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2. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

2.1. Concepções de língua e gêneros discursivos

2.1.4. O oral e o escrito

A língua se realiza ou por meio da modalidade oral ou por meio da escrita e, apesar de utilizarem de um mesmo sistema linguístico, cada uma delas possui

características distintas e regras próprias, que regulam seu funcionamento. Todavia, isso não significa que elas sejam modalidades opostas e dicotômicas, que existiriam de forma paralela, sem se relacionarem e até mesmo sem terem alguma intersecção, na linguagem.

Conforme Marcuschi (2010) pondera, as características do oral e da escrita existem, se considerarmos que haja um continuum entre as duas modalidades. Na mesma direção, Corrêa (2006) afirma que os gêneros do discurso se constituem por meio da(s) (combinação entre as) modalidades enunciativas orais ou escritas, que constituem mutuamente a língua, de acordo com as diferentes práticas sociais. Isto nos permite entender que recursos ou estratégias empregados na produção de textos escritos e orais envolvem traços que não são exclusivos ou específicos de uma ou outra modalidade, mas que interagem de acordo com o gênero discursivo em que são empregados.

Koch (2008) e Marcuschi (2010), entre outros teóricos, consideram que há na verdade textos escritos, que estão mais próximos às características da oralidade, tais como bilhetes, mensagens instantâneas via celular, mensagens de programas via internet, histórias em quadrinhos... e outros orais, que estão mais próximos da escrita, como conferências, entrevistas para emprego, telejornais... Existem também textos mistos, como entrevistas jornalísticas, seminários e outros mais “puros”24 (cf. KOCH,

2008), como a conversa e artigo científico.

Dessa forma, Koch (2008: 78) apresenta um quadro, em que expõe uma visão de quando se considerava a oralidade e a escrita como modalidades opostas e dicotômicas. É preciso demarcar que a autora não partilha dessa visão, apenas mostra como era entendida, ou algumas pessoas ainda entendem, a relação entre essas modalidades: Fala Escrita Contextualizada descontextualizada Implícita explícita Redundante condensada não-planejada planejada

predominância do “modus pragmático” predominância do “modus sintático”

Fragmentada não-fragmentada

Incompleta completa

pouco elaborada elaborada

pouca densidade informacional densidade informacional

predominância de frases curtas, simples predominância de frases complexas, com

24 De acordo com a teorização por nós adotada e também segundo Koch (2008) – por isso, ela emprega as

aspas – não seria possível denominar textos como puros, pois eles estão dentro de um gradiente, em que são relativamente mais híbridos ou mais tipificados/estereotipados.

e coordenadas subordinação abundante pequena frequência de passivas emprego frequente de passivas

poucas nominalizações abundância de nominalizações

menor densidade lexical maior densidade lexical

É preciso compreender que o quadro acima é uma representação estática e limítrofe idealizada de características prototípicas construídas sobre as duas modalidades linguísticas em questão, por isso, não se observa nele uma consideração da noção de texto misto, pois não há espaço para inseri-los nesta dicotomia.

Segundo Marcuschi (2010: 27), essa dicotomia é estrita, pois “trata-se,

no geral, de uma análise que se volta para o código e permanece na imanência do fato linguístico.” Segundo ele, essa visão é responsável por gerar o prescritivismo

gramatical da norma padrão, ou da norma/variante culta e por apresentar “o

inconveniente de considerar a fala como o lugar do erro e do caos gramatical, tomando a escrita como o lugar da norma e do bom uso da língua” (MARCUSCHI, 2010: 28).

Para Koch (2008: 79),

Tais características [distintivas entre oralidade/fala e escrita] foram sempre estabelecidas tendo por parâmetro o ideal da escrita (isto é, costuma-se olhar a língua falada através das lentes de uma gramática projetada para a escrita), o que levou a uma visão preconceituosa da fala (descontínua, pouco organizada, rudimentar, sem nenhum planejamento), que chegou a ser comparada à linguagem rústica das sociedades primitivas ou das crianças em fase de aquisição...

Obviamente, quando se toma a escrita como referência, principalmente em uma sociedade em que a grafia possui grande importância, atrelada a uma Gramática Normativa, que tem por objetivo orientar o bem escrever e, indiretamente, o bem falar, a oralidade se torna, inadvertidamente, inferior, pois como ela é altamente interacional (cf. KOCH, 2008), isto é, ocorre em situações de presença do enunciador e seus coenunciadores, isto requer que seja planejada e replanejada constantemente durante a interação, a fim de que essa continue. Não haveria muito tempo para o enunciador planejar e rever seu texto, como ocorre com a escrita, uma vez que isso precisa ser feito durante a própria atividade interacional, considerando uma conversa espontânea, uma vez que há casos em que a oralidade pode ser previamente planejada, como é o caso dos seminários acadêmico, das conferências e mesas redondas. Do ponto de vista pragmático, há uma série de descontinuidades do fluxo discursivo, o que se adequa às condições interacionais instauradas. Evidentemente, a sintaxe da oralidade possui características próprias, mas ela respeita a sintaxe da língua.

Lopes (1991) evidencia ainda mais as diferenças e as influências existentes entre oralidade e escrita. Segundo o autor, a língua oral tem sua própria coesão textual, a qual é estabelecida e mantida tanto por elementos linguísticos, quanto extralinguísticos. Para exemplificar, ele descreve o caso de uma moça, que, em um salão de festa, diz para outra, ao ver um jovem entrando, “Você o conhece?” e, ao mesmo tempo, pisca um olho. Nesse caso, o sentido do texto ou da enunciação é assegurado não só pelo linguístico (palavras), mas também pelo extralinguístico (piscada).

Se, por um lado, a oralidade está intimamente relacionada ao contexto interacional extralinguístico, a escrita, por sua vez, apresenta certo distanciamento desse contexto. Para Bazerman (2005), os textos escritos oferecem pouca evidência de como serão ou foram recebidos pelos leitores, pois diferentemente do oral em que se tem uma interação, geralmente, face a face, nesse tipo de texto

[...] a resposta do leitor está quase sempre separada no tempo e espaço do momento da escrita e, frequentemente, é protegida pela privacidade da leitura silenciosa, o escritor provavelmente conta com poucas evidências sobre a recepção do leitor. Mais ainda, mesmo tendo conhecimento dessa recepção, o escritor geralmente tem poucas oportunidades de corrigir, reparar ou reelaborar o texto para solucionar mal-entendidos ou diferenças entre a intenção ilocucionária e o efeito perlocucionário (BAZERMAN, 2005: 36).

Para Lopes (1991), por conta da própria natureza do texto escrito, em que produtor e leitor estão afastados, esse tipo de texto não contaria com a presença dos elementos extralinguísticos. Dessa forma, como a contextualização quase nunca é imediata, o que, necessariamente, obriga o texto escrito a se tornar relativamente autônomo, desenvolvendo recursos expressivos próprios. De acordo com o autor (LOPES, 1991: 22),

As conversas, distribuídas nos turnos do diálogo pelos falantes, estabelecem uma dinâmica conversacional muito diferente daquela que se estabelece quando escrevemos a sós, e em que precisamos premeditar no sentido de considerar o que deveríamos responder a eventuais questões levantadas e suscitadas pelo nosso texto. A explicitação, no texto escrito, daquilo que procuramos transmitir exige um esforço maior porque não conta com as perguntas feitas no decorrer das nossas exposições orais, quando não conseguimos clareza no que estamos falando e somos interpelados, no ato, pelos ouvintes.

Percebe-se que algumas das estratégias desenvolvidas na interação textual escrita são premeditação e explicitação minuciosa do que se pretende expor. Nesse sentido, o produtor precisa prever um leitor imaginário (supradestinatário), uma vez que esse é mais indefinido se comparado à interação imediata (cf. LOPES, 1991), para auxiliá-lo

na produção de um texto, de forma que suas ideias e pensamentos produzam sentidos próximos àqueles por ele desejado.

Evidentemente, o supradestinatário, por exemplo, não é um elemento peculiar apenas aos gêneros discursivos orais ou escritos, contudo, ele recebe adequações ou modificações que conduzem a uma ligeira diferenciação de acordo com cada modalidade. Se pensarmos em um discurso político, em um comício e em uma carta, perceberemos que a construção de um coenunciador imaginário, no primeiro caso, é relativamente mais fácil, pois é orientada pelo visual e auditivo do enunciador, o qual percebe reações gestuais, corporais e faciais ou aumento de ruídos sonoros ou de falas, o que lhe permite fazer adequações em seu discurso, a partir de uma nova reconfiguração do supradestinatário, a partir das atitudes esboçadas pelos coenunciadores. Obviamente, na carta, essa calibragem, não ocorrerá da mesma forma, é, indubitavelmente, um trabalho de relativo esforço, pois implica uma abstração por parte do enunciador para adequar-se a seus coenunciadores.

Nesse sentido, a perspectiva sociointeracionista apresentada por Marcuschi (2010), considera a língua e suas modalidades constitutivas como fenômenos interativos e dinâmicos, conforme se pode observar no quadro abaixo (MARCUSCHI, 2010: 33),

fala e escrita apresentam

Dialogicidade usos estratégicos funções interacionais envolvimento negociação situacionalidade coerência dinamicidade

Assim, esta perspectiva não compreende a língua em seus polos limítrofes, mas a partir dos processos de produção de sentidos, que se constroem por meio de estratégias de textualização orais e escritas, que se adequam linguístico-discursivamente aos propósitos comunicativos pretendidos pelo enunciador e seus coenunciadores.

Pensar que oral e escrito formam uma língua e que estão, deste modo, relacionados, e aliar esta noção a de gêneros do discurso, permite-nos analisar que as diferenças, semelhanças e imbricações entre elas ocorrem de forma corriqueira. Afirmar que o texto produzido por um estudante, em qualquer série do ensino, possui marcas de oralidade é praticamente um clichê entre muitos professores e, até mesmo, nos estudos

linguísticos. Contudo, essa afirmação não ajuda a compreender o que realmente ocorre entre as duas modalidades linguísticas. Na verdade, ela produz muito mais a noção – talvez anterior a divulgação e exploração no Brasil do conceito de gêneros do discurso (BAKHTIN, 2003) – de que oralidade e escrita são partes diferentes da língua, que não poderiam se relacionar e, por conseguinte, que essas intromissões de uma modalidade na outra configuram-se como erros, geralmente, de apropriação da escrita por parte do estudante.

Por isso, conceber que a linguagem como modos enunciativos resultantes da combinação entre as modalidades oral e escrita que se inter-relacionam de acordo com os gêneros em que ocorrem (cf. CORRÊA, 2006) é uma forma de superar essa visão dicotômica. Analisar que alguns recursos ocorrem de maneira semelhante na escrita e na oralidade, tais como remissões, anáforas, catáforas, suspensões, interpolações..., permite visualizar a relação entre essas modalidades na constituição da língua, que se molda de acordo com as diferentes situações interacionais.