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Os sintomas

No documento O DSM, o sujeito e a clínica (páginas 113-116)

3. UM LANCE DE DADOS JAMAIS ABOLIRÁ O ACASO

4.4 Os sintomas

A subordinação do termo “sintoma” à lógica do “transtorno” atende ao manejo específico de certas manifestações observadas na clínica e realçadas pelo grau de comprometimento do paciente no aspecto social ou ocupacional: “os sintomas devem causar sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes.” (DSM-IV-TR-tm, 2002, p. 469). Transtorno é um acontecimento desestabilizante numa situação normal, uma desordem, uma perturbação, um percalço, obstáculo, contratempo. Essas acepções da palavra transtorno enfatizam a patologia em sua relação com a produção laboral, em sua dimensão afeita à medicalização e à administração da doença. Um transtorno, no DSM, é um conjunto de sintomas que implicam em déficits funcionais. Trata-se de uma definição que se baseia na utilidade prática do manual, a partir da compreensão da medicina:

O agrupamento desses transtornos em uma única seção fundamenta-se mais na utilidade clínica (isto é, a necessidade de excluir condições médicas gerais ocultas ou etiologias induzidas por substâncias para os sintomas físicos) do que em premissas envolvendo uma etiologia ou mecanismo em comum. Esses transtornos são encontrados com freqüência nos contextos médicos gerais. (DSM-IV-TRtm, 2002, p. 471).

Nessa vertente, qualquer terminologia que seja redutível à orientação prática, como reza a proposta do DSM, é merecedora de uma justificativa que se coadune com os melhoramentos periódicos que a Comissão de Nomenclatura e Estatística da APA alega apresentar a cada revisão do manual. Um exemplo é a presença do adjetivo “mental”, mantido a contragosto da equipe de Nomenclatura e Estatística da APA na nomeação do manual, conforme exposição no primeiro capítulo desta dissertação. A Definição de transtorno mental, subitem do texto de abertura do DSM-IV-TRtm, dá relevância à inadequação do termo “mental”, como expressão que persiste “porque ainda não encontramos um substituto apropriado”, e à inconveniência de não haver uma definição operacionalmente consistente “que cubra todas as situações” (DSM-IV-TR-tm, 2002, p. 27). Consta, ainda, que os

transtornos mentais têm sido definidos por uma variedade de conceitos, dentre eles: “sofrimento, descontrole, deficiência, incapacidade, inflexibilidade, irracionalidade, padrão sindrômico, etiologia e desvio estatístico” (DSM-IV-TR-tm, 2002, p. 27), e que apesar das várias definições cada um dos conceitos é útil como um indicador, mas nenhum equivale ao conceito, e que diferentes situações exigem diferentes definições. Parece claro que a ênfase na definição de “transtorno” encontra-se associada a pressupostos de causa externa, na medida em que se pressupõe que as definições podem mudar conforme diferentes situações. Registra- se, ainda, que a terminologia ajudou a orientar decisões sobre as condições em que certos transtornos, estando nos limites entre a normalidade e a patologia, deviam compor o DSM-IV. Por analogia com a paciente histérica de Freud, pensamos que, se o rechaço à representação traumática constitui a estrutura do sintoma da divisão da consciência, essa é correlativa de uma ação também do lado da ciência referente a um esforço para suturar a hiância entre o saber e a verdade. Tanto na alternativa neurótica, quanto na estratégia do discurso da ciência no campo da psiquiatria, encontra-se em jogo a relação do sujeito com o sintoma. Para o sujeito, na relação com o recalque que o condiciona encontra-se em jogo a dissociação entre o afeto e sua representação traumática, aquela que por ação do recalque, é desinvestida. Em psiquiatria, a sutura é executada na abordagem descritiva, no comportamento observado, destituído de história, nos métodos estatísticos do DSM como nos protocolos de entrevista clínica. No ato de necessariamente ministrar medicamentos (um critério clássico em psiquiatria) ou nos excessos da medicalização, na forma de comunicação de sua experiência clínica (LACAN, 1965, p. 891) e pela aplicação metodológica baseada em evidências. Todas essas são formas de objetivação ou de supressão do sujeito que determinam, aos poucos, o fim da clínica psiquiátrica e o reforço de uma psicoterapia de orientação funcionalista, atingindo também o ensino e a formação de novos profissionais. É interessante mantermos em nosso horizonte a questão sobre a possibilidade de haver uma clínica sem sujeito, uma vez que ela se realiza sobre a supressão da importância da teoria sobre a sexualidade infantil.

A psiquiatria e a psicologia behaviorista, assim como as modernas terapias cognitivo- comportamentais, são autênticos representantes do discurso da ciência. Isto quer dizer que sua práxis fundamenta-se na sutura da divisão inaugural que instrui a prática psicanalítica, que apresenta o inconsciente e o sujeito implícitos no sintoma. Decorre, daí, que as duas primeiras disciplinas mantêm um conjunto de práticas que constituem um rechaço ao sintoma. Nesse sentido, o ideal de normalidade (funcional) que as preside é o ideal da ciência, enquanto que,

para a psicanálise, encontra-se em causa o segredo portado pelo sintoma, definido por Lacan como uma “semântica psicanalítica” (LACAN 1955, 1998, JZE, p. 335). É por intermédio do sintoma, a partir dele, do trabalho de sua decifração “que o sujeito recupera com a disposição do conflito que determina seus sintomas, à rememoração de sua história” (LACAN 1955, 1998, JZE, p. 335). O acesso a essa história vincula-se à estrutura de linguagem do sintoma: “O sintoma, nomeado pelo paciente, é um significante que mantém relação com um significado recalcado da consciência do sujeito” (LACAN 1955, 1998, JZE, p. 382). A fórmula lacaniana segundo a qual um significante representa um sujeito para outro significante acrescenta a essa afirmação a noção de deslizamento na cadeia discursiva, a metonímia. Nesse sentido, não é demais dizermos que o sujeito habita o sintoma e faz-se representar pelo significante.

Em sua estrutura de linguagem, em sua constituição de palavra, de significante, o sintoma é portador de ambigüidades, sujeito a sobredeterminação, à convergência de vários fatores que concorrem para sua formação: “Nos pontos em que as formas verbais se cruzam novamente, os nós da estrutura, já está perfeitamente claro que o sintoma se resolve por inteiro numa análise linguajeira, por ser ele mesmo estruturado como uma linguagem cuja fala deve ser libertada” (LACAN 1955, 1998, JZE, p. 370).

Apesar da busca pela univocidade entre a nomenclatura e o transtorno a ser classificado, a tradição psiquiátrica permite uma interrogação sobre a falibilidade da metodologia descritiva aplicada às pesquisas sobre problemas psíquicos. Isto se deve ao fato de essa metodologia ser fértil em produzir impasses e enganos no percurso que vai da observação do fenômeno à sua descrição (CHALMERS, 1993). A psicanálise ensina que é próprio do significante a equivocidade, sendo interessante uma comparação entre a assunção da equivocidade pela clínica psicanalítica como algo próprio da palavra com a pretensão de univocidade científica da psiquiatria.

O DSM-III marcou uma pulverização dos sintomas que se reuniam em clássicas entidades clínicas sob as rubricas da psicose e da neurose. O conceito de neurose tem uma relação histórica com a teoria psicanalítica, justamente pelos Estudos Sobre Histeria (BREUER & FREUD, 1893-5). O rigor científico de Freud não o impediu de perceber que os sintomas histéricos têm suporte num romance familiar e que a apresentação dos casos muitas vezes ganhava a estruturação e o desenvolvimento de contos. O matiz emocional dos sintomas baseava-se no deslocamento de energia entre as representações inconscientes envolvendo o

corpo como o suporte de uma determinação entre a palavra e um desejo impronunciável.

No documento O DSM, o sujeito e a clínica (páginas 113-116)