabalharam na expectativa de que pseudopacientes tentariam ser admitidos à internação. Combinou-se que os psiquiatras usariam uma escala de 1 a 10 para aferir o nível de certeza do profissional sobre se tinha a frente um pseudopaciente ou não.

Os resultados indicaram que cento e noventa e tres pacientes foram avaliados e admitidos no hospital e todos da equipe não só psiquiatras emitiram opiniões baseadas na classificação do DSM-II. Quarenta e um pacientes foram indicados com alto grau de certeza como pseudopacientes por pelo menos um membro da equipe. Vinte e três foram considerados suspeitos por pelo menos um psiquiatra e dezenove pacientes também o foram por pelo menos um membro da equipe e um psiquiatra. Após a apresentação dos resultados, Rosenhan, convidado a dizer o verdadeiro número de pseudopacientes que teria enviado às equipes, revelou não ter enviado nenhum. O experimento confirmou a existência da inclinação entre as equipes que usam a classificação oficial, a designarem pessoas normais como insanas. O efeito somente poderia ser revertido, argumentava Rosenhan, “quando a sagacidade na realização do diagnóstico é alta” (ROSENHAN,1973, p. 4). Sagacidade é uma qualidade que se adquire com a prática clínica.

Da amostragem apresentada, para os dezenove pacientes sobre os quais coincidiram opiniões de um psiquiatra e de outro membro da equipe, Rosenhan perguntava se essas pessoas eram realmente “sãs” ou se a equipe, evitando o erro de tipo 2, não teria cometido o erro de tipo 1 denominando loucos como sãos. Com isto, ele advertiu que um sistema de classificação e diagnóstico em psiquiatria “que se rende tão facilmente a erros desse tipo não deve ser um meio estritamente confiável” (ROSENHAN,1973, p. 4).

No documento O DSM, o sujeito e a clínica (páginas 57-60)