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A questão do senso comum em “as origens do totalitarismo” Em geral, a teorização de Arendt acerca do senso comum,

A POLÍTICA DE DAVID HUME; UMA RECONCILIAÇÃO DISTINTA ENTRE LIBERALISMO E

ARENDT: OS JUÍZOS E O PENSAMENTO POLÍTICO

1- A questão do senso comum em “as origens do totalitarismo” Em geral, a teorização de Arendt acerca do senso comum,

especificamente no que tange à diferenciação com o sensus communis, é estudada a partir da obra Lições sobre a Filosofia Política de Kant. Todavia, é interessante atentar que as primeiras menções de Arendt ao senso comum aparecem em As Origens do Totalitarismo (1951), detidamente na última parte - denominada "Ideologia e Terror", escrito em 1953 e incluído na segunda edição de OT, em 1958 -, em que ela aborda a solidão em um viés político. Conforme Lafer, “a função do senso comum é integrar o indivíduo no mundo intersubjetivo e visível das aparências, que é o mundo dado pelos cinco sentidos, no qual estamos e existimos enquanto espécie”7. Arendt destaca que o senso comum é essencial para o contato com o outro: Até mesmo a experiência do mundo, que nos é dado material e sensorialmente, depende do nosso contato com os outros homens, do nosso senso comum que regula e controla todos os outros sentidos, sem o qual cada um de nós permaneceria enclausurado em sua própria particularidade de dados sensoriais, que, em si mesmos, são traiçoeiros e indignos de fé. Somente por termos um senso comum, isto é, somente porque a terra é habitada, não por

5 Posteriormente a obra será mencionada apenas como “OT”. 6 A seguir, referida apenas como “LFPK”.

um homem, mas por homens no plural, podemos confiar em nossa experiência sensorial imediata. No entanto, basta que nos lembremos que um dia teremos de deixar este mundo comum, que continuará como antes, e para cuja continuidade somos supérfluos, para que nos demos conta da solidão e da experiência de sermos abandonados por tudo e por todos8.

A partir desse excerto, inicialmente, é interessante notar que, analisando o pensamento arendtiano em perspectiva, é a partir das experiências reais que, nesse caso, denotam a falta, a destruição desse sentimento de senso comum (uma via negativa), que, posteriormente, essa temática será explicada em uma via positiva, definindo o conceito. Dessa forma, se a destruição Totalitária do senso comum fez com que as pessoas se afastem do mundo comum, é a sua restauração (ou manutenção), que, inversamente, possibilita a existência mundana na pluralidade9.

Em relação à definição do senso comum, em um texto posterior, intitulado A crise da cultura (1960), Arendt apresenta o senso comum como aquele “em virtude do qual nós e nossos cinco sentidos individuais estão adaptados um único mundo comum todos nós, e com a ajuda do qual nele nos movemos”10. Por seu turno, em OT, Arendt refere-se ao senso comum como a reunião de uma série de sensações esparsas, que serão objeto do pensamento, e que coloca o ser humano em contato com a realidade. Por conseguinte, a "perda" do senso comum equivale ao colapso de um “universo imediatamente aceito de plausibilidades e significações que promovem a intersubjetividade do mundo, tornando o comum e assegurando a confiança dos homens na presença de uma realidade compartilhável pela experiência sensorial”11. Embora não haja algo como diversos tipos de senso comum no pensamento arendtiano, é interessante notar os diversos contextos em que ela o evoca, ainda que para tratar de questões distintas.

Dessa forma, se, em A crise da cultura, o senso comum surge como um correlato a perda do mundo comum em uma sociedade de massa12, em

8 ARENDT, 1989, p.527. 9 BORREN, 2013, p.209. 10 2011, p.227. 11 NETO, 2009, p.30.

12 A destruição do senso comum, conforme afirma Arendt em A crise da cultura, relaciona-se

com a formação de “massas”; isto é, homens e mulheres que não vivem junto em um mundo comum, apenas agregados, sem relações comunitárias, laços sociais e interesses comuns.

OT demonstra-se que o homem da massa, tamanha a superficialidade e o desenraizamento, acaba por desprezar o senso comum (as experiências sensoriais imediatas e a percepção da pluralidade) voltando-se à ideologia totalitária, que afirma haver uma realidade mais profunda do que a percebida pelos sentidos. Conforme Arendt, “a lógica não é idêntica ao raciocínio ideológico, mas indica a transformação totalitária das respectivas ideologias”13. Dessa forma, as ideologia totalitária despreza a factualidade em prol de um sentido uno e coerente, como se fosse uma “realidade lógica”, contrária a “realidade dos fatos”. Segundo Arendt:

Fugindo à realidade, as massas pronunciam um veredicto contra um mundo no qual são forçadas a viver e onde não podem existir, uma vez que o acaso é o senhor supremo deste mundo e os seres humanos necessitam transformar constantemente as condições do caos e do acidente num padrão humano de relativa coerência14.

Assim, ao invés das percepções do senso comum, o Totalitarismo produz “a lógica de uma ideia”, que estabelece um mundo previsível, inteiramente coerente, alheio à espontaneidade humana; isto é, restrito a “esse falso mundo de coerências, que é mais adequado às necessidades da mente humana do que a própria realidade”, em que, “através de pura imaginação, as massas desarraigadas podem sentir-se à vontade e evitar os eternos golpes que a vida e as experiências verdadeiras infligem aos seres humanos e às suas expectativas” 15.

1.1- A solidão e o pensamento: política e filosofia

O indivíduo, em uma sociedade de massa, antes e durante o Nazismo (1933-1945), era apenas um “animal do sistema, tornando um instrumento, pronto para aceitar qualquer situação”16. Esse indivíduo que, diante do sentimento de solidão, está “desenraizado”, aceita facilmente o raciocínio ideológico do Nazismo – que, para tanto, vale-se da perda do senso comum. Se o senso comum está relacionado ao sentido do real,

13 2002a, p.48. 14 1989, p.404.

15 ARENDT, 1989, p.402. Nesse sentido, Arendt enfatiza a importância da propaganda: “A

força da propaganda totalitária — antes que os movimentos façam cair cortinas de ferro para evitar que alguém perturbe, com a mais leve realidade, a horripilante quietude de um mundo completamente imaginário — reside na sua capacidade de isolar as massas do mundo real.”

percebe-se que a sua operação se opõe à ideologia totalitária que afirma a possibilidade de compreender o processo histórico a partir de sua lógica interna, como se houvesse uma “verdade” encoberta na realidade. Segundo Arendt, a ideologia é contrária ao pensar por si e à ação política17:

Aquilo de que o sistema totalitário precisa para guiar a conduta dos seus súditos é um preparo para que cada um se ajuste igualmente bem ao papel de carrasco e ao papel de vítima. Essa preparação bilateral, que substitui o princípio de ação é a ideologia18.

A aplicação de uma ideologia capaz de explicar os acontecimentos a partir de uma única premissa e remover o espaço da ação humana, requer a eliminação das convicções. Trata-se, então, da “preparação bilateral”, em que a ação humana é substituída pela ideologia, pela qual ou se é aliado ou inimigo do Regime.

Dessa forma, a solidão acaba sendo o “fundamento para o terror, a essência do governo totalitário”, e a ideologia, a imposição “da lógica de uma ideia”. A solidão é maior do que o simples isolamento ("estar só"). Para Ela, a solidão é típica do Regime Totalitário que, por pretender abranger o domínio “total” da vida, o “isolamento”, do espaço público, adentra a esfera privada e transforma-se em “solidão”. Assim, para o sujeito resta um sentimento no “qual também me encontro sozinho, mas abandonado não apenas de companhia humana, mas também de minha própria companhia”19. O isolamento é um momento anterior à solidão, porque ainda há, em relação à atividade do pensamento, o “dois-em-um”, o diálogo do eu consi consigo mesmo, necessário porque “eu não sou apenas para os outros, mas também para mim mesmo; e, nesse último caso, claramente eu não sou apenas um”20. Essa diferença que se instala na unicidade, segundo Arendt, adquire identidade na própria ação:

A rigor, todo ato de pensar é feito quando se está a sós, e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogo dos dois-em-um não perde o contato com o mundo dos meus semelhantes, pois que

17 Dessa forma, segundo Arendt, “o comportamento substituiu a ação como principal forma

de relação humana” (2010, p.50). Em outras palavras, a espontaneidade da ação política é substituída pelo mero “comportamento”, caracterizado por uma apatia conformista em que o homem encontra-se inteiramente submerso na rotina do cotidiano (Cf. ARENDT, 2010, p.53).

18 OT, p.520.

19 ARENDT, 1989, p.519. 20 ARENDT, 2000, p.205.

Eles são representados no meu eu, com o qual estabeleço o diálogo do pensamento. O problema de estar a sós é que esses dois-em- um necessitam dos outros para que voltem a ser um — um indivíduo imutável cuja identidade jamais pode ser confundida com a de qualquer outro21.

Nesse excerto, percebe-se a maneira como Arendt pensa as faculdades do espírito, ainda que de maneira independente, mas sempre inter-relacionadas. O dois-em-um é uma formulação de Sócrates22 e, no pensamento arendtiano, relaciona-se com a atividade do pensar. Por seu turno, o pensar pode ser conceituado a partir de uma citação atribuída por Cícero a Catão e exposta no final de A condição humana (que aparece também na epígrafe de VE): “Nunca um homem está mais ativo do que quando nada faz, nunca se está menos só que quando se está consigo mesmo”23. Essa citação é interessante porque, diferente da concepção usual (que associa o ato de pensar a um nada fazer, puramente contemplativo), o pensar, segundo Arendt, é uma atividade que demanda um estado de recolhimento (que, reiterando, não se identifica com a solidão).

Para ela24, a atividade de pensar “permite ao espírito retirar-se do mundo, sem jamais poder deixá-lo ou transcendê-lo.” Por essa “retirada”, entende-se uma suspensão nas atividades do mundo físico, das aparências, em que os seres humanos estão no mundo e interagem entre si. Nesse sentido, como nota Schio, o pensar é um “vai-e-vem” do mundo das aparências para esse mundo interior, em que “as perguntas são oriundas da vida comum e as respostas do eu pensante”25.

Retomando a questão do “dois-em-um”, Arendt afirma que “esses dois-em-um necessitam dos outros para que voltem a ser um — um

21 ARENDT, 1989, p.527.

22 Duarte situa a influencia de Sócrates no pensamento arendtiano: “Para Arendt, a fusão

socrática entre filosofa e política é concebida sob a forma de explicitação dos processos do pensamento no diálogo público. Começa-se a perceber que o pensamento, capaz de assumir um efeito ético-político no mundo das aparências, não pode exercitar-se, exclusivamente, à custa de um distanciamento radical e descomprometido em relação ao mundo, mas deve manifestar-se publicamente no diálogo, mesmo se o próprio pensar é, essencialmente, uma ocupação solitária” (2000, p.352).

23 ARENDT, 2010, p.403. Em latim: “Numquam se plus agere quam nihil cum ageret,

numquam minus solum esse quam cum solus esset” (Catão).

24 ARENDT, 2000, p.36. 25 2012, p.74.

indivíduo imutável cuja identidade jamais pode ser confundida com a de qualquer outro”26. Assim, para a confirmação daquilo que foi pensado, é necessária a “companhia dos outros”. Todavia, entre o pensamento e a vontade, há um momento de decisão, que concerne à atividade do julgar. Uma possível relação entre o pensar e o julgar pode ocorrer, então, pelo “vento do pensamento” que, por necessitar da pluralidade humana, prescinde do sesnsus communis de Kant27. Em momentos de crise, tal como aconteceu na Alemanha Nazista, aqueles que pensam (atividade de todos os seres humanos, não apenas dos pensadores profissionais), necessitam abandonar as teorias e os preconceitos existentes para que esse “vento do pensamento”, em seu “elemento depurador”, torne possível julgar o inusitado, o sem precedentes:

Em tais emergências, resulta que o componente depurador do pensamento (a maiêutica de Sócrates, que traz à tona as implicações das opiniões não-examinadas e portanto as destrói - valores, doutrinas, teorias e até mesmo convicções) é necessariamente político. Pois essa destruição tem um efeito liberador sobre outra faculdade, a faculdade do juízo, que podemos chamar com alguma propriedade de a mais política das capacidades espirituais humanas28.

A maiêutica socrática, assim como o que Arendt chama de “vento do pensamento”, questionava as crenças dos cidadãos atenienses e, ao invés de estabelecer novas certezas, estabelece um “vazio”, um espaço com distanciamento, necessário para os momentos em que, para julgar, não é mais suficiente basear-se nos padrões existentes – (juízos determinantes29).

26 1989, p.528.

27 A noção de sensus communis é introduzida por Kant no §40 da Crítica da Faculdade do

Juízo, assumindo uma perspectiva política no pensamento arendtianto. Acerca disso, ver a segunda parte deste trabalho.

28 ARENDT, 2000, p.144.

29 A faculdade do juízo é definida por Kant, em geral, como “a faculdade de pensar o

particular como contido no universal” (KANT, 2008, p.11, [KU, XXVI]). Caso a regra, o princípio, a lei esteja dado, “a faculdade do juízo, que nele subsume o particular, é determinante. [...] Porém se só o particular for dado, para o qual ela deve encontrar o universal, então a faculdade do juízo é simplesmente reflexiva” (Idem, 2008, p.11). Assim, enquanto o juízo determinante aplica uma regra já dada ao caso em particular, o juízo reflexivo, parte do caso em si para buscar a regra.

Nesse contexto, Arendt evoca “a faculdade de julgar particulares (tal como foi revelada por Kant), a habilidade de dizer 'isto é errado', 'isto é belo', e por ai afora”30. Todavia, embora estejam inter-relacionadas, a faculdade de julgar “não é igual à faculdade de pensar [porque o] pensamento lida com invisíveis, com representações de coisas que estão ausentes. O juízo sempre se ocupa com particulares e coisas ao alcance das mãos”31. A partir disso, Arendt investigou e apropriou-se da Terceira Crítica de Kant, afirmando que o juízo estético (que, em Kant, refere-se ao gosto), seria a verdadeira Filosofia Política (não-escrita) de Kant.

2. A vida do espírito: o juízo e a valorização do sensus communis