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3 PLANEJAMENTO URBANO E PARTICIPAÇÃO NO BRASIL

3.5 O fim de um ciclo na política urbana do Brasil

No contexto de avanços e retrocessos da política urbana brasileira, os desafios atuais pautam-se na existência dessas duas agendas antagônicas, que se encontram em permanente disputa. De um lado, as conquistas dos movimentos sociais e organizações populares colocaram no horizonte a possibilidade da construção de cidades mais justas e democráticas; do outro lado, a reorganização do processo de produção e reprodução do capital, além da expansão liberal para os países periféricos reportam para um conjunto de políticas e programas, agora, desenhados sob a marca do mercado, inclusive muitos deles regidos sob a influência dos organismos multilaterais.

O planejamento e a gestão urbanos trilharam caminhos díspares na implantação da política urbana nacional, o que corroborou, para que, ainda hoje, se tenha uma série de impasses com dificuldades de serem superados. Rodrigues (2012) destaca que desde os primórdios da urbanização do país, a matriz da política urbana das cidades brasileiras nunca teve um projeto uníssono que pudesse envolver diferentes dimensões do desenvolvimento urbano, com integração das políticas setoriais, ao lado de estratégias de enfrentamento da valorização da propriedade fundiária e imobiliária.

A abertura democrática do país, a partir das emendas de iniciativa popular contribuiu para que houvesse mudança nas regras do jogo. Entretanto, entraves precisaram e ainda precisam ser contornados ou removidos, para que haja legitimidade da população na formulação de políticas e na gestão democrática das cidades. Nesse sentido, a participação popular, muitas vezes, serve de instrumento de legitimação sob o controle do Estado. É bem verdade que “a força da cultura política, clientelista e fisiológica, sustentada pela máquina administrativa burocrática e corporativa”, (CORREIA, 2003, p. 160), endossa o caráter excludente das políticas públicas, em especial o planejamento urbano.

Maricato (2012) afirma que mesmo com a instituição dos governos democráticos populares a situação das cidades brasileiras não passou por profundas mudanças. A ampliação dos espaços de participação institucionalizados não impediu de haver uma desmobilização e fragmentação das forças sindicais e dos movimentos populares. Em contrapartida, a classe empresarial se apresentou coesa e organizada para a definição de políticas relacionadas à cidade. A autora relata ainda que muitas lideranças presentes em conselhos e nas conferências das cidades apresentaram ligação direta, do tipo cooptação, com ministros, evidenciando práticas que subsidiaram a ideia de participativismo.

Nesta mesma perspectiva, Burnett (2011) reforça as críticas apresentadas ao modelo de planejamento participativo, pois mesmo sob o ideário de reforma urbana, o que se manteve na primeira década deste milênio foi uma proposta incrementada restrita aos processos de consulta e legitimação, no qual seus partícipes encontravam-se em organizações locais fragmentadas e particularizadas e, por isso mesmo, facilmente cooptadas. Os movimentos sociais conseguiram a abertura de espaços participativos, mas a capacidade destes espaços representarem efetiva democratização das tomadas de decisão foi desacreditada.

Maricato (2012) comenta que a sociedade brasileira tem vivenciado consequências do que ela considera ser o “fim de um ciclo”. As mudanças globais, a crise política e partidária no mundo, a história recente das lutas urbanas e as conquistas resultantes dos governos petistas, reforçam tal pensamento. Uma síntese dos argumentos para o impasse da política urbana pode ser percebida neste trecho:

Acabou-se um ciclo que prenunciava reformas urbanas, em especial a reforma fundiária e imobiliária. A experiência das “prefeituras democráticas e populares” parece ter chegado ao limite. A produção acadêmica crítica está num impasse. Grande parte dos movimentos sociais e sindicais está contida entre o pragmatismo e o corporativismo. Os mais combativos estão sob pressão da mídia, do agronegócio e dos numerosos processos jurídicos de criminalização (MARICATO, 2012, p.9).

O impasse da política urbana brasileira se trata, em suma, de um impasse político que grega notórias conotações institucionais, técnicas, teóricas e ideológicas. No alvorecer do século XXI, mesmo com avanços na política urbana nacional, parece que o país não conseguiu responder as demandas da agenda da reforma urbana, em prejuízo, na maioria das vezes, da agenda neoliberal. Apesar das conquistas das duas últimas décadas, novos temas entraram em pauta, quando se pensa as cidades brasileiras na contemporaneidade. Em momento algum argumenta-se que as pautas defendidas para a obtenção de direitos mínimos foram ultrapassadas, apenas considera-se uma nova geração de citadinos que já nasceram nas cidades e, embalados pela sociedade cada vez mais conectada, passou a reivindicar outras demandas.

Em 2013, a crise urbana tornou-se centro da insatisfação social. As diversas manifestações populares que ocorreram, em meados daquele ano, levaram milhares de pessoas às ruas – jovens, predominantemente de classe média, organizados através das redes sociais. Avritzer (2016) defende que o ponto de partida das manifestações foi a ruptura do campo político da participação social no Brasil, a partir de conflitos em diversos áreas, como: mobilidade urbana, educação, saúde, moradia, reforma política, além de gastos excessivos para a realização de megaeventos (Copa das Confederações, Copa do Mundo de Futebol e Jogos Olímpicos de Verão), que seriam realizados no país, nos anos de 2013, 2014 e 2016, respectivamente.

As manifestações de junho de 2013 expressam, segundo Avritzer (2016), o fim de um monopólio de esquerda sobre a participação popular. Convocadas inicialmente pelo MPL, onde de modo bem rápido, os atos alcançaram a população e a opinião pública, pluralizando e estendendo a pauta dos movimentos sociais. A pluralidade da participação trouxe para o centro das manifestações uma classe média conservadora com ampla capacidade de mobilização na política brasileira. Desde então, teve início um novo ciclo participativo, como bem caracterizado por Gohn (2019), no qual o modo de participação mudou bastante, de modo que a participação institucionalizada e os caminhos da democracia brasileira foram postos em xeque.

Por outro lado, a participação institucionalizada no Brasil parece esgotada. Maricato (2015) ressalta que a insatisfação geral da sociedade vem da crise urbana que envolve as cidades e as disputas em torno dela, uma vez que nem tudo se resolve com melhores salários e distribuição de renda. As boas condições de vida, dependem, frequentemente, de políticas públicas urbanas bem desenvolvidas. O grande entrave para o equacionamento da crise urbana seria o domínio dos grandes investidores sobre os poderes

públicos. Em caso de construção de uma nova agenda é preciso romper com paradigmas enraizados na sociedade brasileira e novas perspectivas de cidade precisam ser discutidas, uma vez que entram em cena grupos insatisfeitos que buscam novas formas de vivenciar as urbanidades.

Parece que muitos gestores públicos ainda não entenderam o que ocorreu em junho de 2013, quando ocorreram protestos contra a péssima qualidade das cidades brasileiras. A grande maioria dos políticos, sem ter a menor ideia de como lidar com a situação - depois de tentar sem sucesso tirar proveito dela - preferiu desconsiderar a importância dessas manifestações. Segundo eles, o movimento não passava de um grupo de jovens de classe média desprovidos de uma agenda social consistente. Uma espécie de “rebeldes sem causa”, cujo o único objetivo seria o de tumultuar o processo democrático.

Talvez aí tenha sido o início da derrocada do governo petista, que, por não perceber o peso da questão urbana na política brasileira, simplesmente ignorou o movimento. Movimento esse que nasceu e se impôs espontaneamente através das mídias sociais, aparentemente sem qualquer tipo de ingerência do sistema político formal. A ascensão de grupos conservadores ao poder que se propõe a empregar um modus operandi de fazer política semelhante a esse tipo de movimento, parece contraditório, e até mesmo imprudente, desprezar as reivindicações da população urbana do país. Portanto, ao invés de extinguir, seria mais correto manter e fortalecer o MCidades institucionalmente, tornando-o uma linha direta oficial com os moradores das cidades, que, diga-se de passagem, representam grande parte da população brasileira

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