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4 JUVENTUDE: UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL

4.2 O percurso histórico do direito para os jovens e adolescentes

As crianças e os jovens durante muito tempo nem sequer eram considerados do ponto de vista de qualquer resquício de cidadania. Pensá-los como sujeito de direitos implica então em buscar entender como se constituíram enquanto cidadãos, ou seja, como alcançaram esse

status. Os documentos internacionais que marcam a história da ampliação do direito das

crianças e adolescentes foram estabelecidos basicamente a partir do século XX.

O primeiro documento que trata especificamente do direito das crianças é a Declaração de Genebra, aprovada em 1924, o qual traz em seu bojo a questão do respeito e proteção à criança, independente da raça, nacionalidade ou crença, devendo ser auxiliada e dadas condições para que possa desenvolver-se da melhor maneira possível.

Segundo Guiomar Frota (2008, p. 60) as primeiras legislações sobre crianças e jovens evidenciavam o caráter da “situação irregular das crianças e adolescentes” e se baseavam nessa doutrina, cujo

[...] eixo era a ideia de controle social dos menores infratores e daqueles considerados abandonados moral ou materialmente por seus familiares. [...] em nome da proteção da criança e da sociedade, as novas leis davam aos juízes especialmente o poder de intervir na vida das famílias pobres consideradas desagregadas e de determinar o destino de suas crianças e jovens. (FROTA, 2008, p. 60).

O início do século XX é marcado por esta concepção a qual é acompanhada de leis similares em vários países e da criação de “tribunais de menores” que ampliavam as funções dos juízes, atribuindo um caráter familiar à “justiça de menores”, colocando os menores abandonados e delinquentes sob o controle da justiça (FROTA, 2008, p. 61).

O Brasil seguiu este modelo e em 1927 instituiu o Código de Menores Mello Mattos, voltado para os menores de 18 anos que estivessem em “situação irregular”. Nesta situação se incluíam os que estivessem sem habitação ou meios de subsistência, por indigência, enfermidade, ausência ou prisão dos responsáveis, até aqueles cujos responsáveis praticassem atos considerados “contrários à moral e aos bons costumes”.

No código não há distinção entre crianças e adolescentes, os mesmos não são definidos como sujeitos de direitos e não há nenhuma menção a deveres do Estado e da sociedade ou de penalidades previstas para pessoas que cometem atos de violência contra crianças e adolescentes. Há apenas alguns atos considerados como infrações contra a “proteção e vigilância dos menores” referentes à divulgação de dados e da imagem, a frequência em determinados ambientes e ao descumprimento dos deveres inerentes ao pátrio poder por parte dos pais ou responsável. (FROTA, 2008, p. 63-64).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu artigo 25.º reconhece que “a maternidade e a infância têm direito a ajuda e assistência especiais”. Refere igualmente que “todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozam da mesma proteção social” (ONU, 1948). A partir deste documento se prevê que a criança e o jovem têm a necessidade de receber proteção especial, preocupação existente na Declaração de Genebra, de 1924, e mantida na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, evocando "direito a cuidados e assistência especiais" da população infantojuvenil. Deste modo,

[...] a Declaração Universal dos Direitos da Criança deu visibilidade à criança, como ser humano distinto de seus pais e da família, cujos interesses podem, inclusive, se contrapor aos desse núcleo. Ou seja, a criança deixou de ser considerada extensão de sua família, passando a ter direitos próprios, oponíveis, inclusive, aos de seus pais ou aos de qualquer outra pessoa. (RANGEL; CRISTO, 2004, [s.p.]).

O direito à educação também está presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948, como um direito humano fundamental.

Entretanto, Gentilli (2009) chama a atenção para o fato de que, embora ambiciosa no sentido de uma aspiração à igualdade entre os homens, os acordos assinados desde então não impediram a permanência de uma assimetria abismal entre os homens. Assimetria que no caso dos jovens ganha importante dimensão conforme veremos no decorrer deste estudo.

Em 1959 a ONU aprovou o primeiro documento legal que concebia a criança como “sujeito de direitos”, a Declaração Universal dos Direitos da Criança, no qual se afirmam seus direitos, sem uma menção direta aos adolescentes e aos jovens. São direitos da criança:

[...] à igualdade, a um nome e a nacionalidade, a alimentação, moradia e assistência médica adequadas para a criança e a mãe, ao amor e à compreensão por parte dos pais e da sociedade, à educação gratuita e ao lazer, a ser socorrido em primeiro lugar, a ser protegido contra o abandono e a exploração no trabalho e a crescer dentro de um espírito de solidariedade, compreensão, amizade e justiça entre os povos. (ONU, 1959).

No Brasil, somente a Constituição de 1988 e a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990 inauguram formalmente “o estado de direito para a infância e adolescência no Brasil, com a indicação clara de deveres e direitos” (FROTA, 2008, p. 64). No final dos anos 1980 a criança e o adolescente ganham um status de “proteção integral” na legislação brasileira, sem que seja substituído para uma parcela dos jovens, a concepção de “situação irregular” eufemisticamente retirada dos discursos e documentos oficiais.

As novas concepções correspondem a um processo de intensas transformações na sociedade brasileira decorrentes das lutas pelos direitos civis e sociais que se intensificaram com o fim da ditadura militar. Deste modo, a análise do processo de reformulação das leis precisa considerar o contexto das lutas que envolvem o poder e a elaboração de outros significados sobre justiça, cidadania e democracia (SCHUCH, 2006).

As estruturas jurídico-estatais brasileiras vêm sendo modificadas como consequência das novas orientações legais: equipamentos são extintos, reformados e criados; linguagens são substituídas; funcionários vêm sendo formados; crianças e adolescentes são constituídos enquanto sujeitos de uma forma específica. A mudança em prática diz respeito não somente a uma tentativa de transformação de instituições e discursos, mas de sensibilidades e afetos. Refere-se à constituição de novos sujeitos: “sujeitos de ação” e “sujeitos de intervenção”, com posições, papéis e modos de relacionamento singulares e por vezes complementares. (SCHUCH, 2006, p. 57).

As mudanças também dizem respeito ao fato de que os significados, assim como as dinâmicas de poder são flexíveis e, por fim, evidenciam que as leis apresentam ideais de pacificação e harmonização.

Gonçalves e Garcia (2007) situam as políticas voltadas para as crianças e jovens em dois tempos: antes e depois do ECA. Segundo as autoras

Com o estatuto, os menores passaram a ser legalmente reconhecidos como crianças (até 12 anos de idade) e adolescentes (entre 12 e 18 anos), e considerados “em condição peculiar de desenvolvimento”. O sentido político da mudança terminológica, cuja origem se deu no plano normativo, foi reduzir a diferença entre segmentos sociais e atenuar as discriminações que recaíam sobre crianças e jovens de origem popular, de cor negra ou de famílias consideradas desestruturadas, entre outros atributos desabonadores. (GONÇALVES; GARCIA, 2007, p. 2).

Para uma ideia da forma como a criança vinha sendo tratada na sociedade brasileira antes do ECA, a mídia escrita é um bom exemplo. Em 1984, durante a campanha pelas diretas, ao mesmo tempo em que a sociedade lutava pela democratização, o jornal A Tarde trazia em sua página policial a seguinte manchete: “Pivete de onze anos rouba criança de

10” (A Tarde, maio, 1984). O que separa uma criança de 10 anos de um “pivete” de 11 anos?

De posse de um canivete, um pivete de onze anos, presumíveis, mulato, tentou assaltar uma criança de dez anos, que em companhia de dois irmãos menores de 4 e 5 anos, respectivamente, seguia para a escola, ontem por volta das 13 horas, no Itaigara.

- “Passa 50 cruzeiros para cá ou leva uma furada”, gritou o pivete, brandindo a arma ameaçadoramente.

Mesmo com a argumentação da criança que não possuía dinheiro, pois morava próximo à escola, o pivete mostrava-se irredutível.

- Tá gozando minha cara? Passa a grana ou leva uma furada.

O garoto foi salvo por milagre, graças à aproximação de outros colegas maiores, que iam para a escola. Vendo-se inferiorizado o pequeno marginal retirou-se, finalmente, certamente em busca de outras vítimas indefesas.

Não é a primeira vez que pivetes agem na área do Itaigara, que por falta de polícia está se transformando num ponto crítico em matéria de criminalidade. Dias atrás outra criança foi assaltada por uma dupla de pivetes que roubaram seu agasalho de chuva e sua merendeira.

- “Como proteger nossas crianças”? Pergunta o pai aflito, em contato com a nossa reportagem? (PIVETE..., 1984).

A notícia, veiculada na época poderia ser lida com naturalidade pela maioria das pessoas. Talvez hoje ainda uma concepção que diferencia crianças, conforme sua aparência e condição social, ou seja, à margem do sistema e aquelas que têm seus direitos reconhecidos na prática. Porém, após a aprovação do ECA algumas expressões provavelmente não serão exibidas nos jornais de maior circulação. Entretanto, a reportagem acima é um exemplo da forma como nossa sociedade sempre veiculou a concepção de que o problema infantojuvenil é um problema de polícia. Não um problema social.

De outro lado, o tratamento das crianças, postas em situações absurdamente diferentes reflete uma contradição. Quem de fato está desprotegida? A “criança” ou o “pivete”? Após a

publicação do ECA essas notícias provavelmente deixaram de ser publicadas, com o mesmo tom, embora certos eufemismos indiquem a permanência do preconceito e palavras como “menor infrator” de algum modo remetem ao sentido de “pivete” do jornal de 1984.

A situação vivida em frente a uma escola não fez as pessoas envolvidas no problema (pai, jornalista, educadores) refletirem sobre o fato de que a criança de 11 anos também deveria estar no espaço escolar e que o furto de merendeira e agasalho também indicam desproteção (pelo menos isto não é problematizado na matéria jornalística). Desproteção esta que desrespeitava já naquele momento a Declaração dos Direitos da Criança, assinada na ONU, da qual o Brasil é signatário.

No momento, a existência de um movimento no sentido de rever a questão da maioridade penal, demonstra de algum modo, demandas pelo retorno da punição mais severa aos jovens e adolescentes. Tal tema não é objeto deste estudo, mas ilustra a concepção que os avanços conquistados no campo das políticas públicas voltadas às crianças, adolescentes e jovens têm sido constantemente questionados, com ampla veiculação midiática, no sentido de retorno às concepções positivistas que prevaleceram no início do século e visam a uma política mais punitiva do que restaurativa para o jovem das classes pobres, ou seja, que torna o problema social um “caso de polícia”.

O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma síntese de muitas discussões promovidas por movimentos sociais e sociedade civil em torno das políticas públicas para crianças e adolescentes, agregando propostas de grupos variados como o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, em 1985, a Emenda Popular Criança - Prioridade Nacional, de junho de 1987, com mais de 250 mil assinaturas, o Fórum Nacional de Entidades Não Governamentais de Permanente Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes – Fórum DCA, organizado em março de 1988, pela Frente Parlamentar de Infância (GONÇALVES; GARCIA, 2007).

Há três tipos de ações previstas no documento como políticas voltadas para as crianças e adolescentes: 1) ações preventivas, que são as políticas sociais básicas; 2) ações emergenciais, previstas nas políticas e programas de assistência social; 3) ações reparadoras.

De acordo com o art. 87, as linhas de ação da política de atendimento estão compreendidas em pelo menos três grupos: ações que se desenvolvem de modo preventivo a qualquer dano ou risco (I - políticas sociais básicas), ações emergenciais que se concentram nas situações de risco em curso (II - políticas e programas de assistência social, em caráter supletivo, para aqueles que deles necessitem (III - serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão) e ações reparadoras, que se seguem aos processos existentes (IV -

serviço de identificação e localização de pais, responsável, crianças e adolescentes desaparecidos) e V - proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente). O fluxo da política de atendimento deve, portanto, ser constituído de modo piramidal, no qual a base representa a atenção universal e o topo, as ações focalizadas e residuais. (GONÇALVES; GARCIA, 2007, [s.p.]).

Tais ações, se postas em prática, agem no sentido da prevenção, porém as que dizem respeito à ação emergencial que atua sobre os fatos já ocorridos e da reparação e proteção jurídico-social ainda estão longe de serem completamente alcançadas. Contudo, a ampla veiculação dos direitos e das discussões sobre as crianças, os adolescentes e os jovens, se bem orientadas, podem contribuir para a melhoria dos índices que pesam negativamente sobre o Brasil no que tange a esta parcela da população.

As discussões acerca da violência contra adolescentes e jovens é recorrente nos noticiários televisivos e nas redes sociais. Pesquisas têm sido realizadas no sentido de compreender especialmente a violência escolar (HAUSER; AMES, 2013; ABRAMOVAY; RUA, 2002), identificando que há vários tipos de violência nas quais os adolescentes são vítimas ou agressores, indicando ainda um crescimento da participação das meninas nas ações violentas, como um fenômeno importante.

Segundo Hauser e Ames (2013) as principais modalidades observadas nos estudos sobre violência escolar são: agressões verbais, ameaças, agressões físicas, discriminação racial, emprego de armas na escola, furtos e violência transmuros como invasões, gangues e tráfico. A qualidade das relações sociais entre professores, alunos, dirigentes escolares e demais funcionários, bem como a forma de gestão influenciam toda a comunidade, contribuindo para o melhor ou pior clima escolar (ABRAMOVAY; RUA, 2002).

A aprovação do Estatuto da Juventude (2013) vem reafirmar a compreensão do adolescente e do jovem como sujeito de direitos. O Estatuto dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e as diretrizes das políticas públicas de juventude e cria ainda o Sistema Nacional de Juventude. Recentemente aprovado, após intensos debates, ele traz direitos sobre educação, trabalho, saúde, cultura, território e meio ambiente, os quais visam garantir participação social, representação e livre associativismo, além de reconhecer a diversidade e igualdade da sociedade brasileira, do ponto de vista étnico, de gênero, e religioso. Reafirma questões já trazidas na Constituição de 1988, assim como novos direitos, especialmente no âmbito da cultura e do tratamento diferenciado aos jovens pobres.

A sociedade é dinâmica e a juventude acompanha suas transformações, ao mesmo tempo em que atua no sentido de transformá-la. Nesse processo de permanente mudança o jovem vem sendo concebido de formas variadas, ora como problema, ora como sujeito, e

aspectos como a classe, a cultura, o gênero e a etnia vêm ampliando o foco de análises do tema. Nesse sentido, as políticas públicas são delineadas a fim de incluir os jovens nas tomadas de decisões, embora nem sempre o que está posto nas leis ocorra de fato no cotidiano.

O modo como a identidade juvenil é construída, ou que tipo de autorreconhecimento é vivenciado por esses jovens, seja no que tange aos aspectos formais e legais, seja em suas experiências cotidianas de respeito/desrespeito, de produção de preconceitos ou sua superação, caminham lado a lado com sua condição de estudante.

Há uma permanente articulação entre o direito, as representações sociais sobre juventude, as mudanças tecnológicas e as ações dos jovens propondo mudanças sociais, muitas vezes vistos ainda dentro de uma concepção funcionalista da sociologia, que enfatiza a contestação como crime e não como produção de possibilidades de transformação da realidade social.

O entendimento de que são sujeitos e, portanto, detentores de direitos e deveres, acentua a importância da elaboração de políticas públicas que permitam a interlocução com os mesmos bem como a necessidade de projetos voltados especificamente para esta parcela da população. Projetos estes que, em virtude das peculiaridades da fase de vida em que estão inseridos, colocam a escola como espaço de suma importância para a formação de uma cidadania ativa e consciente.

5 RECORTE METODOLÓGICO OU O CAMPO EDUCACIONAL COMO ESPAÇO