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5 FACES DA MEDIAÇÃO NO AEE AO ALUNO COM DEFICIÊNCIA

5.6 O pensamento superior e sua gênese histórica

Alinhados com essas reflexões sobre o AEE como apoio pedagógico ao desenvolvimento curricular do aluno com deficiência intelectual, temos, sob forma de retórica, a seguinte indagação: seria o conceito de Funções Psíquicas Superiores (FPS), uma necessidade condicionante na realização de mediação, segundo a perspectiva histórico cultural? Consideramos que a escuta aos participantes do “Círculo Reflexivo”, trazendo seus posicionamentos quanto a essa questão, da importância ou não de se apreender o conceito de FPS, contribuiu, favoravelmente, com as análises feitas no estudo. Conforme depoimentos dos participantes no “Círculo Reflexivo”,

- É muito interessante isso124.... Então, eu acho isso aqui muito importante pra gente fazer tanto para o aluno, que a gente está recebendo, quanto para a nossa prática profissional...porque nós estamos em um caso, mas como o caso dele nós temos outros na escola. Então isso não ajuda apenas esse aluno, ajuda também outros alunos. E os outros que vierem... (MERCÚRIO). - Até porque quando você começa a se apropriar da teoria, do conhecimento sistematizado, isso começa também a abrir novas possibilidades...você começa a enxergar...voltando aí para a questão do “Sol” que você não via antes, enxergar novas dimensões. Porque quando a gente não elabora...o conhecimento, ele fica muito prático e a gente não consegue enxergar...só ali o que você tá vendo na aparência...você só consegue ver a deficiência...e o conhecimento, a reflexão, ela amplia o foco (LUZ).

E no momento, efetivamente, de escuta, no segundo encontro do “Círculo Reflexivo”, seguimos um roteiro125

, evidenciado anteriormente, com perguntas que direcionaram esse momento que era formativo e, portanto, de identificação do nível de compreensão de conceitos importantes da abordagem histórico cultural pelos participantes. Tais conceitos, consideramos fundamentais para que a ação mediada ocorra conforme padrões de intencionalidade. Uma das questões foi:

- Como poderíamos definir Desenvolvimento Psíquico Superior? (PESQUISADORA)

124 A professora estava se referindo ao momento formativo no “Círculo reflexivo”. 125 Conforme Apêndice D.

Momento de silêncio...

- Acho que são... é o desenvolvimento de atividades, não só atividades básicas...elementares...são atividades mais refinadas... (METEORO).

- Alguém mais quer falar? (PESQUISADORA).

- [...] atividades relacionadas com a mente, né? Essa mente desse aluno...como ajudar nesse desenvolvimento...não ficar só no que ele já sabe [...] Como trabalhar essa mente... como desenvolver isso aí... (ESTRELA). - Perguntando de outra forma: quando eu ouço a expressão desenvolvimento psíquico superior, que se refere diretamente a seres humanos, e no nosso caso, a alunos, o que a gente pensa quando vê essa expressão, ouve essa expressão? (PESQUISADORA REALIZANDO A MEDIAÇÃO APROXIMANDO A PERGUNTA DO NÍVEL DE COMPREENSÃO DE ALGUNS PARTICIPANTES).

- Ao meu ver, a gente pensa: o aluno tem o QI mais elevado, né? Acho que é mais nesse sentido aí...tem o cognitivo mais desenvolvido... (TITÂNIA). - Desenvolvimento psíquico superior...então a gente pensa logo no ser humano...o ser humano ele tem essas capacidades...vamos dizer assim...de desenvolvimento de processos superiores que nenhum outro animal tem. Por exemplo, capacidade de planejar, de usar a imaginação, de se concentrar, de ter atenção [...] (LUZ).

- De refletir... (METEORO).

- [...] de selecionar, de classificar... então, são processos psicológicos que nenhum outro animal tem. Os outros animais, eles também têm processos, tem uma inteligência, mas é aquela inteligência prática, elementar...como ela colocou aqui126 (LUZ).

- Lembrando que... esse processo todinho é para aprofundamento de quê? Do conceito de mediação. Esse momento é só de escuta... e toda vez que eu falar eu nunca vou estar querendo...responder alguma coisa, ou seja.... O caso não é nem responder, é pensar junto com vocês...que um momento de construção aqui. Mas, toda vez que eu fizer uma intervenção vai ser no sentido de tornar mais clara, a pergunta, ou estabelecer uma mediação de forma que vocês consigam dizer algo... Como está acontecendo aqui, agora, tá? (PESQUISADORA).

- Então, além do que vocês já disseram, alguém mais quer dizer algo sobre o seu conceito, como concebe, como entende desenvolvimento psíquico superior? (PESQUISADORA).

- Ah, só pegando a fala de...a capacidade de pensar...de refletir...e aí um conceito, sem muito aprofundar, porque ainda tem muita coisa...esse desenvolvimento psíquico superior é a capacidade que o ser humano tem de refletir, de planejar algo naquele momento que lhe é colocado como desafio... (PLUTÃO).

- Estão se sentindo contemplados? Eu vou fazer uma pergunta, só para nos inquietar! Não é sobre a questão em si, mas é em relação ao conceito de mediação a ser aprofundado. Lembram do que “Plutão” [fala anterior] falou? Eu estou falando aqui, mas a gente tem ainda que estudar bastante e aprofundar.... Então, quando você se depara com essa pergunta, o que você

pensa sobre a sua resposta com relação à pergunta? Não precisa responder...é como você se sente diante da questão...feita... É preciso saber mais?127 (PESQUISADORA).

Essa posição, quanto à importância de se compreender as características de funcionamento do pensamento tem ainda subsídio teórico sinalizado por Luria (1981, p.01):

O cérebro humano, o mais requintado dos instrumentos, capaz de refletir as complexidades e os emaranhamentos do mundo ao nosso redor - como é ele construído e qual a natureza de sua organização funcional? Que estruturas e sistemas do cérebro geram aqueles complexos planejamentos e necessidades que distinguem o homem dos animais? Como são organizados os processos nervosos que capacitam as informações derivadas do mundo exterior a serem recebidas, analisadas e armazenadas, e como são construídos os sistemas que programam, regulam e posteriormente verificam as formas complexas de atividade consciente que são dirigidas para a realização de metas, a execução de desígnios e a concretização de planos?

Como podemos observar, há elementos pertinentes nas afirmações e indagações do citado autor quando se localiza como um dos eixos para “[...] o bom aprendizado” é somente aquele que se adianta ao desenvolvimento” (VYGOTSKI, 2003, p.117). Com isto, entendemos a pertinência de uma aproximação do conceito de função ao conceito de mediação.

Avançando nas discussões de interpretação indubitavelmente lógica, onde os investigadores que examinavam a questão da função elementar de um tecido particular como um problema cortical em decorrência de estimulação ou exclusão de áreas cerebrais, Luria (1981) evidencia que essa definição não se adequa a todos os tipos de função. Assim, referencia o conceito de função como sistema funcional inteiro, trazendo-o do campo de estudos neurofisiológicos, onde este termo “função” foi inicialmente concebido:

É obvio que o conjunto desse processo é levado a cabo não como uma “função” simples, mas como um sistema funcional completo, que incorpora muitos componentes pertencentes a diferentes níveis dos aparelhos secretor, motor e nervoso. Um sistema funcional (termo introduzido e desenvolvido por Anokhin (1935; 1940; 1949; 1963; 1968a; 1972) assim concebido se distingue não apenas pela complexidade de sua estrutura, mas também pela mobilidade de suas partes constituintes[...]. A presença de uma tarefa constante (invariável), desempenhada por mecanismos diversos (variáveis), que levam o processo a um resultado constante (invariável), é um dos aspectos básicos que caracterizam a operação de qualquer “sistema funcional”. O segundo aspecto característico é a composição complexa do

127

“sistema funcional”, que sempre inclui uma série de impulsos128 aferentes (ajustadores) e eferentes (efetuadores) (LURIA, 1981, p.13).

A aproximação entre o conceito de sistema funcional integrado129 e o de mediação neste trabalho é para fins de aprofundamentos teóricos e metodológicos no âmbito de um atendimento especializado que, segundo a PNEEPEI/2008, é identificada como AEE. A proposta deste apoio à inclusão a se materializar na escola é de desencadear, no âmbito desta, as condições objetivas para a apreensão curricular pelos alunos alvo dessa política.

Por isso situamos, a partir da perspectiva histórico cultural, o conceito de função como sistema em oposição ao conceito de função como sinônimo de atividades psíquicas localizadas e particulares. Conforme o entendimento do citado autor, pretendemos ampliar as discussões no que tange à concepção e gênese das FPS na direção de atividades escolares, cujo sentido atribua ao AEE, caráter de trabalho pedagógico mediado com (ciência) e, portanto, investido de intencionalidade como afirmado anteriormente (LURIA, 1990).

Na perspectiva histórico cultural, as funções da aprendizagem não são funções específicas limitadas à aquisição de habilidades. Elas contêm uma organização intelectual que permite a transferência de um princípio geral descoberto durante a solução de uma situação para outras tarefas ou situações. Nesse processo os aspectos interpsíquico e intrapsíquico se articulam possibilitando novas configurações de sentido, portanto, a avaliação do processo de aprendizagem do sujeito exige uma abordagem sistêmica, sendo que a unidade de estudo deve ser a atividade psicológica com toda a sua complexidade. Desse modo, a busca de significado e de sentido exerce papel fundamental, especificamente em sua configuração ontogenética (ANACHE; MARTINEZ, 2011, p.47).

Em conformidade com o pensamento de Vygotski (1956; 1960) e Galperin, (1959), para os quais as FPS têm sua gênese no curso de desenvolvimento histórico, nas relações sociais, Luria (1981, p.15-16) apresenta uma interessante reflexão que nos dá evidência para a distinção entre funções psicológicas elementares e funções psicológicas superiores. Para este pesquisador,

128 Vias aferentes e vias eferentes - As vias aferentes (sensibilidades), saem do Sistema Nervoso Periférico (SNP) captando os estímulos externos, por meio dos sentidos e os envia ao Sistema Nervoso Central (SNC). Lá, no SNC, esses estímulos são interpretados e retornam para o SNP, sob forma de resposta, por meio das vias neuronais eferentes (motoras). Essas duas vias, tanto as aferentes quanto as eferentes “transitam” por uma via de mão dupla, a Medula Espinhal.

129 Para Luria (1981), o conceito de sistema funcional inteiro é uma segunda definição. Difere nitidamenete da definição de uma função como a função de um tecido particular. Enquanto os processos autonômicos e somáticos mais complexos estão organizados como “sistemas funcionais” deste tipo, este conceito pode ser aplicado com ainda maior propriedade às funções de comportamento.

As formas superiores dos processos mentais possuem uma estrutura particularmente complexa; elas são delineadas durante a ontogênese. Inicialmente elas consistem em uma série expandida, completa, de movimentos manipulatórios que gradualmente se tornaram condensados e adquiriram o caráter de “ações mentais” interiores [...]. De regra, elas se baseiam em uma série de auxílios externos, tais como a linguagem e o sistema de contagem digital, formados no processo de história social, são mediadas por eles e não podem em geral ser concebidas sem a participação dos referidos auxílios [...] o seu conceito perde todo o seu significado se considerado à parte desse fato. Eis aqui por que as funções mentais, como sistemas funcionais complexos, não podem ser localizados em zonas estreitas do córtex ou em agrupamentos celulares isolados, mas devem ser organizados em sistemas de zonas funcionando em concerto, desempenhando cada uma dessas zonas o seu papel em um sistema funcional complexo [...].

Para efeito do AEE voltado para alunos com deficiência intelectual alertamos para o fato de que, sem entendermos a qualidade do construto do pensamento do indivíduo, muito mais pobres serão as intervenções pedagógicas e, justamente por isso, mais raras serão as aprendizagens em nível psíquico superior. Teremos, então, aprendizagens inconsistentes, marcadas pelo domínio da aprendizagem condicionada ou mecânica. Nesta linha de compreensão do desenvolvimento humano temos na mediação um recurso que longe está de um esgotamento das alternativas pedagógicas para a inclusão. Sua consistência teórica se embasa em explicações que situam o sujeito da aprendizagem sob uma perspectiva multideterminada de desenvolvimento humano. Partindo deste entendimento, consideramos bastante coerente, para o momento em que se aprofundam conceito de mediação para a realização de um AEE a aluno com deficiência intelectual, estabelecer diferença entre,

[...] o defeito primário e o secundário. O primeiro ele define como sendo de origem biológica e o segundo como sendo construído na relação social. A deficiência, seja ela em que grau for, causa impacto no ambiente, e poderá ser fonte geradora de possibilidades e limitações, portanto, todo trabalho seria para evitar que o defeito primário se constituísse em defeitos secundários. [...] acrescentou que o desenvolvimento dos processos superiores não está condicionado pelo defeito de modo primário, mas sim secundário, e, por conseguinte, representam o elo mais débil de toda a cadeia de sintomas da criança normal, portanto, esse é o lugar para onde devem estar orientados todos os esforços da educação a fim de romper essa cadeia (ANACHE; MARTINEZ, 2011, p.47).

Isto posto, podemos perceber as possibilidades de alinhamento da mediação ao AEE em função das aprendizagens escolares do aluno com deficiência intelectual. Isto, na medida em que entendemos que os processos psíquicos superiores não estão condicionados pela deficiência do sujeito, mas pela deficiência nas relações sociais. Destacamos, assim, a importância da mediação como práxis para o AEE ao aluno com