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3 PLANEJAMENTO URBANO E PARTICIPAÇÃO NO BRASIL

3.1 O prelúdio da participação no planejamento urbano

A preocupação em promover a participação popular no planejamento urbano remonta pelo menos a 1960. Mas como interpretar esse apelo à participação? Como a questão da participação popular surgiu e se impôs no campo do urbanismo e dos estudos urbanos? Segundo Bacqué e Gauthier (2011), seis processos28 articulados permitem resumir esse contexto de emergência da participação no planejamento urbano.

O primeiro processo seria a ascensão dos movimentos urbanos que se desenvolveram em diferentes partes do mundo. Manuel Castells29 estudou este fenômeno desde os anos 1970 e contabilizou que esses movimentos eram portadores: (1) de uma crítica social quando, por exemplo, mobilizam proprietários e inquilinos sem status na América Latina ou a população expulsa em operações de renovação nos Estados Unidos; (2) de uma crítica historicista e estética quando impõem respeito à manutenção do patrimônio edificado; (3) de uma crítica política e processual quando colocam a reivindicação de compartilhar poder e participação; e (4) de uma crítica ecológica que ganha corpo a partir da década de 1970.

Com esses movimentos surge uma série de experiências inovadoras, como oficinas públicas que mobilizam habitantes e profissionais para, de um lado, elaborar contra-

28 Faz-se aqui uma tradução livre do artigo de Bacqué e Gauthier no que se refere aos seis processos que levam à consolidação da participação no planejamento urbano.

projetos que desafiam as práticas de políticas públicas e, por outro lado, contar com aparato estatal para conduzir esses experimentos,

O segundo processo consiste no desenvolvimento de uma abordagem reflexiva entre profissionais do planejamento urbano. As experiências inovadoras baseadas em movimentos sociais urbanos mobilizam profissionais que buscam renovar suas práticas. Os profissionais de planejamento começaram, então, a reconhecer as limitações do modelo de planejamento racional e a buscar novas maneiras de integrar as preocupações dos cidadãos em suas práticas de planejamento.

Desse ponto de vista, a experiência emergente é a do advocacy planning, concebido nos Estados Unidos por jovens profissionais que trabalhavam com movimentos sociais. O advocacy planning propõe uma visão política do planejamento que rompe com a modelo de planejamento racional global considerado muito técnico e burocrático. Esse modelo de planejamento questiona o papel do planejador: para quem ele trabalha? Para seu empregador, a cidade ou comunidade local, ou para a "comunidade" e o interesse geral?

Para Paul Davidoff30, iniciador e teórico dessa abordagem, o planejamento urbano deve ser mais do que um exercício técnico e burocrático; deve antes de tudo procurar conciliar fatos e valores e lutar pela justiça social. Segundo ele, os planejadores devem trabalhar para organizações que compartilham seus valores. O objetivo é aumentar a capacidade dos cidadãos de desempenhar um papel ativo nas democracias modernas, preparando planos comunitários alternativos em oposição ao das autoridades públicas.

O terceiro processo refere-se à crítica pós-moderna às teorias e práticas do planejamento urbano. Essas críticas refletem essencialmente os limites do projeto modernista de controle da natureza e da sociedade e contradizem a ideia geralmente aceita pelos planejadores de que a ciência guiaria a ação pública. Tais críticas também destacam a aptidão tecnocrática do planejamento urbano e desafiam a própria utilidade do planejamento para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. Ao enfatizar o relativismo dos valores, o pós- moderno pleiteia o reconhecimento da diversidade e pluralidade de atores, e ao fazê-lo, contribuiu para questionar a racionalidade instrumental subjacente às práticas de planejamento, bem como o papel preponderante atribuído as práticas dos profissionais de planejamento urbano.

O quarto processo remete aos trabalhos da história da ciência que forneceram ferramentas para analisar a mobilização e construção dos saberes urbanos. Esses estudos

30 Ver em DAVIDOFF, Paul. Advocacy and Pluralism in Planning. In American Institute of Planning Journal, 31 (4), 1965, p. 331-338.

mostraram como o conhecimento é expressão de tempos e contextos específicos e é construído ao mesmo tempo em que formaliza os "problemas" para os quais ele deve responder. Depois de um século de estudos, não é o mesmo conhecimento inicial que é mobilizado para entender a cidade. O conhecimento evolui e exige construções e valores diferentes. A mobilização de conhecimentos relacionados ao meio ambiente refere-se, por exemplo, a outra relação com a natureza e para a finitude do mundo do que o compromisso dos urbanistas, engenheiros e higienistas da modernidade na virada do século.

O conhecimento baseado em abordagens interacionistas, valorizando identidades e as diferentes formas de mobilidade, hoje conta com uma representação da sociedade urbana multicultural. Essas abordagens se voltam para práticas diferenciadas das respostas padronizadas do urbanismo moderno. Essa discussão do conhecimento urbano anunciada pelos movimentos urbanos da década de 1960 se refere a obras que analisam, de maneira mais geral, o surgimento de um duplo desafio da delegação de poder político e científico. Ela tem seus próprios efeitos na construção do campo do urbanismo onde o conhecimento de uso ou conhecimento difuso pertence a todos os habitantes da cidade.

O quinto processo reporta-se à substituição do “governo da cidade” para a “governança urbana”. A transformação das modalidades de gestão territorial leva à multiplicação de escalas de projetos, atores e formas de parcerias público-privada. Nas últimas duas décadas, essas novas modalidades causaram profunda mudança nas condições de exercício dos planejadores urbanos. Estes são trazidos para trabalhar em contextos institucionais cada vez mais fragmentados, para diversos públicos cujas identidades ou interesses específicos tendem a se afirmar. As questões de negociação e participação tornam- se, portanto, cruciais em um contexto em que os processos de tomada de decisão são mais abertos e mais opacos. Essas evoluções implicam que os planejadores urbanos desenvolvam novas funções e habilidades no campo da facilitação, negociação, mediação e trabalho em rede (networking).

O sexto e último processo trata da questão do desenvolvimento urbano sustentável que está se tornando cada vez mais associada à intervenção urbana e alguns argumentam que se constitui como um novo paradigma. Nos Estados Unidos, os conceitos de new urbanism e

smart growth são apresentados como respostas ao imperativo do desenvolvimento urbano

sustentável, que impõe novos padrões de pensamento e ação. Para os proponentes dessas abordagens, o desenvolvimento sustentável e o planejamento urbano são noções complementares.

Sob tal ponto de vista, o desenvolvimento urbano sustentável oferece uma oportunidade para renovação das práticas participativas do planejamento urbano, na medida em que o conceito de sustentabilidade pode se tornar uma estrutura para interesses especiais ao adotar uma perspectiva inclusiva e global. Neste contexto, a participação popular é encarada como um princípio constitutivo do desenvolvimento urbano, pois o desafio deixaria de ser a racionalização do espaço urbano, mas um desenvolvimento integrado aos imperativos sociais, econômicos e ambientais de longo prazo.