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PREVENÇÃO ESPECIAL POSITIVA

9.6. O paradoxo Prisão / Educação

A educação e a prisão sempre formaram um par incoerente, a primeira encontrando a sua justificação universal no contexto particular da segunda que, no entanto, por natureza oferece apenas um quadro contraditório à livre expressão da primeira. Como já verificado, a educação (em sentido amplo), será a componente basilar de qualquer processo de reintegração social que vise reinserir com sucesso o ex-recluso na sociedade sem que este volte a reincidir criminalmente. Como tal, ao esboçar qualquer projeto educativo de reinserção social, as administrações prisionais terão, invariável, de questionar: de que forma a prisão, tida como antieducativa em si, pode oferecer a pessoas que não pediram para lá estar, que na maioria das vezes não reconhecem a autoridade institucional como legitima e, que só raramente reivindicam programas educacionais, uma possibilidade de fornecer conteúdos educacionais uteis que, no seu momento presente lhe servirão até á sua saída?

Estas são sem dúvida questões às quais o nosso sistema prisional (pelas mais diversas razões), tem revelado dificuldade em dar resposta. De facto, e como já referido, a experiência cultural e educacional na prisão é contraditória, na prisão convive-se com um grupo de pessoas que não se escolheu, num local que não escolheu, ao lado de redes informais de tráfico de todas as espécies, com acesso a material “cultural” de toda a espécie (videojogos e programas de televisão violentos e/ou pouco educativos, revistas e livros com conteúdos fúteis), seguindo repetidas rotinas diárias institucionalmente impostas de acordo com as necessidades de manutenção de ordem e segurança que os nossos estabelecimentos prisionais exigem, incompatíveis à livre determinação e iniciativa que tal tarefa requere. As contradições identificáveis no nosso sistema prisional assumem diversas dimensões e origens, analisando as finalidades da execução da pena (artigo 2.º, n.º 1 da Lei n.º 115/2009) e a forma como na prática se procura materializar os seus princípios orientadores (artigo 3.º, n.ºs 2,3,4,5,6 da Lei n.º 115/2009) encontramos o primeiro paradoxo. Em nome da livre determinação da pessoa e da promoção dos direitos individuais (direitos «egoístas»), ao recluso não é exigida a sua participação ativa nos programas de tratamento penitenciário, ou seja, o sua participação em atividades e programas com conteúdo útil, depende única e exclusivamente da sua vontade, permitindo que, tais reclusos, adotem uma conduta semelhante à que os levou à condição de reclusos, sem responsabilidades e sem assumirem compromissos. Paralelamente, e em nome dos

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mesmos princípios, todos os reclusos (exceto os reclusos que estão em regime de segurança) têm acesso aos mesmos benefícios, conteúdos culturais, fontes e instrumentos entretenimento (não selecionados ou discriminados) que livremente circulam na prisão, partilhando o mesmo espaço e regime dos reclusos colaborantes com o tratamento penitenciário. A conjugação destes fatores leva, em primeiro lugar, a que o ócio se instale no quotidiano de muitos reclusos, sem motivação, incentivos ou sensibilidade, para se interessarem por programas, atividades oferecidos através do tratamento penitenciário, deixando assim tempo para o ocuparem com atividades pouco estimulantes para o fim a que se destina a execução da pena e/ou a atividades ilícitas. É manifesta a falta de mecanismos institucionais para combaterem este flagelo. Se por um lado, a falta de técnicos superiores de reinserção não permita o acompanhamento mais individualizado e humano do recluso, que motive e incentive o mesmo a participar ativamente nas atividades e programas desenvolvidos, por outro, o único instrumento legal previsto para incentivar os reclusos a participar ativamente no planeamento da execução da sua pena – as medidas flexibilizadoras da execução da pena – até ao meio da pena (dependendo das administrações prisionais, por vezes mais) revelam-se inúteis. Em segundo lugar, à falta de incentivo e motivação junta-se todo o material de entretenimento possível e imaginário com pouco (ou nenhum) conteúdo útil que, desestimula a desejada conduta proactiva do recluso perante o tratamento penitenciário, assim, ao recluso, é mais cómodo ficar na cela a jogarem videojogos violentos, verem programas televisivos que os fazem sonhar em serem ricos e celebres, a terem de se expor a funcionários ou a outros reclusos em atividades ou programas que não se sente confortável.

Todavia, perante a realidade do nosso sistema prisional, a incapacidade de separar os reclusos de acordo com o tratamento penitenciário adequado e, ao caráter imparcial da execução da pena de prisão (artigo 3.º, n.º 3 da Lei 115/2009), não se pode fazer qualquer tipo de discriminação entre reclusos, permitindo que uns tenham acesso a determinados tipos de entretenimentos ou conteúdos culturais e outros não. Também a falta de oferta de atividades e programas que satisfaça a procura da população reclusa leva a que, certos artigos que estimulem o ócio e pouco contribuam para a aquisição das competências e carências educativas de que muitos reclusos foram privados, sejam autorizados de forma a manter os reclusos ocupados.

Ressocialização no Meio Prisional: A divergência entre o discurso político e a prática institucional

Quando se projeta um programa educativo na prisão, é falso e ilusório pensar-se que a prisão será um novo ponto de partida, um novo início a partir do qual uma nova educação será dada a um novo ser. O recluso não é um agente passivo e a educação nunca parte do nada. A maioria dos reclusos são provenientes de um meio socioeconómico baixo, desde a mais tenra idade tiveram de aprender a viver na miséria, em condições precárias, famílias desestruturadas, em ambientes violentos, frequentemente a estratégia passou por se juntarem a gangues ou grupos pouco recomendáveis cuja prática criminosa lhes prometia uma solução rápida e feliz para os seus problemas. Estas estratégias para ascenderem socialmente, fizeram com que os reclusos tivessem desenvolvido habilidades de dissimulação, manipulação, organização de grupos violentos de roubo e extorsão. Tal como neste meio, na prisão aprende-se por necessidade, aprende-se por urgência, a necessidade e urgência de sobreviver num meio hostil, de conhecer as redes de influência, de integrar as atitudes que melhor serão aceites no meio e que lhe oferecerão uma saída mais rápida, de saber como melhorar o seu quotidiano, de guardar um mínimo de intimidade, manipular comportamentos, necessidade e urgência de simplesmente existir. Nestas condições aprende-se rápido e vai-se ao essencial que, raramente, passam pelas soluções oferecidas institucionalmente. A cultura da prisão é a educação por pares, é a reprodução ou a imitação dos comportamentos valorizados, é a cultura do mais forte e da desenvoltura. Como tal, para que o processo educativo na prisão surta o efeito institucionalmente desejável, deverá ser reconhecido pela própria instituição que este processo é, um processo contínuo e permanente do qual dependem todos os agentes a operarem no dia-a-dia prisional (administração; guardas; enfermeiros; psicólogos, técnicos de educação etc.), não se podendo resumir a atividades e programas imediatistas e esporádicas de alcance questionável, cujo fito resume-se à procura de ocupação dos tempos livres dos reclusos.

Sendo precisamente, neste ultimo aspeto que, em termos práticos reside outro paradoxo. A demanda por educação na prisão, em termos práticos, surge como uma forma de ocupar os tempos livres dos reclusos, como uma forma de combater o ócio nas prisões, a ocupação do tempo dos reclusos com atividades desportivas, recreativas, com acompanhamento religioso, possibilidades de trabalho, cursos de formação profissional, e outros programas de carater especifico, permitiram ao reclusos suportar o menos mal possível a privação da liberdade. Mas, acima de tudo, além do bem-estar físico, social e intelectual essas

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iniciativas destinam-se sobretudo a manter a ordem no interior das instituições, procurando evitar que os reclusos ocupem o tempo com outras atividades paralelas ilícitas.

Este paradoxo é alimentado pela conjugação de dois fatores essenciais que chocam grosseiramente com os princípios da especialização e individualização do tratamento penitenciário, sendo eles: a Organização das atividades e Conteúdos Educativos e; o Acompanhamento Institucional à Educação. No que concerne ao primeiro fator, a contradição reside no facto das iniciativa não irem de encontro à demanda dos principais interessados - os reclusos, mas sim, são estruturadas de acordo com as capacidades de serem fornecidas pelos estabelecimentos prisionais. Face às infraestruturas prisionais inadequadas para fornecerem e desenvolverem em quantidade e, em género as diferentes atividades que satisfação as necessidades ressocializadoras dos seus reclusos, a solução encontrada pelas administrações prisionais passam por adotar atividades e programas que abranjam o interesse do maior número possível de reclusos, e não as necessidades particulares. Neste contexto, a seleção dos conteúdos dos programas de treinos de competências, das formações profissionais e das atividades laborais desenvolvidas nas nossas prisões não respondem às necessidades ressocializadoras particulares.

Quanto aos programas de treinos de competências, é necessário indagar se estes cobrem a totalidade das tipologias de crimes, comportamentos e personalidades desviantes que compõem a população reclusa portuguesa e, questionar que alcance programas com duração de meses administrados de uma a duas horas semanalmente têm na vida de um recluso com anos de pena para cumprir. De acordo com o testemunho dos reclusos que entrevistei e conversei depreendo que não. O recluso entrevistado “M” neste contexto referia que: “ […] o meu problema é o jogo, ou de outra pessoa é a droga, o de outra será o impulso para a violência sexual, cada um de nós tem problemas específicos, com necessidades destintas e respostas para os resolver completamente diferentes, há aí tanta gente sem fazer nada e ninguém é capaz de chegar ao pé de mim e dizer: ok, o seu problema é o jogo, vamos fazer uma terapia, em condições claro, não como muitas que aí fazem que é só para passar o tempo. Não, agarrava-se em profissionais qualificados e fazia-se o tratamento e acompanhamento necessário. Isso não acontece, é as mesmas atividades para toda a gente.

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para o meio social. A grande maioria dos reclusos são pouco qualificados e pouco trabalharam “regularmente”, verificando-se que as atividades laborais desenvolvidas no meio prisional raramente concorrem para valorizar a aprendizagem. As atividades são, geralmente atividades repetitivas que não comportam nenhuma dimensão de desenvolvimento de competências. A generalidade dos trabalhos disponíveis responde às necessidades de manutenção dos estabelecimentos prisionais ou, ao benefício das empresas privadas através da subcontratação de mão-de-obra barata (os reclusos). Também, por questões de segurança muitas atividades não podem ser desenvolvidas no nosso meio prisional, sendo inviável perante as infraestruturas atuais, transformar os complexos prisionais em complexos industriais. Sobre estas questões, o atual adjunto do EP Carregueira, “MJ”, refere que: “ há um desfasamento entre programas, escola, formação profissional, e trabalho. Estas atividades ocupam o tempo do recluso mas não significa que criem condições para a aquisição de competências por parte do recluso. A forma como se faz a seleção dos reclusos para estas atividades torna claro que não vão de encontro dos princípios da especialização e individualização do tratamento”. A mesma fonte, questionada se as atividades e programas vão de encontro às necessidades requeridas no meio social responde: “[…] pode-se afirmar que não são solução […]. Existe alguma avaliação de quantos ex-reclusos estão a exercer a atividade correspondente ao curso de formação profissional que frequentou durante o período de privação de liberdade? Não, não existem nem estudos, nem avaliações, apenas discursos bem-intencionados […]”. O paradoxo do acompanhamento institucional à educação é um reflexo de como todo o quotidiano prisional é organizado em função dos recursos disponíveis e não, em função dos objetivos a alcançar com a pena legalmente consagrados. É manifesta a falta de técnicos superiores de reeducação, muitos destes profissionais têm a seu encargo mais de centena e meia de reclusos e acumulam uma grande diversidade de funções95,sendo a maior parte delas de cariz burocrático que absorvem a maior parte do tempo deste profissional, impossibilitando um acompanhamento de proximidade, mais humano entre estes profissionais e os reclusos. Se as funções burocráticas ocupam o tempo dos TSR´s que deveriam ser passado junto do recluso, outras funções minam a possibilidade de se estabelecer uma relação de confiança e credibilidade entre reclusos e técnicos, por exemplo: ao emitirem pareceres (de julgamento) dos quais dependem o acesso a benefícios

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e às medidas flexibilizadoras da pena dos reclusos, acabam por ser interpretados pelos reclusos, não como tutores, mas sim, como meros intervenientes do sistema prisional aos quais têm de “agradar” para colherem os desejados benefícios, originando frequentemente um clima de tensão entre educadores e reclusos96, como também, motiva o comportamento manipulativo dos reclusos perante os seus educadores como ficou manifesto nas respostas de alguns reclusos: “Isto é tudo um grande cinismo, eu vou pro gabinete com a educadora, tenho de ser cínico e falar bem com ela, apesar dela não o merecer. Mas eu preciso dos pareceres positivos dela pra ter condicional, precárias e visitas intimas. Apesar de ser direto e frontal com ela, tenho de encarnar uma personagem para ter benefícios, porque se lhe dissesse o que tinha vontade ainda tava mais lixado.”97

O tratamento burocratizado e impessoal que carateriza os nossos serviços prisionais destoam do papel que um educador deve desempenhar junto de um recluso. Esse acompanhamento diário é, no nosso sistema prisional, desempenhado pelos funcionários que, aos olhos dos reclusos, simbolizam o carater repressivo do sistema – os guardas prisionais- que, ao abrigo das suas competências previstas legalmente no Decreto-Lei n.º 3/2014 de 9 de janeiro, limitam-se a ser os polícias do meio prisional, não prevendo quaisquer competências no âmbito educativo do tratamento penitenciário (o que na realidade não acontece). Nestas condições é muito difícil apresentar um meio com potencial educativo.

Face a todas estas idiossincrasias, o atual sistema prisional revela-se incapaz de materializar os princípios orientadores da execução da pena de prisão (Artigo n.º 3º, Lei n.º 115/2009). A verdade é que não existe um programa educativo faseado, planeado no tratamento penitenciário, com base num estudo de personalidade dos reclusos à luz dos dados de que se dispõe sobre as suas necessidades individuais, as suas capacidades e o seu estado de espirito e, que verdadeiramente prepare o recluso para as dificuldades que enfrentará na vida em sociedade. Sendo cada condenado possuidor de características próprias e individuais, seria necessário que cada um dos reclusos fosse avaliado exaustivamente por profissionais capacitados.

96 Em alguns atendimentos a que assisti foi evidente a tensão e a revolta por parte de alguns reclusos que