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O julgamento do Recurso Extraordinário 848.826

Em um breve resumo da situação fática que originou a demanda que serviu como paradigma, pode-se dizer que se trata de recurso extraordinário pelo qual José Rocha Neto se

insurgiu contra acórdão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o qual manteve decisão do Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Ceará (TRE-CE) indeferindo seu registro de candidatura ao cargo de Deputado Estadual. A decisão impugnada classificou o recorrente como inelegível, nos termos do art. 1º, I, g, da Lei Complementar nº 64/1990, sob o fundamento de que, para a caracterização da hipótese da alínea g, é suficiente a existência do pronunciamento do Tribunal de Contas que rejeita contas do Prefeito que age como ordenador de despesas. Em suma, o recorrente afirmou ser o Tribunal de Contas dos Municípios do Ceará (TCM-CE) incompetente para apreciar as contas dos Prefeitos Municipais e, também, alegou não estar evidenciada a prática de ato doloso de improbidade administrativa de modo a acarretar a inelegibilidade do recorrente e impedir o indeferimento de sua candidatura (Supremo Tribunal Federal, 2016, p. 03/04).

Na data de 10 de agosto de 2016, o plenário do Supremo Tribunal Federal emitiu sua decisão final sobre o tema ao julgar o recurso extraordinário supracitado com repercussão geral reconhecida.

Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Ministro Ricardo Lewandowski (Presidente), que redigirá o acórdão, fixou tese nos seguintes termos:

“Para os fins do art. 1º, inciso I, alínea "g", da Lei Complementar 64, de 18 de maio de 1990, alterado pela Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010, a apreciação das contas de prefeitos, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com o auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de 2/3 dos vereadores”.

Plenário, 17.08.2016. (Supremo Tribunal Federal, 2016, documento on-line não paginado).

Por maioria de votos, o plenário da Suprema Corte decidiu acompanhar a divergência apresentada pelo Presidente da Corte à época, Ministro Ricardo Lewandowski, no sentido de que, tanto as contas de governo, quanto as contas de gestão, deveriam ser julgadas pela Câmara Municipal, restando ao Tribunal de Contas apenas opinar, tecnicamente, a respeito delas. Contudo, este parecer pode ser completamente irrelevante caso 2/3 da casa legislativa decida contraria-lo.

O julgamento encerrou-se com apertada maioria (6x5), o que por si só já mostra o tamanho da controvérsia a respeito do tema.

Votaram pela competência das Câmaras Municipais: Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Edson Fachin, Carmen Lúcia, Marco Aurélio e Celso de Mello.

Votaram pela competência dos Tribunais de Contas: Ministros Luis Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux e Dias Toffoli.

Na mesma oportunidade, o plenário da Suprema Corte apreciou, conjuntamente, o Recurso Extraordinário nº 729.744, com relatoria do Ministro Gilmar Mendes. Neste, decidiu-se que no caso de omissão do Poder Legislativo no julgamento das contas do Prefeito, o parecer do Tribunal de Contas não gerará a inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei 64/90.

O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, fixou tese nos seguintes termos: “O parecer técnico elaborado pelo Tribunal de Contas tem natureza meramente opinativa, competindo exclusivamente à Câmara de Vereadores o julgamento das contas anuais do Chefe do Poder Executivo local, sendo incabível o julgamento ficto das contas por decurso de prazo. Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 17.08.2016. Supremo Tribunal Federal, 2016, Inteiro Teor do Acórdão ref. RE 729.744, p. 117).

Em suma, pode-se concluir que, de acordo com tais decisões, caberá aos Vereadores decidirem se o Prefeito terá suas contas de gestão aprovadas e, consequentemente, se este poderá, eventualmente, se candidatar em outro pleito ou não.

3.4 Análise da decisão

É evidente a temeridade que tal conclusão causa. Isto porque, à parte o devido respeito aos ocupantes de cargos no Legislativo Municipal, aumenta-se absurdamente a possibilidade de contas, ou até mesmo candidaturas, serem aprovadas/realizadas levando-se em conta tão somente decisões de cunho pessoal ou partidário.

Principalmente nas pequenas cidades, que são maioria no país, onde há menos Vereadores e, consequentemente, é mais fácil obter 2/3 da casa Legislativa, o parecer do Tribunal de Contas, devidamente fundamentado e provido de conhecimento técnico, simplesmente pode ser desprezado caso a referida fração da casa legislativa assim entenda.

Mais pavoroso ainda é que, ainda que a Câmara Municipal se omita no julgamento das contas do chefe do Executivo e o parecer técnico do Tribunal de Contas sugira a desaprovação das contas, não poderá ser declarada inelegibilidade do mesmo com base no artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei 64/90.

Ainda, poderá ocorrer uma outra situação: um ordenador de despesas pode ter suas contas julgadas positivamente pelo Tribunal de Contas, mas, por conta de interesses

partidários contrários aos seus por parte dos representantes do Legislativo Municipal, tais contas podem ser desaprovadas.

Em qualquer destas hipóteses, a relação Prefeito-Vereadores irá tomar um rumo extremamente temerário, facilitando muito a elevação de interesses partidários em detrimento da probidade administrativa.

3.4.1 Da pertinência da argumentação dos votos vencidos

Embora a simples leitura do art. 31 da Constituição Federal e de seu parágrafo 2º dê a entender que o Tribunal de Contas é mero auxiliador na apreciação, este dispositivo não pode ser interpretado de maneira isolada, pois, conforme explicado no primeiro capítulo deste trabalho, há dois tipos de contas: as de governo e as de gestão, e elas não podem ser tratadas como se fossem da mesma natureza.

Foi exatamente este ponto que os votos vencidos abordaram durante o julgamento, a diferença entre os dois tipos de contas e a consequente diferenciação em seus respectivos julgamentos, em função da natureza de cada uma.

É importante ressaltar que quanto às contas de Governo (anuais) não restam dúvidas:

as Câmaras Municipais são legitimamente competentes para efetuarem o julgamento final e, dependendo da decisão, pode ser gerada inelegibilidade. Isto porque estas contas apresentam um viés estritamente político, refletindo a atuação do prefeito como Governante, pondo em prática o seu plano de governo, levando-se em conta a execução global do orçamento e a obediência às normas orçamentárias, em especial às disposições constitucionais que ordenam percentuais mínimos para educação e saúde.

A problemática surge, portanto, quando se diz respeito às contas de Gestão, pois, nestas, o Prefeito atua como um funcionário público que pratica atos administrativos, ou seja, como gestor e ordenador de despesas, sendo mais pertinente, então, um julgamento técnico, buscando individualizar a legalidade de cada ato praticado. Para esta avaliação, devem ser observados os critérios previstos na da Constituição Federal, da Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 8.666/93), Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000), lei orçamentária vigente e demais normas às quais o prefeito esteja subordinado.

Esta legislação citada é alvo de intensa cobrança nos concursos para ingresso nas carreiras dos Tribunais de Contas e, também, faz parte do dia a dia desses servidores.

Todavia, o mesmo não se pode dizer a respeito dos Vereadores.

Não se questiona, aqui, a capacidade, inteligência e honestidade dos parlamentares municipais, mas sim suas atribuições. Ora, se para ser eleito Vereador o cidadão não precisa, necessariamente, ter formação jurídica ou conhecimento profundo da Lei de Licitações e Contratos, por exemplo, como pode-se exigir que este faça um julgamento técnico das contas de gestão do chefe do poder executivo Municipal?

Foi exatamente neste sentido a argumentação dos Ministros que tiveram voto vencido no julgamento do RE 848.826, como por exemplo, o Ministro Luis Roberto Barroso, o qual sintetizou brilhantemente, em seu voto, a ideia que deveria prevalecer quando disse “A competência para julgamento será atribuída à Casa Legislativa ou ao Tribunal de Contas em função da natureza das contas prestadas e não do cargo ocupado pelo administrador”.

O indivíduo pode até ser chefe do Poder Executivo municipal, contudo, se for, também, ordenador de despesas, deverá submeter-se às regras aplicadas aos ordenadores.

Nesta análise não se menospreza o teor do artigo 31 da Constituição Federal que, como já citado algumas vezes ao longo deste trabalho, foi utilizado como base da fundamentação dos votos vencedores, mas sim procura-se evidenciar que este artigo deve ser interpretado em conjunto com o artigo 71 da Constituição Federal, o qual nos ensina que há duas categorias de contas.

Neste sentido, no mesmo voto supracitado, o Ministro Barroso explicou:

Os prefeitos não precisam ser ordenadores de despesa, podendo delegar essa tarefa a auxiliares, mas, se decidirem assumir a função, estão sujeitos às regras aplicadas aos ordenadores. O que se não pode fazer, a meu ver, é politizar o controle da probidade e da honestidade dos gastos.Destaco, ainda, que se o prefeito considerar que houve abuso no julgamento pelo Tribunal de Contas, a controvérsia pode ser sanada pelo Judiciário.

O saudoso ex-Ministro Teori Zavascki, em seu voto, também afirmou:

Ora, quando isso ocorre (omissão da Câmara), o ato do Tribunal de Contas também tem eficácia de decisão. O prefeito ordenador de despesa também sofre multa. O prefeito ordenador de despesa, que tem contra si constituído um débito, também é sujeito passivo dessa decisão, que não é parecer prévio, mas sim um título executivo que pode ser voltado contra ele. Por tais razões, entendo que, quando o prefeito assume a condição, que não precisa assumir, de ordenador de despesa e assim pratica atos de gestão, ele fica sujeito ao regime dos demais ordenadores de despesa.