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3.4 A universidade pública brasileira, um processo contínuo de exclusão

3.4.2 O negro na universidade pública brasileira

Vejamos agora alguns estudos que tratam especificamente da questão da presença do negro nas universidades públicas brasileiras. Estes são recentes, datam principalmente da década de 1990. Esta linha de pesquisa vem, todavia, expandindo-se, principalmente nos últimos anos desta década, quando o debate sobre as ações afirmativas toca particularmente o âmbito universitário através da proposta de cotas para negros em universidades públicas. Os primeiros estudos neste sentido procuraram compreender, na prática educacional, mas agora sob o enfoque das universidades, os dados apresentados por Hasenbalg e Silva (1979), quando estes autores denunciam que a desigualdade educacional brasileira tem um recorte racial e de gênero.

Dados sobre a educação, sistematizados na década de 1990, demonstravam que o Brasil havia atingido um equilíbrio no que diz respeito à inserção de sua população na escola, ou seja, as crianças brasileiras, em sua maioria, estavam na escola, o que evidenciava um resultado positivo das iniciativas de expansão do ensino público. Todavia, estes mesmos dados, quando se estendiam à análise das demais etapas do ensino, a saber, o ensino médio e o ensino superior, mostravam novamente um imenso desequilíbrio entre a aquisição de anos de estudos para brancos e não-brancos (entendidos aqui como negros e indígenas). O nos indica que a expansão

do ensino público não refletiu num ensino de qualidade e, o que é mais grave, as estratégias de discriminação racial presente nas escolas não deixaram de atuar. Um dos motivos que faz com que os alunos não avancem para outras etapas do processo educacional.

Estes dados demonstravam que, quanto maior o nível de estudo, maior o grau que separava negros de brancos e amarelos. Assim, se no ensino fundamental há um certo grau de equilíbrio no que concerne à representação de negros e brancos, o mesmo fato não é colocado para o ensino médio e, para o ensino superior, o caso é ainda mais grave. Segundo aponta Carvalho (2006), apenas 30% da população negra (pretos e pardos) conseguem terminar o ciclo básico do primeiro grau. Segundo o autor:

[...] a porcentagem de vantagem dos brancos sobre os negros em chegar a 4 anos de curso "superior" é mais que o dobro da vantagem que têm em terminar a oitava série e o segundo grau. Isso significa que o acesso à pós-graduação é ainda muito mais proibitivo para o negro que conseguir entrar na graduação (CARVALHO, J., 2006, p. 31).

O que significa dizer que, em cada etapa da escolaridade, de maneira progressiva, ser branco no Brasil significa aumentar as chances de obter maior nível de escolarização. Estas estatísticas demonstram, através dos números, o cotidiano de exclusão e de preconceitos vivenciados pelos negros desde a pré-escola. É ainda Carvalho (2006, 2006, p. 32), quem nos ajuda a pensar a dimensão deste processo de exclusão, que permanentemente afasta os negros dos bancos escolares públicos.

O doloroso é constatar que, apesar da evidente melhoria na educação da população brasileira ao longo de todo o século vinte, essa diferença considerável de 2,2 anos [em favor dos brancos] é a mesma que existia no início do século passado.

Segundo este autor, fica evidente para quem quiser ver que a situação educacional dos negros no Brasil de hoje nada mais é do que o resultado de sucessivas e ininterruptas tentativas de contenção social dos negros, viabilizadas por dispositivos de inibição e cerceamento impregnados nas instituições sociais que, como já havia demonstrado Florestan Fernandes (1965), operam em nossa sociedade desde o período que se segue à abolição.

Para termos idéia do sucesso obtido por estes mecanismos, tomemos como exemplo o quadro que compõe o ensino superior brasileiro. Analisando os dados de 2000, apresentados pelo “Provão”, Carvalho (2006), nos mostra que a população universitária brasileira era então

composta de aproximadamente 3.500.000 pessoas, o que equivale a menos de 2% da população. Deste montante, 2.500.000 freqüentam instituições privadas, e apenas 1.000.000, ou seja, 0,6% dos brasileiros “desfrutam” de uma educação superior pública. Deste contingente de 1.000.000 estudantes das instituições públicas de ensino superior; 84% são brancos42. O que é ainda mais grave, os poucos negros que conseguem chegar ao ensino superior público, acabam concentrados em cursos de baixo prestígio social, como vem mostrando pesquisas recentes (QUEIROZ, D., 1998; TEIXEIRA, 2003 , 2004; BRANDÃO ; TEIXEIRA, 2003).

Os dados de 2003, também analisados por Carvalho (2006, p. 12, 37) atualizam a exclusão quando demonstram que “o número de estudantes brancos nas carreiras ditas de alto prestígio das nossas universidades mais importantes chega a 96% e, em alguns casos, a 98%. Fato que faz este autor observa que: “Apesar de somarem 45% da população brasileira, os negros muito raramente são médicos, juízes, dentistas, engenheiros, diplomatas, jornalistas, administradores”.

Expressando um funil, estes números são cada vez mais alarmantes quando tomamos como referência de análise a presença de docentes negros nas universidades públicas do país. Um exemplo mais contundente que retrata a exclusão dos negros na docência das universidades públicas brasileiras é o caso da USP, instituição brasileira de maior prestígio nacional e internacional. Pesquisando os dados de uma das Faculdades da USP de maior reconhecimento social, qual seja, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Carvalho (2006) pontua que dos 504 professores ali atuantes, apenas 3 são negros, sendo que um deles é do Congo e se graduou fora do Brasil. Isso para falar de apenas uma faculdade desta instituição grandiosa que é a Universidade de São Paulo. Propondo uma simulação do número de anos necessários para reverter o intenso desequilíbrio racial entre os docentes da USP, este autor aponta que:

Atualmente ela [USP] conta com apenas 0,4% de professores negros, após setenta anos de investimento contínuo e de ampliação do número de vagas. Se usarmos a tese de Solange Ribeiro como referência e fizermos uma simulação otimista (de que a situação racial não piorou nas últimas décadas), podemos

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Para Simon Schwartzman na década de 1960 havia 100.000 estudantes. Já no ano de 2000, a população de estudantes universitários era de 4.000.000 de estudantes aproximadamente, sendo que um terço deste montante estava em instituições públicas e 70% em instituições privadas (SCHWARTZMAN, 2006, p. 26). Já para Luiz Antônio Cunha (2004) em 1931, tínhamos 20 mil alunos matriculados nos cursos de Engenharia, Medicina e Direito. Em 2002, podíamos falar em 5,5 milhões de estudantes de graduação no Brasil e 120 mil estudantes de mestrado e doutorado, distribuídos em 165 Universidades, 77 Centros Universitários e 1.400 Faculdades Integradas, Faculdades Isoladas e Centros de Educação Tecnológica. Sobre o assunto ver CUNHA (2004, p. 796).

inferir que serão necessários no mínimo de vinte anos para que essa porcentagem passe de 0,4% para 0,6% [...]. Se não houver uma aceleração neste ritmo de inclusão proporcional, somente daqui a 60 anos a porcentagem de docentes negros na Universidade de São Paulo poderá chegar a 1%!(CARVALHO, J., 2006, p. 96)43.

Carvalho (2006), não detalha se sua análise abarcou todos os cursos da USP mas, pela leitura de Maria Solange Ribeiro (2001), podemos dizer que houve uma tentativa, por parte da pesquisadora, de abarcar todos os negros em todos os cursos em que eles se encontravam nas universidades pesquisadas. Todavia, e isso a autora faz questão de marcar, os professores negros encontrados estavam mais concentrados nas ciências humanas, nas Artes, Ciências Sociais e Letras. Ou seja, no meu entendimento há, ainda, poucas informações sobre a presença de negros e, principalmente de professores negros, na área das exatas que, como sabemos, é uma das áreas de maior prestígio social, bem como de maior possibilidade de mobilização econômica devido a seus altos salários, além de sua ligação estreita com o mercado capitalista.

Ainda para enfatizar a não representação eqüitativa da população negra nas principais universidades do Brasil, recorremos a um censo realizado por Carvalho (2006), na tentativa de gerar dados estatísticos que pudessem respaldar os estudos neste campo.

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Maria Solange Ribeiro revelou que desde 1980 não houve grande ampliação da presença de professores negros nas universidades publicas paulistas. Em uma das quatro universidades em que ela pesquisou foi encontrado apenas cinco negros entre dois mil professores, 0,25% de docentes negros, (RIBEIRO, 2001).

Tabela 1 - Professores negros nas universidades públicas do Brasil.

Nome da universidade professores professores negros Universidade de Brasília (UnB) 1.500 15

Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) 570 3

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) 2.000 3 (um deles africano) Universidade Federal de Goiânia (UFG) 1.700 15

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) 2.700 20 Universidade Federal do Pará 2.200 18

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) 1.700 17 Universidade Federal de Santa Catarina 1.700 17 Universidade Federal Fluminense (UFF) 2.861 39 Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) 2.300 30 Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) 1.761 4 Universidade de São Paulo (USP) 4.705 5 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 3.200 20

Fonte: Amostra de censo racial “aproximado” elaborado por Carvalho (2006, p. 93) a partir da informação direta de professores destas universidades. Sobre a metodologia empregada nos esclarece o autor: “Deixo claro que há uma margem de erro nesses números; para compensá-la, coloquei um número ligeiramente maior de negros do que o encontrado até agora.”

Esta tabela nos fornece um panorama do que esta pesquisa busca mostrar, ou seja, a sub- representação de docentes negros nas universidades públicas brasileiras, o que também nos ajuda a entender a distribuição dos negros no mercado de trabalho. Fato que tem relação com o problema apresentado na tabela de Antonio Sérgio Guimarães (2003b), ou seja, o déficit de alunos negros nas principais universidades do país. Vejamos os dados:

Tabela 2 - Distribuição dos estudantes segundo a cor.

UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB USP Branca 76,8 86,5 47 50,8 63,7 78,2 Negra 20,3 8,6 42,8 42,6 32,3 8,3 Amarela 1,6 4,1 5,9 3 2,9 13,0 Indígena 1,3 0,8 4,3 3,6 1,1 0,5 Total 100 100 100 100 100 100,0 % de negros no Estado 44,63 20,27 73,36 74,95 47,98 27,4 Déficit 24,33 11,67 30,56 33,55 15,68 18,94

Fonte: Pesquisa direta. Programa “A Cor da Bahia”/UFBA, I Censo Étnico-Racial da USP e IBGE – Tabulações Avançadas, Censo de 2000. (apud GUIMARÃES, 2003b, p. 204).

Os dados nos mostram que, tanto em relação aos alunos quanto em relação aos professores, há um déficit muito grande quando comparamos brancos e negros, as duas populações mais numerosas do Brasil.

Destaco no que diz respeito à Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), um dos focos de nossa observação, os dados já são outros, os trabalharemos na seção em que interpretaremos a primeira parte de nosso trabalho de campo. Decidimos destacar esta tabela por entender que ela nos oferece um panorama geral da presença dos negros nas principais universidades do país. Certamente outras grandes universidades deixaram de ser citadas, como é o caso da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – entre outras –, todavia entendemos que isto só reforça a necessidade de empreendermos a construção destes dados, o que, sem dúvida, ajudará a entender este processo de exclusão dos negros não só das universidades públicas, mas também de postos de poder dentro da sociedade que requerem uma preparação universitária consistente.

Pensando em dados mais gerais, Carvalho (2006) afirma que mais de 99% dos professores das universidades públicas de maior presença nacional são brancos. A mesma cifra, 99%, representa os pesquisadores beneficiados por grandes agências nacionais de pesquisa, fato que vem confirmar o que este autor chamou de um “racismo acadêmico”, uma expressão do nosso conhecido racismo brasileiro.

Os estudos da década de 1990, respaldados em dados gerados por eminentes instituições de pesquisa nacional (como IBGE, IPEA e INEP, entre outras), procuraram refletir sobre a temática do negro na educação a partir dos conhecimentos já acumulados em décadas passadas, como foi o caso da década de 1980, em que sob pressão de diferentes entidades negras e do Movimento Negro Unificado produziram-se profundas mudanças no conhecimento sobre o sistema educacional brasileiro.

A década de 1990, no que concerne à questão étnico-racial, foi fundamental ao lançar dados estatísticos e análises irrefutáveis sobre a discriminação racial vigente no país. No campo das Ciências Sociais, por parte de uma pequena parcela de estudiosos, houve uma mobilização no sentido de retratar novos campos educacionais em que o racismo pudesse ser a explicação dos resultados que indicavam o fracasso dos negros.

A educação superior, ou melhor, o ensino universitário, passou, pela primeira vez, a ser discutido como espaço de reprodução velada da discriminação étnico-racial vigente na sociedade. Neste contexto, a academia brasileira tornou-se foco de análise. Foi demonstrado que os negros estão sub-representados neste espaço social. Segundo entendo, este fato pode ser explicado historicamente pela existência de uma ideologia de elitização dos bancos universitários, bem como da carreira universitária em si. A universidade nasceu em um contexto político muito específico que, como vimos nesta seção, tinha como principal objetivo a nacionalização do Brasil e sua inserção no rol das nações modernas. Para tanto, a educação foi utilizada pelo Estado como instrumento de “arianização” do povo brasileiro. Outras políticas públicas desenvolvidas neste período também tiveram este sentido. Cito o favorecimento, por parte do governo brasileiro, da imigração européia para assumir postos de trabalho no Brasil.

Este contingente de imigrantes, que se favoreceu do imaginário social racista presente na sociedade brasileira, foi o mesmo que, gerações posteriores, construiu as universidades públicas brasileiras. A USP – uma destas instituições mais conceituadas – desde sua formação em 1934, não foi criada para atender a massa de negros e/ou pobres, em crescimento constante.

A universidade enquanto instituição é entendida como democrática. Todos, independentes de sua descendência, em tese, podem chegar até ela. Contudo, quando sabemos que 99% dos docentes brasileiros de universidades públicas são brancos, há uma inquietação diante deste fato. Principalmente quando lembramos que a população de negros no Brasil chega a 45%, mas que

estes, segundo apontam estudos recentes, encontram-se, no máximo, na porcentagem de 10% para estudantes e 1% para docentes negros nas universidades do país.

No meu entendimento, uma possível explicação para este fato já foi aqui apresentada, ou seja, a explicação está na própria estrutura do ensino público brasileiro e na forma com que este foi historicamente encarado pela sociedade. A universidade é o grau mais elevado, dentro da trajetória escolar brasileira. É preciso lembrar que antes de chegar a ela o aluno deve cumprir as outras etapas do processo escolar. Como vimos, há, neste trajeto, processos sociais e institucionais que excluem, a cada etapa escolar, um número maior de alunos. Motivos para justificar este funilamento não faltam: a falta de recursos educacionais para a escola, o não incentivo do corpo docente, o pouco interesse dos alunos, e, particularmente, a reprodução de práticas institucionais de racismo e preconceito de várias ordens, inclusive racial.

Ou seja, olhar para a ausência de negros na universidade pública, é refletir a trajetória que os negros tem na educação, sobretudo pública. Pois a universidade reproduz processos de exclusão que estão presentes na sociedade. Sendo assim, a universidade reproduz o mesmo problema da ambigüidade, que caracteriza a sociedade brasileira. Ao mesmo tempo em que é democrática pouco problematiza a quem ela está servindo, ou ainda, qual é sua contribuição para a perpetuação de um corte étnico-racial que vem de longe, do jardim da infância.

Estudos pioneiros como os citados aqui são uma tentativa de fazer emergir esta discussão que, não à toa, é silenciada dentro da academia ou ainda redesenhada sob a sempre justificativa de ser o Brasil uma sociedade de democracia racial. Chamo a atenção para o fato de ser tão restrita a bibliografia sobre este tema e, mais particularmente, sobre a presença de professores negros nas universidades públicas brasileiras, que o fato realmente merece atenção, já que esta ausência de discussão acaba por ratificar o quadro excludente. Neste sentido, destaco os estudos de Ribeiro e Klein (1982), Queiroz (1998) e de Teixeira (2003, 2004) e Carvalho (2006) que, pela primeira vez chamaram a atenção para os problemas raciais dentro do ensino superior quando evidenciam processos explícitos ou implícitos de discriminação racial seja no vestibular, na pré- seleção das carreiras, nos concursos para docência ou ainda em processos de discriminação nas relações interpessoais presente no campus universitário, bem como, na academia como um todo.

4 O trabalho de campo.

Nesta seção apresento as estratégias que lancei mão para realização do trabalho de campo que consistiu na elaboração de dados sobre a presença de docentes negros nas engenharias da EESC/USP e na UFSCar. Material que me possibilitou chegar aos professores e entrevistá-los. Também discuto, de forma breve, a orientação teórico-metodológica em que me fundamentei para realizar uma interpretação sobre o tema.