• Nenhum resultado encontrado

CAPITULO 3 – PROPOSTA DE ATER COMO DIFERENCIAL PARA O TERRITÓRIO

3.5 O PAPEL DO ESTADO E DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA PNATER

3.5.1 O papel do Estado no que se refere à ação da política de ATER

A promoção de políticas públicas para comunidades tradicionais não surge por acaso, mas sim por meio de várias lutas e reivindicações sociais que percorreram décadas. E foi a partir de 2003, com a criação do Programa Brasil Quilombola,28 que várias políticas foram previstas para esses povos, como: a ATER. Pierre Miller e Yves Surel (2002; p. 13) apontam que as políticas públicas apresentam-se como quadro normativo de ação que é formada por um conjunto de medidas concretas que constituem a substância “visível” da política. É algo recorrente de recursos financeiros, intelectuais, reguladores e materiais. [...] Ela é também constituída de “produtos”, isto é, de outputs reguladores (normativos), financeiros, físicos.

Nessa premissa, ocorre a integração de todos esses aspectos para formar o que realmente ele chama de quadro normativo, pois, em qualquer que seja a ação, precisa desses requisitos para ser verdadeiramente vista como ação. Ele ainda incrementa que esta deve ser pensada como necessidade de um determinado povo e espaço (território), e assim fazer o processo de legalidade. “O Estado apresenta como fator externo de reconstrução da localidade, determinando as fronteiras para determinadas políticas e com maior ou menor sucesso estabelecendo uma lógica territorial de identidade”. (ANJOS, 2006; p. 41).

Como “O território é fundamental para a reprodução de sua existência e manutenção de sua identidade” (CASTRO, 1998; p. 12), é um dos elementos constituidores e de suma importância para garantir a sobrevivência e manutenção das condições adequadas para a existência das identidades socioculturais de uma comunidade tradicional. (CAETANO et al., 2017, p. 14). Nessa perspectiva é que ocorrem as políticas públicas nos lugares mais distantes; mas isso não significa âmbito de bondade do Estado, mas, sim, uma intensa corrente de lutas em movimentos da sociedade civil.

Dessa maneira, reflete-se que toda e qualquer política deve ser analisada através de políticas públicas de forma não somente no processo de ação, mas o que está atrelado na sua própria elaboração, para que se tenha, de fato, a compreensão do seu verdadeiro objetivo. Gramsci (2000), ao se referir a políticas públicas, traz para o debate a opinião de que estas correm de forma dialética entre sociedade política e sociedade civil, ambas permeadas por uma

relação de identidade e distinção. Pode-se dizer, também, que as políticas públicas são tudo aquilo que os governos escolhem fazer ou não fazer (OLIVEIRA et al., 2010, p. 168); mas, sem dúvida, há uma luta por direitos em que o Estado precisa dar a sua contribuição para que as ações cheguem aos espaços mais distantes. E a criação de projetos para a sociedade é que faz com que as ações sejam regulamentadas e efetivadas.

Os autores Caetano et al. (2017, p. 14) colaboram com a ideia de que as políticas e projetos devem ter o entendimento de sua constituição, das suas ações, sua formação, sua identidade e realidade social vivida pela comunidade ao longo de sua história, por se tratar de uma questão de valores, que também são simbólicos para com o ambiente, associado às questões de identidade local. (MARTINS; PAIVA; ALMEIDA, 2016, p. 05). Por isso, é importante a participação dos grupos sociais junto ao planejamento político, para que sejam inseridos no projeto público o reconhecimento e valorização do saber local, pois são conhecimentos que merecem ser levados em consideração e o Estado tem papel relevante nesse processo.

Tudo isso para se fazer entender que a reflexão das ações vai se dar diretamente a quem está recebendo tal política, portanto, não pode ser pensada tão somente no “desenvolvimento” ou “modernidade”, mas nos atores sociais que se encontram nessas comunidades tradicionais. Na percepção de Rodrigues et al. (2011), as políticas de desenvolvimento são algo contraditório, em que se apoia políticas de reparos sociais para um determinado grupo, em nome do dito “desenvolvimento”. Essa é uma crítica, que remete à reflexão do “olhar” a quem está sendo direcionada a política.

Trata-se, definitivamente, de interrogar-se sobre o funcionamento da democracia, a partir do momento em que a dimensão técnica da ação pública aumenta fortemente, a tal ponto que termina por colocar-se o problema da reintegração do cidadão na “rede da decisão”. Ou seja, quem deve pensar sobre a necessidade de uma política é o cidadão, que reconhece o seu maior imperativo. Se ela for pensada por outros, não trará efeitos contundentes, a não ser um ato de participação social, como de verdade deve ocorrer na política pública, mas se encontram delimitadas segundo sua inscrição em um território dado e/ou um setor socioeconômico, tornando-se esta última noção, pouco a pouco, o principal modo de distinção. Por isso, é necessário fazer a definição de um problema, enquanto dificuldade pública, como aspectos mobilizadores a todos os grupos referentes a tal problemática. E então acionar a esfera governamental para incluir na agenda.

Nesse caso, o Estado tem um papel muito importante no agendamento da política. Para Souza (2015, p. 41), atualmente, o Estado surge na perspectiva de um estado mínimo, pensando

em políticas sociais conquistadas no período do bem-estar social, pois, na realidade, o Estado é máximo para o capital [...]. Esse autor chama a atenção sobre a lógica neoliberal que torna o mínimo para as políticas sociais e distribuição de renda, e máximo para a intervenção do capital, que se concentra nas mãos de poucos. Para Marx e Engels (1998), o Estado nasce do antagonismo de classe. E é através desse antagonismo que também se pode ter as ações sociais. Mas, para falar sobre o Estado, é preciso compreender como este é formado; e Souza (2015) destaca o conceito desenvolvido por Aristóteles, que analisou a estrutura política, o funcionamento dos órgãos políticos e classificou as formas de governo existentes naquele momento, apesar dos fundamentos e subsídios que essas experiências forneceram, aplicá-las a sociedades complexas (SOUZA, 2015, p. 25). No Estado absoluto, a autoridade é consensualmente entregue a um corpo legislativo e a um monarca, para que criem e imponham leis visando a preservação e representação dos interesses dos governados. E onde a sociedade civil entra nessa discussão, já que as políticas públicas são interesses diretos dos mesmos?

Enquanto Marx faz o desfecho da sociedade civil que coincide com a base material (contraposta à superestrutura em que estão as ideologias e as instituições), Gramsci fala do momento em que a sociedade civil é superestrutural. A sociedade civil representa o momento da etnicidade, através do qual uma classe dominante obtém o consenso, adquire legitimidade; o Estado representa o momento político estritamente entendido, através do qual é exercida a força. [...]. O Estado nasce para colocar ordem na sociedade, pois é preciso ter limites nos

conflitos. (ENGELS, 2002, apud MONTAÑO, 2011; p. 41). Sendo assim, a sociedade é parte

integrante da formação do Estado que contribui para o desenvolvimento econômico das diversas classes. Enfim, para entender o Estado é preciso fazer análise e reflexão desde o seu surgimento, compreendendo o papel principal que ele tem no âmbito das Políticas Públicas, em que uma delas é no contexto da agricultura familiar, a ATER.

Assim, vários órgãos que estão ligados ao Estado estão presentes no aspecto do desenvolvimento da política de ATER, que vão contribuir para o serviço do que se chama “extensão”. Mencionado anteriormente, com a fundação da Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Raciais, em 2003, muitas das políticas públicas foram realizadas para os quilombolas, uma vez que estas "preveem iniciativas de coordenação, monitoramento e avaliação das ações governamentais voltadas para as comunidades quilombolas" (GUIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA QUILOMBOLAS; p.11). E, também, no Decreto nº 4887/2003 que “Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o art. 68” da CF, que também faz referência a ATER;

Art. 20. Para os fins de política agrícola e agrária, os remanescentes das comunidades dos quilombos receberão dos órgãos competentes tratamento preferencial, assistência técnica e linhas especiais de financiamento, destinados à realização de suas atividades produtivas e de infraestrutura. (DECRETO N° 4887/2003)

Entende-se que a expressão “receberão dos órgãos competentes” os remete ao Estado, visando demonstrar que essa secretaria está diretamente ligada com o apontamento dos direitos dos quilombolas, que desenvolvem suas atividades sendo financiadas pelas políticas públicas, a exemplo, a PNATER. A SEPPIR tem acompanhado e estimulado a instituição de Comitês Gestores Estaduais, até o presente momento, para que os quilombolas possam ter acesso.

Também, um órgão representante do Estado que está ligado diretamente com o serviço de ATER é a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário

(SEAD) da Casa Civil da Presidência da República. Foi criado em 2016 pelo decreto n° 8.780,

com a Extinção do Ministério de Desenvolvimento Agrário, em conjunto com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) que coordena o Programa de “responsabilidade conjuntamente de ações para sua execução: a oferta de serviços de assistência técnica e extensão rural é responsável pela transferência de recursos financeiros não reembolsáveis diretamente às

famílias beneficiárias”29. (PORTAL DO GOVERNO). Para que isso ocorra é preciso que as

famílias estejam cadastradas no CAD único organizado pelo MDS, pois através desse órgão, após a seleção dos beneficiários, serão repassados o valor de R$ 2.400,00 (dois mil e quatrocentos reais) no próprio cartão do Bolsa Família.

As referidas ações são articuladas com o objetivo de apoiar a estruturação produtiva das famílias rurais mais pobres e o desenvolvimento do projeto produtivo de cada uma, para que ampliem ou diversifiquem a produção de alimentos e as atividades geradoras de renda. (PORTAL DO GOVERNO). Portanto a missão da SEAD é:

“Promover a política de desenvolvimento do Brasil rural, a democratização do acesso à terra, a gestão territorial da estrutura fundiária, a inclusão produtiva, a ampliação de renda da agricultura familiar e a paz no campo, contribuindo com a soberania alimentar, o desenvolvimento econômico, social e ambiental do país” (PORTARIA SEAD Nº 424/2017).

Como se está falando de papel e representações de órgãos ligados ao Estado, veja-se que com a extinção do MDA, é perceptível o retrocesso no que diz respeito ao Desenvolvimento

1.1 29Programa de Fomento às Atividades Produtivas Rurais. Disponível em:

da agricultura familiar, sendo criticado pelo próprio Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável.

[...] Mostra, um olhar equivocado, ao confundir o papel desempenhado exemplarmente pelo MDS no âmbito do desenvolvimento social e o papel exercido ao longo destes anos pelo MDA, cujas políticas levadas a cabo inserem-se especialmente no âmbito da melhoria e ampliação da produção agrícola do país, levando em conta não preceitos meramente produtivistas e voltados para a obtenção de lucro pela exploração da terra e daqueles que a cultivam, mas, sobretudo, tendo como princípios a inclusão social, a produção sustentável e a ampliação da qualidade de vida dos agricultores e agricultoras do Brasil. (CONDRAF, S/A; p. 01)

Essa crítica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável sobre a extinção do MDA mostra as políticas como a de ATER, cujo objetivo não é apenas o aumento produtivo pensando no financeiro, mas na qualidade de vida das pessoas que têm ligação direta com a terra. É também o órgão fiscalizador das ações, através do SIATER (sistema Informatizado de ATER), sendo necessário o credenciamento das entidades.

E, no continuar da situação, observe-se que, entre os órgãos envolvidos, se encontra o INCRA, instituição que foi criada para realizar a Reforma Agrária, manter o cadastro nacional de imóveis rurais e administrar as terras públicas da nação. É responsável também pela regularização fundiária dos quilombolas, tornando, assim, as políticas territoriais possíveis. A instrução normativa 59/2009, destacada pela competência deste órgão, versa que:

Art. 5º. Compete ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência comum e concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 57/2009)

O artigo 31 faz referência às articulações entre os setores que estão diretamente ligados com a política de ATER para os quilombolas;

Art. 31. O INCRA, através da Diretoria de Ordenamento da Estrutura Fundiária (DF) e da Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas (DFQ), manterá o Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR e a Fundação Cultural Palmares informados do andamento dos processos de regularização das terras de remanescentes de quilombos. (INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 57/2009)

O importante nessa situação é a compreensão de que o INCRA atua diretamente nas políticas para Assentados da Reforma agrária; entretanto, é perceptível o seu envolvimento quando o coordenador de projetos da ARQUIA fala sobre a conquista da ATER no território, sendo o maior projeto de ATER para os quilombolas.

Essa política de ATER se deu através de uma articulação entre o movimento social e o INCRA. A gente tinha conhecimento que as políticas públicas elas rolavam tudo por

dentro do INCRA, então, neste período, a gente achou um parceiro que conseguiu sentar lá na cadeira junto ao assessor do presidente do INCRA em Belém; e agente conseguiu articular com ele alguns projetos de ATER para a comunidade quilombola e foi a partir dali que se conseguiu fazer a primeira articulação a nível de Brasília, já que o INCRA tem acesso a todos os Ministérios, foi a partir dali que houve uma busca por uma demanda, e aí feita outras articulações, feita lá por cima, foi conseguido designar um projeto específico para comunidades quilombolas de Abaetetuba. (ENTREVISTA, MQ2).

Nesse aspecto, representado na fala do coordenador de projetos da Associação, é explícito que existe uma relação, na possibilidade de que as políticas de ATER ocorrem por uma demanda social, em que existem lutas dos movimentos.