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O indivíduo e as instâncias políticas

A POLÍTICA DE DAVID HUME; UMA RECONCILIAÇÃO DISTINTA ENTRE LIBERALISMO E

E JUDITH BUTLER

1- O indivíduo e as instâncias políticas

O reconhecimento do indivíduo, pelas agências políticas presentes em seu espaço social, possibilita e assegura a aplicação de seus direitos e a garantia de seu deslocamento e autonomia em seu próprio núcleo: “Em geral, o reconhecimento, é conhecer algo por aquilo que é”1. Apesar da problemática a qual envolve a instituição destas mesmas agências, referente ao campo de captação dessa mesma recognição, o ser humano, perpassado pelo “tecido de reconhecimento” dessas instâncias, é legitimado e posicionado no chamado status quo.

Michel Foucault defende, por exemplo, que as instituições políticas existentes pertenceriam, tal como uma hipótese, aos macropoderes (O Estado, a Igreja, a Escola), estes detém o poder de normalizar o sujeito em sua própria teia social. Afirmando, dessa forma, a possibilidade do mesmo de mobilizar-se socialmente e, ao mesmo tempo, sustentar a base econômica a qual mantém a sociedade: “O século XVIII encontrou um regime por assim dizer sináptico de poder, de seu exercício no corpo social, e não sobre o corpo social”2. Deste modo, ao mesmo tempo em que o indivíduo é dominado por essas estruturas de poder, e simultaneamente tendo seu corpo modelado, ele também encontra a oportunidade de conceber uma mobilização que permita a amplitude de seu reconhecimento enquanto sujeito ético e múltiplo.

Em sua teoria política, Judith Butler compreende que as instâncias políticas privilegiam uma determinada parcela da população global, enquanto outra vivência uma existência repleta de domínios que cerceiam não apenas o corpo individual dos supostos componentes, mas como também a extensão de sua liberdade. Seja dos homossexuais, das lésbicas, ou os judeus ou os palestinos, a autora intensifica sua crítica de que o

1 ABBAGNANO, 2012, p.982.

2 FOUCAULT, 2014a, p.215. Em referência ao texto Sobre a Prisão (2014a, p.213-233),

entrevista concedida por Foucault à época do lançamento da obra Vigiar e Punir, publicada em fevereiro de 1975. Essa entrevista integra a compilação Microfísica do Poder.

reconhecimento das agências políticas constitutivas, das mais variadas comunidades sociais, limitam seu poder de captação de toda a diversidade existente na vida humana moral e também ética: “O reconhecimento não pode ser reduzido à formulação e à emissão de juízos sobre os outros”3. Nessa abordagem, o campo semântico do reconhecimento, na concepção de Butler, limita a ação do humano e intensifica a violência ética que este vem a sofrer.

1.1- A Política e o Reconhecimento

Em sua teoria política, Foucault pretendeu demonstrar como o corpo do indivíduo foi percorrido pelas estruturas de poder e transformado em uma rede de inscrições, a qual reposicionou esse mesmo corpo, como uma autêntica produção dos mecanismos responsáveis (o hospital, a prisão, a escola, o exército) pela instituição dessa organicidade, na forma de mantenedora da normatividade do corpus social: “O poder consiste, em termos gerais, em conduzir condutas e dispor de sua probabilidade induzindo-as, afastando-as, facilitando-as, dificultando-as, limitando-as, impedindo-as”4. Cada indivíduo confronta-se com os micropoderes que o cercam e outorgam uma espécie de regramento social que direciona-se ao nivelamento de seu comportamento e de sua subjetividade. Ao tratar da política, Foucault5 analisa a monarquia francesa para esclarecer sua compreensão da mesma na aula de 8 de março de 1978, do curso Segurança, Território, População (1978-1979), escrevendo:

A política deixou de ser uma maneira de pensar própria a certos indivíduos, certa maneira de raciocinar própria a certos indivíduos. Ela se tornou um domínio, um domínio valorizado de forma positiva na medida em que tenha sido integrada nas instituições, nas práticas, nas maneiras de fazer, dentro do sistema de soberania da monarquia absoluta francesa.

As noções de corpo e de política foucaultianos complementam-se à medida que o corpo na ótica de Foucault é político e arregimentado pelos Sistemas de Pensamento e pelas estruturas de poder. O corpo é o resultado da ação dessas instâncias na modelagem, no encarceramento e no estudo da subjetividade do indivíduo, um modo de acesso a este. Sua

3 BUTLER, 2015a, p.63. 4 CASTRO, 2016, p.326. 5 2008a, p.329.

integralidade somática é a consequência da ação de poderes que competem à Educação, à Psiquiatria, à Psicologia, à Medicina e as demais Ciências que definem os limites do que o sujeito pode ou não apreender. Mas, como isso se relaciona com o reconhecimento das agências políticas?

Judith Butler reflete que os signos que ordenam os seres humanos em sua espacialidade social determinam-no como pertencente, ou não, ao constructo linguístico que os regem e implicam significações que delineiam seus gêneros, condições políticas e sociais, assim como geográficas: “A linguagem não só registra, preserva e transmite, embora em algumas ocasiões faça todas essas coisas. Invariavelmente, a linguagem também age sobre o material que registra, preserva e transmite”6. A autora argumenta que, quando um indivíduo é interpelado por sua esfera política, por sua comunidade social, a proferir um relato sobre si mesmo, isso pressupõe que o limite de sua autoconstituição ética foi acionado. Dizer quem se é, de fato, de acordo com Butler, é uma tarefa impossível e invasiva, pois o sujeito não poderia conceber uma história de si mesmo sem considerar os acontecimentos pré-discursivos que o antecedem. O que, na perspectiva butleriana, poderia ocasionar uma situação de violência ética, caso o indivíduo questionado não corresponda ao arquétipo sancionado por seu campo social e político. Em sua obra Relatar a Si Mesmo: Crítica da Violência Ética, de 2003, Butler elucida acerca desse procedimento:

O “eu” não pode fazer um relato definitivo ou adequado de si mesmo porque não pode retornar à cena de interpelação que o instaurou e não pode narrar todas as dimensões retóricas da estrutura de interpelação na qual ele relata a si mesmo. Essas dimensões retóricas da cena de interpelação não podem ser reduzidas à narrativa, o que fica claro no contexto da transferência, ou melhor, no modelo de comunicação que a transferência, ou melhor, no modelo de comunicação que a transferência proporciona, porque nele somos o sujeito com quem de vez em quando se fala e que também fala, sempre, direta ou indiretamente, na forma de uma interpelação7.

Em conformidade as teorias defendidas por Foucault e Butler, pode- se compreender que o indivíduo é reconhecido por duas instâncias padrões que, além de interpelá-lo, transformam-no, assujeitam-no e normatizam sua

6 BUTLER, 2017, p.194. 7 2015a, p.90.

existência: a linguagem e a política: “O vínculo social não tem pré-história. Dizer que ele não tem pré-história significa que ele é, ao mesmo tempo, permanente e indispensável”8. Dessa maneira, seria possível estudar a instância política como coadunada a instância da linguagem, ambas estabelecendo barreiras sobre o deslocamento não só do corpo do indivíduo, mas também de sua subjetividade e, paralelamente, sua possibilidade de firmar epistemologias. O constructo político então, impregnado de signos, admite o sujeito em categorias únicas que determinam sua historicidade, sua moral, sua ética e sua vivência.

1.2- O sujeito e a identidade

Em sua obra Caminhos Divergentes: Judaicidade e Crítica do Sionismo, de 2012, Butler desenvolve um estudo a partir da análise histórica do povo judeu tendo como base a Segunda Guerra Mundial (1939- 1945) e o Totalitarismo Nazista (1933-1945). Na perspectiva da autora o genocídio do povo judeu, nos campos de concentração nazistas, fundou uma espécie de parâmetro o qual redesignou os termos da violência humana e a tentativa de desumanizar o indivíduo. O processo de descaracterização e a tentativa de extinguir os judeus por parte dos nazistas demonstrou, na ótica de Butler, que a facilidade de não reconhecer uma determinada vida, ou uma determinada identidade, atestou-se como viável, a teórica alega que: “Uma crítica da violência é uma investigação sobre as condições para a violência, mas também um questionamento sobre como a violência se circunscreve de antemão pelas perguntas que fazemos a respeito dela”9. Em sua observação, a autora reflete sobre à proporção que o genocídio judaico suscitou após o fim da Segunda Grande Guerra e, após a instituição do Estado de Israel em 1948, a maneira como os judeus se relacionaram com os palestinos, por exemplo. Butler assimila que o não reconhecimento da cultura, da identidade, assim como da historicidade deste povo (durante o nazismo) gerou grandes conflitos e o

8 FOUCAULT, 2008b, p.407. Esta citação encontra-se presente na aula de 4 de abril de 1979

(2008b, p.397-430), no curso Nascimento da Biopolítica (1978-1979). Nestas aulas, Foucault estuda, dentre uma das teorias abordadas, o surgimento da política neo-liberalista no Ocidente como uma espécie de “razão governamental” no esquadrinhamento político e econômico da sociedade, após o esfacelamento do poder soberano.

problema da despossessão dos habitantes palestinos de suas terras10 e casas para a criação de Israel. Desta forma, a autora mostra-se ciente da necessidade de não interpretar uma crítica à violência de Estado, em relação a Israel, como um antissemitismo. Em Caminhos Divergentes, a autora afirma:

Afinal, se aceitamos que toda e qualquer crítica sobre Israel é efetivamente antissemita, então ratificamos essa equação específica toda vez que nos calamos. A única maneira de lutar contra a equação que associa a crítica de Israel ao antissemitismo é mostrar clara e repetidamente, e com um forte apoio coletivo, que a crítica de Israel é justa e que todas as formas de antissemitismo, assim como outras formas de racismo, são absolutamente inaceitáveis11.

Concebendo uma intersecção com a obra de Foucault, a questão da guerra, do Nazismo e da biopolítica, esta perpetrada pelos regimes totalitários, tais tópicos consagraram uma espécie de “poder regulamentar”12 responsável por administrar toda a vida biológica do indivíduo. Incluindo, assim, seus limites corporais e também subjetivos. Como uma espécie de tecnologia política de economia global em nível de população, a crise da identidade com o Regime Nazista, por exemplo, estruturou um novo modo de delimitar os desígnios da vida e também da morte: “A biopolítica lida com a população, e a população como problema político, como um problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder”13.

10 Para uma análise mais completa do problema dos “palestinos despossuídos”, acessar o

capítulo da obra de Butler Caminhos Divergentes, intitulado: Para Pensar o Presente, Primo

Levi (2017, p.183-206).

11 BUTLER, 2017, p.29.

12 Semelhante ao poder disciplinar, concebendo que este primeiro direciona-se inteiramente

ao corpo do indivíduo e a maximização de sua força física, o poder regulamentar atua propositalmente em relação à vida do sujeito a partir de sua biologia. Como um modo de impor demarcações a vida e a morte do ser humano, o poder regulamentar é materializado por Foucault com base na atuação do nazismo e da necessidade de “preservação biológica” defendida por este. Na aula de 17 de março de 1976 (2010, p.201-222), do curso Em Defesa

da Sociedade (1975-1976), Foucault (2010, p.207) comenta acerca dessa ramificação do

poder: “E eis que agora aparece um poder que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer viver e deixar morrer.”. Para um estudo mais aprofundado, acessar a supracitada aula de 17 de março de 1976.

A ideia de uma restrição capaz de envolver o corpo do indivíduo, por um conjunto de regras disciplinares, circundando sua vida orgânica e a capacidade de sua produção epistemológica, essas estratégias atuam diretamente em seu autogerenciamento ético na maneira como este percebe o mundo a sua volta. Mesmo com a possibilidade de exclusão do sujeito, quando este subverte o “pacto social”, Foucault clarifica que a experiência da exclusão é amplamente necessária a instituição do espaço social14. Os juízos de valor correlacionados a normalidade e a anormalidade, a integridade e a perversão, a razão e a desrazão, estipulam os pilares teóricos do reconhecimento do indivíduo no corpus social: “Não há dúvida de que uma sociedade sem restrições é inconcebível; mas eu só posso corroborar, e dizer que essas restrições devem estar ao alcance daqueles que as sofrem a fim de que, pelo menos, lhes seja dada a possibilidade de modificá-las”15. Dessa forma, é possível compreender a hipótese defendida por Foucault, acerca dos macropoderes, sustentados por relações cabais de poder (paciente/médico-professor/aluno- confessor/confessando), na tentativa de impor restrições às possibilidades de reconhecimento e legitimação política no espectro da sociedade. Na aula de 17 de março de 1976, do curso Em Defesa da Sociedade, Foucault argumenta:

Não quero fazer essa oposição entre Estado e instituição atuar no absoluto, porque as disciplinas sempre tendem, de fato, a ultrapassar o âmbito institucional e local em que são consideradas. E, depois, elas adquirem facilmente uma dimensão estatal em certos aparelhos como a polícia, por exemplo, que é a um só tempo aparelho de disciplina e um aparelho de Estado (o que prova que a disciplina nem sempre é institucional). E, da mesma forma, essas grandes regulações globais que proliferam ao longo do século XIX, nós as encontramos, é claro, no nível estatal, com toda uma série

14 Na aula de 10 de março de 1971 (2014c, p.151-164), do primeiro curso ministrado no

Collège de France: Aulas Sobre a Vontade de Saber (1970-1971), Foucault (2014c, p.162)

examina a importância do personagem do criminoso para o arranjo do espaço social, ele explica: “Não é porque o espaço social se constituiu e se fechou em si que o criminoso foi excluído dele; e sim a possibilidade de exclusão dos indivíduos é um dos elementos de sua formação”.

15 FOUCAULT, 2014b, p.165. Entrevista concedida por Foucault no ano de 1982, intitulada

Escolha Sexual, Ato Sexual (2014b, p.156-173), presente no nono volume, da coleção Ditos e Escritos: Genealogia da Ética, Subjetividade e Sexualidade.

de instituições subestatais, como as instituições médicas, as caixas de auxílio, os seguros, etc16.

O questionamento o qual se instala neste presente momento é o seguinte: como elaborar uma proposta de uma nova agência política, ante ao controle estatal, a violência ética e os problemas gerados pela incapacidade de assegurar a vida e o bem-estar de centenas de indivíduos, estes os quais tem sua identidade, culturalidade e processos históricos desconsiderados?

A resposta parece, novamente, centrar-se na questão do corpo como oportunidade de prática autônoma-emancipatória e a análise da subjetivação individual na abordagem de ressignificação do discurso que intensifica as regras do que pode ou não ser proferido, assim como nas tecnologias que permitem a confrontação e mobilização política do sujeito no recinto social. Desta maneira, a convergência do corpo e a liberdade parecem pressupor alternativas plausíveis nas concepções tanto foucaultianas, tanto como butlerianas.