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O Modelo dos Níveis Sociais e a Capacidade Adaptativa ao Estresse

3.2 O Diálogo entre a Epidemiologia Social e a Psicologia Social sob a Ótica

3.2.1 O Modelo dos Níveis Sociais e a Capacidade Adaptativa ao Estresse

Como instigação inicial, percebe-se que muitos estudiosos tentam explicar como as desigualdades ambientais e sociais afetam a saúde, especialmente ao ser decomposta a experiência subjetiva como influência na forma de lidar com a adversidade. Noutras palavras, busca-se saber como a leitura e avaliação da realidade produzem alterações no processo de saúde-doença em diferentes contextos sociais. Partindo deste pensamento, Schulz e Northridge (2004) formularam um modelo teórico, aqui denominado como Modelo dos Níveis Sociais, objetivando categorizar os determinantes sociais que afetam perfil de saúde e estratificá-los em seus distintos planos de influência.

Em viés crítico, Schulz e Northridge (2004) destacaram que um aspecto ainda incipiente no rol de comprovações de impacto dos fatores psicossociais sobre a saúde é a compreensão dos processos de mediação psicológica dos estressores. Em geral, um problema notável é que a maioria dos modelos teóricos desenhados anteriormente não privilegiou os caminhos psicológicos da relação entre o indivíduo e o meio externo, supondo-se a exposição sem o crivo da avaliação dos estímulos provenientes de condições estressógenas; fato que despreza as nuanças da capacidade de adaptação humana por particularizar a noção de causalidade distal. Com efeito, permanece uma lacuna na relação do sujeito com o ambiente, pois, tal como defendido por Lazarus (1999) e Ericksen e Ursin (2004), o viés da mediação cognitiva resguarda uma poderosa ferramenta para a explicação da variabilidade de desfechos na saúde.

Ilustrando a supracitada colocação, é pertinente analisar que embora existam sistemas de exclusão institucionalizados em relação à discriminação de gênero, impactando nocivamente sobre a saúde das mulheres, não é possível defender que todas as mulheres submetidas a ambientes sexistas demonstrem elevada vulnerabilidade, posto que os recursos psicossociais adaptativos agem tornando algumas mulheres mais suscetíveis aos efeitos deletérios do estresse, enquanto outras exibem um mais adequado repertório de enfrentamento, mantendo satisfatório status de saúde.

No modelo de Schulz e Northridge (2004), os determinantes sociais estão divididos em três níveis intercomunicáveis, são eles: o fundamental (macrossocial e institucional), intermediário (mesossocial e comunitário) e o proximal (microssocial e interpessoal), todos estes que influem sobre o estado final da saúde e bem-estar (Figura 2).

1 Fundamental Nível Macrossocial 2 Intermediário Nível Mesossocial 3 Proximal Nível Microssocial 4 Saúde e Bem-Estar Indivíduos e Populações Ambiente Natural (topografia, clima, abastecimento de água) Fatores Macrossociais Condições históricas Ordenamento político Ordenamento econômico Leis Direitos Humanos Instituições sociais e Culturais Ideologias Desigualdades Distribuição de bens materiais Empregos e oportunidades Oportunidades na educação Distribuição da influência política Ambiente Construído Sistemas de transporte Serviços comerciais (shoppings, bancos, retirada de lixo, etc) Recursos públicos (parques, museus, bibliotecas) Habitações residenciais Imóveis comerciais Contexto Social Investimentos na comunidade (policiamento, manutenção de construções) Serviços reguladores (fiscais, ambientais, etc.) Articulação da comunidade Participação cívica Qualidade da educação Estressores Ambientais Vizinhança Crime e violência Atuação da polícia Insegurança financeira Toxinas ambientais Discriminação Comportamentos de Saúde Dieta, atividade física, exames periódicos

Integração social e Suporte social Participação e integração social

Redes sociais no trabalho e outros ambientes Suporte social Desfechos na Saúde Perfil de nascimento e na infância Obesidade Doenças cardiovasculares Diabetes Cânceres Violência Doenças infecciosas Doenças respiratórias Saúde mental

Todas as causas de mortalidade

Bem-Estar Isolamento Satisfação com a vida Felicidade

Incapacidades físicas e mentais

Imagem corporal Satisfação com o corpo

Figura 2. Determinantes Sociais da Saúde e Promoção de Saúde Ambiental - Modelo dos Níveis Sociais (Schulz & Northridge, 2004).

No nível fundamental, a saúde é influenciada por fatores distais, tais como o ambiente natural e estruturas macrossociais políticas e econômicas, que produzem desigualdades em relação à quantidade de exposição a estressores inespecíficos. Como constatação, a segregação geográfica de grupos minoritários deriva da alocação residencial em regiões onde são escassos os recursos materiais, políticos e sociais, criando uma concentração de pobreza e carência ligadas às características demográficas, como pode ser visto em centros populacionais no qual os moradores são em sua maioria imigrantes de países subdesenvolvidos (Jackson & Williams, 2006). Deste modo, processos discriminatórios ideológicos, políticos, econômicos e a distribuição desigual de insumos materiais alimentam uma bolha sociodemográfica de carências que incidem diretamente sobre os perfis de saúde (Kazzarian & Evans, 2001).

O nível intermediário abrange os aspectos médio-distais no plano comunitário e ligados ao contexto sociocultural, concentrando a análise das condições mesossociais de infra-estrutura disponíveis nos estratos populacionais considerados. Como exemplo de estruturas mesossociais expositoras, em regiões onde há o predomínio de classes sociais mais baixas, é comum encontrar conglomerados industriais que despejam maiores quantidades de poluentes na atmosfera e nos recursos hídricos (Shaw, Dorling & Smith, 2006). Outro fato é que nestas regiões os equipamentos sociais e culturais não são privilegiados, dada a precariedade de recursos públicos como bibliotecas, museus, escolas de referência, tratamento de dejetos e serviços de saúde mais bem estruturados (Wermuth, 2003). Todas essas condições perturbam o status de saúde à médio e longo prazo, reduzindo a capacidade de desenvolvimento e mobilidade social daqueles que aí se encontram.

O nível proximal se aplica à dimensão individual e interpessoal da saúde, reportando-se aos recursos microssociais imediatos (individuais e grupais), comportamentos de saúde e a integração social percebida. Neste conjunto é observado o poder das redes sociais, hábitos de proteção individual, atividade física, insegurança financeira e a dinâmica familiar, dentre outros aspectos moduladores da exposição a riscos em saúde. Como ilustração, bairros cuja concentração de pobreza é elevada são mais suscetíveis a altos índices de violência, maior sensação de injustiça e usuais agressões policiais, estimulando o desenvolvimento da desorganização familiar, além de desordens físicas e mentais pela convivência com um ambiente estressor persistente (Jackson & Williams, 2006; Shaw, Dorling & Smith, 2006).

Em suma, como efeito do entrelaçamento dos três níveis supracitados, os índices desajustes físicos e mentais e as taxas de morbidade e mortalidade tendem a variar de acordo com a quantidade e intensidade dos estressores detectados na avaliação da vulnerabilidade do alvo (Wermuth, 2003). Desta forma, os prejuízos da exposição vão desde o desenvolvimento infantil ao aumento do índice de doenças crônicas e infecciosas, além de desordens sociais, insatisfação com a vida e morte prematura, entre outros efeitos adversos que atingem grupos e indivíduos.

Ressalta-se aqui que embora Schulz e Northridge (2004) mencionem a subjetivação como critério delimitador do impacto dos estressores, no Modelo dos Níveis Sociais não fica evidente a via pela qual as pessoas sofrem os efeitos da exposição, fomentando a vulnerabilidade. Esta lacuna é salientada pelas próprias autoras ao destacarem que a sua

proposta não aprofunda as explicações sobre o como os níveis fundamental, intermediário e proximal são internalizados e, por conseqüência, disparam respostas individuais de adaptação (Schulz & Northridge, 2004).

Ainda que implícito, percebe-se que o estresse pode ser considerado um conceito latente no Modelo dos Níveis Sociais e saber como este se instala é um dos desafios propostos no modelo, pois, tal como apontado por Schulz e Northridge (2004), é comprovado o seu poder sobre a vulnerabilização, mas não se conhece em detalhes como ele ocorre. Com efeito, acredita-se que o estresse atua como a ponte que intercomunica os níveis dos determinantes sociais e o status de saúde, tendo em vista que este construto se volta para a explicação de como o organismo incorpora os estressores e emite respostas adaptativas, potencializando a vulnerabilização (Moal, 2007; McEwen & Lasley, 2007; Somerfield & McCrae, 2000). Corroborando, ao final, com este ponto de vista, Schulz e Northridge assinalaram o estresse como um aspecto a ser investigado para o aperfeiçoamento do seu modelo.

Encontrando respaldo na literatura em saúde, a menção ao estresse é reforçada em trabalhos que desenvolveram estruturações similares ao Modelo dos Níveis Sociais. Pode- se citar Gee e Payne-Sturges (2004), que ao delinearem um modelo que inter-relaciona racismo e saúde, apontaram que o estresse é o elo entre as condições sociais e os efeitos da discriminação. Para eles, as minorias exibem piores perfis de saúde em virtude da segregação racial e da maior incidência de estresse, pois tendem a perceber maior quantidade de eventos estressores em comparação a grupos não discriminados.

Numa postura similar, Koop (2007) situou o estresse como uma questão de saúde pública a ser focalizada nas próximas décadas, pois o papel do estresse na vulnerabilidade ainda é menosprezado nas explicações dos fatores que levam a pior saúde. De forma parecida, Neckerman e Torche (2007) destacaram que o estresse é um dos produtos da desigualdade social e das iniqüidades em saúde, devendo ser inserido na análise dos fatores causais que explicam as diferenças observadas nas condições de saúde das populações.

Sexton e Hattis (2007) mencionaram o estresse como um elemento a ser apreciado na mensuração do risco à saúde em geral, levando-se em consideração que os estressores atuam de forma acumulativa na determinação das doenças. Sobrepõem-se, sob o princípio do estresse, maior vulnerabilização social, exposição de diversas origens e menores recursos para lidar com o advento dos estressores. Sustentando a proposta, Sexton e Hattis destacaram que o estresse permanece como um fator nocivo em longo e curto prazo, sendo

particularmente importante para compreender a criação de potenciais vulnerabilidades motivadas pela alteração dos estados basais de funcionamento neurológico, imunológico, endocrinológico e psicológico.

Adler e Rehkopf (2008), analisando as disparidades em saúde nos Estados Unidos (EUA), salientaram que os fatores materiais de risco não respondem isoladamente pela complexidade do processo de saúde-doença, devendo ser cotejada a exposição psicossocial particular a determinados indivíduos e grupos sociais. Por este motivo, ainda que indivíduos inseridos em ambientes materialmente desprivilegiados estejam expostos a grande intensidade de estressores, persistem diferentes níveis de ameaça à saúde, pois esta é influenciada por critérios subjetivos e oriundos do contexto social imediato, fato que encontra explicação nas distintas respostas ao estresse.

Tendo em vista o apanhado de pesquisas citado acima, é oportuno ressaltar que o estresse já é inserido como um fator de vulnerabilização nas recomendações dos estudos envolvendo a saúde humana. Assim, tendo seu lugar reconhecido em propostas teóricas sobre a saúde, cabe lembrar que os próprios mecanismos de desencadeamento do estresse ainda não estão estabelecidos (Goldstein & Kopin, 2007; Lazarus, 1999; Monroe, 2008; Ursin & Ericksen, 2004). Portanto, embora seja considerado como um desfecho de uma série de exposições deletérias, cabe ao campo de estudos da psicologia, em particular a psicologia social, contribuir evidenciando os processos subjacentes ao estresse.

Em resumo, defende-se que o caminho para inserção da perspectiva da psicologia social no Modelo dos Níveis Sociais pode ser feito através do aprofundamento dos estudos acerca dos mecanismos que antecedem o estresse. Isto se aponta em virtude de que o modelo já pressupõe o efeito de diferentes contextos estressores sobre a saúde, mas, visto a ausência de explicação dos recursos adaptativos, o entendimento sobre os mecanismos psicossociais parece ser incipiente, ou seja, o que vincula os estressores ao estresse, subsidiando a avaliação cognitiva, carece de maior aprofundamento.

Tendo exposto o primeiro modelo e demais estudos que reforçam a posição do estresse como um determinante social da saúde, o segundo modelo a ser apresentado focaliza-se na análise dos fatores de vulnerabilização e risco acumulativo, o qual insere a medida do estresse como um critério de identificação de sujeitos e grupos mais vulneráveis ao adoecimento (Defur et al, 2007).

3.2.2 O Modelo do Risco Acumulativo e o Estresse como Elemento Potencializador de