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3. PERCURSO E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

3.2. Contextualização e caracterização metodológica

3.2.2. O paradigma indiciário

Na perspectiva investigativa do paradigma ou do método qualitativo, situa-se o modelo epistemológico ou o paradigma indiciário. Segundo Ginzburg (1989) este modelo tem por base a análise de dados marginais, pistas, traços ou indícios, para os quais ordinariamente não se costuma atribuir tanta importância, mas que revelam a ligação entre o todo e suas partes, entre, a nosso ver, o (estilo) social e o individual (cf. BAKHTIN, 2003). Este modelo pode ser entendido ainda como uma investigação capilar (GINZBURG, 2003), isto é, por meio de dados singulares procura-se estabelecer uma relação entre o micro e o macro – em uma analogia ao trabalho proposto por Foucault (2006).

Este paradigma, de acordo com Ginzburg (1989) se aproxima da investigação realizada, por exemplo, por médicos que, a partir de sintomas apresentados pelo paciente, conseguem diagnosticar enfermidades, ou ainda, por detetives policiais que, a partir de indícios materiais ou não, desvendam crime(s) e seu(s) criminoso(s).

O modelo indiciário, segundo Ginzburg (1989), origina-se com a prática de caça desenvolvida pelo homem, com vista a sua própria sobrevivência. Para ter êxito em suas empreitadas, o ser humano aprendeu a reconstruir formas e movimentos das presas através de indícios ínfimos como pegadas em lama, galhos ou ramos quebrados,

pelos, plumas e odores deixados pelos animais. Assim, o homem “aprendeu a farejar,

registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante [...].” (GINZBURG, 1989: 151), para conseguir capturar sua presa.

Devido ao desconhecimento da forma grafada da linguagem, os conhecimentos desenvolvidos pelos humanos, a partir da atividade de caça, foram transmitidos às gerações sucessoras por meio da oralidade, principalmente de fábulas ou narrativas. Nessas narrativas venatórias (cf. GINZBURG, 1989), a realidade complexa e não diretamente observável ou experimentável podia ser reconstruída por meio da decifração de pistas presentes ao longo do próprio enredo.

Ginzburg supõe que a decifração ou a leitura de pistas propiciou o surgimento da escrita cuneiforme pelos mesopotâmicos, o que exigiu certamente grande período temporal. Com essa escrita ou representação gráfica, houve, para esse povo, uma mudança na relação entre divindades e humanos. As divindades se comunicavam por meio de “mensagens escritas – em astros, nos corpos humanos em toda parte –, que

os adivinhos tinham a tarefa de decifrar” (GINZBURG, 1989: 153), da mesma forma, a

escrita cuneiforme era uma forma de designar coisas por meio de símbolos, os quais para serem compreendidos precisavam ser decifrados, entretanto, com isso, não apenas os adivinhos eram os únicos capazes de ler as mensagens escritas, uma vez que aqueles que conhecessem e dominassem o código escrito também podiam compreender as mensagens. Nesse sentido, os leitores não precisavam estar intimamente ligados à religião, o que, de certa forma, relativizou a relação entre divindades e humanos.

Logo, para a compreensão desse tipo de grafia foi preciso também haver um desenvolvimento da abstração intelectual humana. Com o decorrer do tempo, a partir dessa escrita o homem teria desenvolvido a escrita fonética, a qual, segundo alguns estudiosos, pressupõe um grau de abstração intelectual ainda maior.

É preciso deixar evidenciado, tal qual faz Ginzburg (1989), a diferença entre decifrar e adivinhar. Segundo o autor, a adivinhação se volta para o futuro, enquanto a decifração para o passado, embora as operações cognoscitivas (análises, comparações, classificações etc.) sejam bastante parecidas. Dessa forma, decifrar é uma atividade que busca a compreensão de dado fenômeno a partir de seus indícios.

Consoante Duarte (1998: 63, grifos nossos.), o emprego do paradigma

indiciário em pesquisas linguísticas está relacionado ao fato de que nesse tipo de investigação é possível

explicar, ou pelo menos, conjecturar sobre dados que por natureza são

idiossincráticos e não se enquadram nos padrões de normalidade da língua. Tais dados são relevantes pela singularidade que os caracteriza, isto é, são

exemplos interessantes e representativos de certos fenômenos linguísticos que permitem àqueles que os analisam descrever diferentes aspectos da linguagem.

Considerar que os dados são idiossincráticos não significa a admissão de um olhar subjetivo extremado por parte do pesquisador, pelo contrário, ele precisa se aproximar o máximo possível de um olhar objetivo, porém, afirmar a existência de idiossincrasia é reconhecer que determinados dados podem não ser tão significativos para algumas pessoas, mas, conforme exposto anteriormente, podem conduzir outras à decifração de algum fenômeno de acordo com a análise instaurada pelo investigador.

Da mesma forma, considerar dados como singulares não significa avaliá- los como únicos ou mesmo inéditos, mas, sim, como aqueles que propiciam reflexões e revelam algo mais sobre fenômenos linguísticos, sobre os quais se procura construir alguma compreensão (cf. DUARTE, 1998). Para Duarte (1998: 62),

Às vezes, um dado singular não tem aparentemente uma explicação para sua ocorrência, é idiossincrático, diferente e, muitas vezes, “estranho”. O trabalho do analista será o de justificar sua ocorrência, buscando compreender os fenômenos que estão por trás dela. Para isso, é importante que a explicitação dos processos inerentes a esses fenômenos, ou seja, que a maneira como determinado dado possa ter aparecido seja objeto de reflexão para o analista, cujo objetivo é justamente tentar desvendar aquilo que é surpreendente em um dado singular.

Nesse sentido, percebe-se que por detrás de um dado singular pode haver também um fato surpreendente (cf. DUARTE, 1998), ou seja, pelo qual o pesquisador não esperava ou que lhe desperta uma maior atenção ou interesse. Para compreender isso, ele precisa então observar a singularidade do fato e, ainda que de forma hipotética, tentar justificar sua ocorrência. Para essa justificativa, Duarte (1998) propõe o método abdutivo pierciano, pois para ela, esse é um método que permite a construção de teorias ou conjecturas, por meio da realização de hipótese e checagens, para explicar a ocorrência de dados marginais. Ou seja, esse método, possibilita a construção, de forma conectiva, de leis que permitam a compreensão dos fatos.

Para Pierce (1975), a abdução ocorre quando, considerando dos dados coletados, encontra-se uma circunstância peculiar, que desperta sobre si a atenção do pesquisador, conduzindo-o à elaboração de suposição(ões), de forma a considerar que esse caso

particular possui certa regra geral que o explique, sendo, portanto, necessário realizar suposições. É preciso entender interpretação dos dados não como decodificação, mas como inferência lógica, isto é, abdução.

Dessa forma, em nosso entender, o método abdutivo pierciano se coaduna com os propósitos do paradigma indiciário e da aplicação deste nas investigações linguísticas.