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CONSELHOS DE SAÚDE: APARELHOS DE COTROLE SOCIAL, DE CONSENSO OU DE COOPTAÇÃO?

II.I O otimismo de Habermas e o pessimismo de Althusser

Louis Althusser foi um filósofo francês marxista. Nasceu em 1918, na Argélia, mas logo se mudou para França, onde cresceu. Em 1937 se juntou ao movimento da juventude católica, e foi aceito na École Normale Supérieure (ENS), porém só conseguiu frequentá-la depois do fim da II Guerra Mundial, na qual serviu como soldado, ficando refugiado num campo de concentração32. Filiou-se em 1948 ao Partido Comunista Francês, mesmo ano em que se tornou professor da ENS.

Durante sua vida, Althusser produziu algumas obras como Sur le jeune Marx, Marxisme et Humanisme e Contradiction et surdétermination. Mas sua principal obra foi Idéologie et appareils idéologiques d’état (Ideologia e Aparelhos ideológicos do Estado). Para o autor a ideologia é uma “representação” da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência, naturalizando suas condições de vida e trabalho, naturalizando a questão social. Neste sentido,

32 Os problemas de sua infância somados à experiência traumática da Segunda Guerra Mundial deixaram sequelas psiquiátricas no filósofo. Durante seu curso na Escola Normal Superior de Paris, ele residiu na enfermaria, devido aos constantes episódios da doença. Em 1980 estrangulou sua esposa em meio a um surto psicótico, mas foi inocentado e internado no hospital psiquiátrico Sainte-Anne, onde permaneceu até 1983. Depois se mudou para o norte de Paris, onde escreveu sua autobiografia L’avenir dure longtemps (1985). (http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2007/anaisEvento/arquivos/CI-204-05.pdf)

45 vale a pena trazer um trecho de Albuquerque, quando este diz que

formar o trabalhador significa, não propriamente, ou não apenas, qualificar seu trabalho, mas tornar, para o indivíduo, natural e necessária a equivalência entre a qualidade do trabalho e a quantidade da força de trabalho; tornar natural e necessária a venda da força de trabalho; a submissão às normas de produção, à racionalidade da hierarquia na produção, etc. (ALBUQUERQUE in ALTHUSSER, 1985, p. 12) As ideias falsas, como as chamam Marx, que os homens têm de si mesmos faz com que aceitem as determinações da classe dominante sem questionar, pois a realidade e o discurso se entrelaçam num antagonismo invisível, ou natural, aos olhos das classes subalternas. Marx faz uma análise desse potencial quando diz que Até agora, os homens sempre tiveram idéias falsas a respeito de si mesmos, daquilo que são ou deveriam ser. Organizaram suas relações em função das representações que faziam de Deus, do homem normal, etc. Esses produtos de seu cérebro cresceram a ponto de dominá-los completamente. Criadores, inclinaram-se diante de suas próprias criações. (MARX, 1998. p. 03).

Para Althusser, a ideologia assume seu papel imaginário e material, não se reduzindo à simples imposição de ideias, mas “se efetivando em práticas sociais inscritas em instituições concretas no seio dos aparelhos ideológicos do Estado”:

A existência das idéias da sua crença é material, porque as suas idéias são actos materiais inseridos em práticas, reguladas por rituais materiais que são também definidos pelo aparelho ideológico material de que revelam as idéias desse sujeito... a materialidade de uma deslocação para ir à missa, de um ajoelhar, de um gesto de sinal da cruz ou de uma mea culpa, de uma frase, de uma oração, de uma contrição, de uma penitência, de um olhar, de um aperto de mão, de um discurso verbal externo ou de um discurso verbal <<interno>> (a consciência)[...] (Althusser, 1970, p. 89)

Levando esse pensamento à prática, os homens “bons” se sujeitam à dominação da elite, são levados pela intervenção da ideologia da classe dominante presente nos aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Já os “maus” sujeitos, são punidos violentamente por meio do aparelho repressivo do Estado (ARE), a fim de que assumam a forma do sistema e dos modelos que este sistema impõe a todos, mesmo que seja necessário o uso da coerção. (ALTHUSSER, 1970, p. 113). A seguir, Althusser define os aparelhos repressivos do Estado:

46 Lembremos que na teoria marxista, o Aparelho de Estado (AE) compreende: o Governo, a Administração, o Exército, a Polícia, os tribunais, as Prisões, etc., que constituem aquilo a que chamaremos a partir de agora o Aparelho Repressivo de Estado. Repressivo indica que o Aparelho de Estado em questão „funciona pela violência‟ - pelo menos no limite (porque a repressão, por exemplo, administrativa, pode revestir formas não físicas) (ALTHUSSER, 1970, p. 42–43).

E ele não confunde os aparelhos entre si, os repressivos são os que usam de violência para garantir que os interesses burgueses fossem preservados; os ideológicos são a família, escola, igreja, judiciário, partidos políticos, sindicatos e outros, que “encucam” a ideologia nos membros da sociedade. E, neste último, Althusser destaca bastante o papel da família, da escola e da igreja:

“Acreditamos portanto ter boas razões para afirmar que, por trás dos jogos de seu Aparelho Ideológico de Estado político, que ocupava o primeiro plano do palco, a burguesia estabeleceu como seu aparelho de Estado n° 1, e portanto dominante, o aparelho escolar, que, na realidade, substitui o antigo aparelho ideológico de Estado dominante, a Igreja, em suas funções. Podemos acrescentar: o par Escola–Família substitui o par Igreja–Família. (ALTHUSSER, 1970, p. 78).

E ainda completa no trecho:

Designamos por Aparelhos Ideológicos de Estado um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas...(a ordem pela qual as enunciamos não tem qualquer significado particular):

− O AIE religioso (o sistema das diferentes Igrejas),

− O AIE escolar (o sistema das diferentes escolas públicas e particulares),

− O AIE familiar, − O AIE jurídico,

− O AIE político (o sistema político de que fazem parte os diferentes partidos),

− O AIE sindical,

− O AIE da informação (imprensa, rádio-televisão, etc.) (ALTHUSSER, 1970, p. 43-44)

Dito isto, é preciso entender que o Estado é o quod, o “objeto” utilizado pela classe dominante para subjugar a classe trabalhadora, pois é por meio do Estado que a classe dominante ditará seus padrões de convivência, suas normas, e de que maneira o cumprimento destas será fiscalizado, cobrado e punido – por meio do

47 aparelho repressor do Estado. Nesse sentido, dá pra notar muito bem a diferença entre os aparelhos ideológicos e repressores, que ocupam, respectivamente, os lugares de disseminadores das regras e de punidores dos que a infringirem. Olhando para o Estado dessa forma, é possível enxergar razão da luta de classes pela dominação do Estado. Neste sentido, Ávila afirma que

[...]os AIE são, também, o alvo e o local da luta de classes já que podem ser disputados pelas antigas classes dominantes ou pelas classes exploradas que podem encontrar meios de se exprimir nelas, utilizar suas contradições ou conquistar aí, pela luta, posições de combate. (ÁVILA, 1985, p. 53)

Nesta perspectiva de disputa, para alcançar a hegemonia Althusser afirma que é necessário que se domine ao mesmo tempo os aparelhos ideológicos e os repressivos:

a partir do que sabemos, nenhuma classe pode duravelmente deter o poder de Estado (repressivo) sem exercer simultaneamente a sua hegemonia sobre e nos Aparelhos Ideológicos de Estado (ALTHUSSER, 1970, p. 49)

E, na visão de Althusser, a elite amarrou tudo tão perfeitamente que nada resta às classes subalternas da sociedade, a não ser se submeter a ela, ao Estado burguês. Esse posicionamento é muito duro e monopolítico, porque ele não considera o potencial organizativo da classe trabalhadora, as possibilidades de “desalienação” das classes subalternas, nem a dialética histórico-social das relações sociais, da própria vida em sociedade. Ele não considera o sucesso de um processo de educação política, pró-emancipadora do homem, dando-lhe uma visão de mundo crítica, libertadora, enxergando as possibilidades de transformação social.

Trazendo a discussão de Althusser para os Conselhos de Saúde, existe na contemporaneidade uma corrente bastante pessimista a respeito desses aparelhos de controle social democrático, onde seus pensadores se fundamentam nas concepções do referido autor para construírem seus posicionamentos. Para eles o nível de imersão da sociedade no conjunto de ideologias disseminadas pela classe dominante é tão profundo, que não há saída, não há espaço público sem cooptação. Bravo e Menezes, refletindo sobre as diferentes concepções a respeito dos Conselhos de Saúde, destaca a visão baseada em Althusser:

48 cooptação da sociedade civil por parte do Estado. Essa visão é pautada no estruturalismo marxista, cuja principal referência é Althusser. Ao analisar o Estado e as instituições apenas como aparelhos repressivos, não se visualiza as contradições que podem emergir nos espaços dos conselhos a partir dos interesses divergentes. Essa concepção, segundo Bravo & Souza (2002), expressa uma visão maniqueísta da relação Estado e sociedade, nega a historicidade e a dimensão objetiva do real. (BRAVO & MENEZES, 2011, p. 31)

Como foi sinalizado pelas autoras, essa concepção pessimista ignora a historicidade da relação Estado/sociedade, os avanços da classe trabalhadora nas lutas travadas por melhores condições de vida e de trabalho, pelos seus direitos políticos, civis, sociais, pela construção de um Estado Democrático de Direito e exercício da democracia na gestão pública – para a qual a reconfiguração dos Conselhos de Saúde foi um avanço enorme, assim como a institucionalização da participação social na Constituição Federal de 1988. A criação de um espaço público, essencialmente político, como já foi dito no capítulo anterior, foi indiscutivelmente um avanço para a classe trabalhadora. E, analisando a histórica da luta de classes, já é de se esperar que a elite dominante se proponha a cooptar esses espaços, convertendo-os aos seus interesses, mas nem por isso deixam de ser arenas de conflitos de interesses, de disputa, onde a classe trabalhadora tem papel fundamental de resistência. Pensar como Althusser seria subestimar o potencial da classe trabalhadora. O tempo todo em suas obras, Marx discursa sobre o potencial de transformação social que tem a classe trabalhadora, e quão importante é romper as ataduras da alienação, não focalizar o olhar sobre determinado contexto sem antes considerar o quadro geral que está em sua retaguarda, ou seja, suas determinações históricas, a dialética própria da vida em sociedade.

Contrapondo-se às ideias de Althusser, Habermas traz uma concepção diferenciada sobre a relação Estado/sociedade, democracia e o potencial dos espaços de controle social.

Jürgen Habermas nasceu em Düsseldorf, Alemanha, em 18 de junho de 1929. Foi um dos mais importantes filósofos alemães do século XX. É adepto da tradição da teoria crítica33 da sociedade e do pragmatismo, e teorizou sobre o conceito de

33

49 esfera pública, estado de direito e democracia34. Em sua obra Direito e Democracia (1997), ele trabalha suas análises a respeito desses conceitos com base em Willke35. Por exemplo, ele aponta que o conceito de esfera pública, em sua perspectiva burguesa, é historicamente encontrado nas sociedades europeias do século XVII e XVIII, mas num molde “rústico”, se é que se pode chamar assim, pois era formada por pessoas que sentavam para ler notícias de jornais periódicos, fazendo daquele momento um espaço de reflexão sobre a realidade social36. E as considerações que faz sobre esse movimento de apropriação da realidade pública, ainda que com dificuldades para abandonar as perspectivas individualistas, enaltece a importância da linguagem, da comunicação apropriada, específica, e escreve sua teoria sobre a racionalidade comunicativa37.

Habermas caminha no sentido contrário de alguns autores da época, na tentativa de romper com o pessimismo gerado pelo contexto histórico político e social do período.

Embora em alguns pontos Habermas compartilhe as mesmas conclusões a que chegaram os teóricos críticos nas décadas de 50 e 60, seu pensamento desponta como original porque recusa os desdobramentos verificados na teoria crítica de Adorno e Horkheimer: a “crítica da razão instrumental” e o “pessimismo radical” (em Marcuse, o ativismo radical), desdobramentos que tiveram como contexto histórico a ascensão do nazismo, a segunda guerra mundial e o stalinismo. A originalidade do pensamento habermasiano, conforme nos mostra Aragão, consiste em quatro pontos: 1. propor, em lugar de uma postura pessimista, uma postura otimista alicerçada na “tendência humana à comunicabilidade” ou no “diálogo orientado para o consenso”, próprio as seres humanos porque fundamentados na linguagem; 2. exibir uma “postura otimista em relação a uma reabilitação da esfera pública”: a decisão sobre as orientações da ação social seria baseada numa “disposição democrática de dialogar e alcançar um consenso, unicamente em função da racionalidade das ações” e não mais por qualquer “imposição coercitiva (externa as duas coisas ao mesmo tempo: ele é o iniciador, que domina as situações por meio de ações imputáveis”, bem como é o produto “das tradições nas quais se encontra, dos grupos solidários aos quais pertence e dos processos de socialização nos quais se cria” (Habermas, 1989, p. 166).

34 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre a facticidade e a validade. Vol. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

35

WILLKE, H. Ironie des Staates. Frankfurt/M., 1992. Ironia do Estado. Esboço de uma teoria da sociedade policêntrica do Estado.

36 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre a facticidade e a validade. Vol. 2. p. 98. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

37

50 ou interna)”; 3. nutrir um certo “otimismo democrático das formas de convivência social em que a sociedade civil passa a ter uma função essencial de decisão, de modo a regular e controlar a esfera da atuação do estado”; 4. apostar na “comunicabilidade” – pois considera que o traço distintivo do ser humano é a linguagem – já que só ela pode garantir “um futuro melhor, em que as relações humanas e sociais serão mais transparentes e menos violentadoras”. (ASSENCIO, p.09) .

Ou seja, na visão de Habermas, a esfera pública é concebida como espaço de diálogo e pacto entre as partes, espaço de consenso e não de disputa. Sua tentativa era de contrapor o pessimismo radical em torno do que diz respeito à emancipação humana característico do período pós-Segunda Guerra Mundial. Como foi visto no trecho citado, ele “apostava na comunicabilidade”, e acreditava no potencial da sociedade, por meio da comunicação, em encontrar um denominador comum na relação dos interesses entre sociedade e Estado. Bravo e Menezes (2011), numa análise a respeito dos Conselhos de Saúde, apontam a perspectiva e Habermas quando dizem que

Um número significativo de estudos tem interpretado os conselhos como espaço de consenso, de pacto, isto é, onde os diferentes interesses convergem em um interesse comum. Tal concepção baseia-se em Habermas e nos neohabermesianos que não leva em consideração a correlação. Habermas afirma que a democracia está ligada ao ato argumentativo, considerando a teoria da ação comunicativa. (BRAVO & MENEZES, 2011, p 31)

As autoras, com base em Duriguetto (2007) e Gonzáles (2000), afirmam que para Habermas, a proposta é “substituir a „utopia do trabalho‟ pela racionalidade comunicativa, único meio que visualiza como capaz para afirmar os valores da solidariedade contra o poder e o dinheiro38”. E que o conceito de “democracia deliberativa”, que começa a ser utilizado na década de 1980, foi bastante influenciado por Habermas. A “democracia deliberativa” buscava, por meio da comunicação, do diálogo, o consenso, para “ouvir os argumentos dos demais e mudar suas posições39”.

De fato, Habermas desconsidera o histórico antagonismo entre as classes sociais, e, analisando todos os contextos históricos em que foram protagonistas as

38 Duriguetto, 2007:113. 39

51 classes subalternas e a classe dominante, foram contextos de diversidade de interesses. Basta atentar-se para o fato de que a elite burguesa tem subjugado a classe trabalhadora desde que alcançou o poder, pondo fim no feudalismo. Desde então, inicia-se a livre exploração da força de trabalho e a apropriação da riqueza socialmente produzida por parte da sociedade, pelos burgueses donos dos meios de produção. Desde então, vez após vez, constroem-se palcos de disputa intensa, onde a classe trabalhadora organizada luta por melhores condições de vida e trabalho, por dignidade, pelos seus direitos já positivados em lei, mas também por novos direitos; enquanto a classe dominante, seja por meio da violência ou da coerção ideológica, vai mantendo-se no poder, assegurando seu lucro e o acúmulo da riqueza produzida pelas mãos dos trabalhadores.

A desigualdade é funcional ao Estado burguês, então, objetivar uma esfera pública livre de conflitos, de correlações de forças, parece ser tão subestimador quanto pensar a respeito disso sob uma perspectiva pessimista.

Assim, fica claro que Habermas não se fundamenta na historicidade do antagonismo entre as classes, não considera que a natureza desse antagonismo tem raízes profundas nas relações construídas ao longo da história, e que para superá-lo, seria necessário ou que a burguesia abrisse mão da exploração da força de trabalho e se construísse relações de igualdade social, de justiça social; ou então que as classes subalternas terminassem por se entregar aos interesses burgueses de dominação e exploração, sem lutar, apenas consentindo. E nenhuma dessas opções tem embasamento, quer seja histórico, filosófico, social. Afinal, enquanto houver desigualdade, haverá luta de classes.

Alguns Conselhos de Saúde podem ter suas lideranças cooptadas, assim como acontece com alguns sindicatos. Mas nem por isso a classe trabalhadora deve se ausentar dessas instituições, ao contrário, deve estar presente, lutado, propondo, denunciando, reivindicando. Qualquer abordagem pessimista ou otimista utópica, como foram as abordagens de Althusser e Habermas respectivamente, deve ser contraposta à realidade social, ao conjunto de fatores e determinações que nos trouxeram até este ponto. Há necessidade de uma reflexão crítica a respeito da realidade da participação social no Brasil hoje, para que haja o reconhecimento das potencialidades da organização das classes subalternas.

52 de Saúde, tratar-se-á a seguir das concepções gramscianas a respeito da participação social.