1 CAPÍTULO – A CIDADE DO SÉCULO XXI
1.1 PLANEJAMENTO E GESTÃO URBANA NO BRASIL:
1.1.1 O PLANEJAMENTO URBANO
No caso brasileiro, começamos a analisar o planejamento urbano sob quatro modelos que não se anulam, mas se complementam: planejamento físicoterritorial, planejamento sistêmico, planejamento estratégico e planejamento participativo.
O planejamento físicoterritorial foi dominado pelas influências dos modelos desenvolvimentistas e intervencionistas norteamericanos e perdurou até a década de 1960. Para Duchrow (2004), a intervenção sobre o espaço urbano tinha como objetivo eliminar as “barreiras” geradas pelas formas “atrasadas” de uso e ocupação do solo, que já naquele momento eram incompatíveis com as necessidades da industrialização.
Este modelo de planejamento foi definido como regulatório ou de zoneamentos, em que o Estado fez pleno uso de seus poderes de controle e disciplinamento da expansão urbana e do uso da terra. Para atuar no planejamento urbano era indispensável o conhecimento técnico.
O planejamento possuía um caráter técnicoburocratizado (tecnocrata), que, quando não reproduzia as desigualdades já existentes no país, criava planos que não ultrapassavam o âmbito do discurso (MARICATO, 2000).
Era uma atividade essencialmente prática, que se embasava em critérios estéticos, funcionais ou técnicos, mas não em investigações sobre a natureza desses espaços ou do fato urbano em si. O planejamento tinha como escopo “construir, ampliar, ordenar, embelezar e sanar” as cidades, com a finalidade de criar condições favoráveis para se viver.
As metas eram deixadas implícitas cumprindo ao planejador desenvolvêlas intuitivamente com base nos seus próprios valores, os quais, eram por definição, técnicos e apolíticos (HALL, 1995, p. 385).6
No início da década de 1960 surgiram algumas diferenças no planejamento até então realizado. Os teóricos norteamericanos do assunto sinalizaram a necessidade de relativizar a importância do planejamento técnico.
Na maioria dos casos, não é possível sabermos com exatidão que medidas devem ser tomadas no campo do projetofísico para atingirmos um dado objetivo social ou econômico, ou que consequências sociais ou econômicas advirão de uma dada proposta de projeto físico, portanto, os juízos de valor definidos que servirão de base ao plano, mais do que a planejadores urbanos profissionais deverão ser confiados ao conselho do município e à comissão de planejamento urbano (HALL, 1995, p. 98).7
Visto que os Estados Unidos (EUA) assistiam ao aumento populacional e à explosão de consumo de bens de produção, dentre eles os automóveis, nasce a partir do planejamento físicoterritorial o planejamento sistêmico. Não havia um único problema a ser solucionado; a maioria dos aspectos a serem considerados na formulação dos planos não era determinista, mas probabilista. O planejamento foi gradualmente incorporando uma série de informações das ciências exatas, a fim de que o planejador pudesse projetar sistemas de guia e controle que davam a ele o poder de monitorar e modificar os projetos e o
6 No original: “As goals were left implicit, fulfilling and planning to develop intuitively based on their unique values, which are, by definition, technical and apolitical”. Esta e demais traduções são de minha responsabilidade.
7 No original: “In most cases, it is not possible to know exactly what measures must be taken in the field of physical design to achieve a given social or economic objective or, what social or economic consequences are necessary for a physical design proposal, therefore, value judgments established that the plan is based, more than professional urban planners should be
planejamento no decorrer do tempo. As cidades começaram a serem compreendidas como sistemas complexos e o planejador tornouse responsável pelo controle e monitoramento dos sistemas de informação, que foram evoluindo para modelos cada vez mais modernos (OLIVEIRA FILHO, 2009).
Este novo conceito, que considerava o planejamento como um processo, era uma forma especial de intervir e agir que envolvia uma série de degraus lógicos, como fixação de metas e previsão de mudanças no mundo exterior.
Na busca de um novo paradigma, já no final de década de 1960, o desalinho intelectual das teorias de planejamento urbano e das técnicas utilizadas, bem como o descrédito dos planejadores, contribuiu para que, mais tarde, o fundamento social e o enfoque humanista (LEFEVRE, 1970; CASTELLS, 1972; HARVEY, 1980) surgissem em um novo modelo de planejamento, que se sistematizou nas décadas de 1970 e 1980 e perdura até os dias atuais.
Denominado por planejamento estratégico ou “empresarial”, este modelo desenvolveu como alternativa a democratização do planejamento estratégico militar e empresarial, voltado principalmente ao crescimento econômico visando a demanda do capitalismo.
Para Guell (1997), este planejamento fixa os objetivos que comprometem o futuro; as estratégias são definidas pelas ações a serem tomadas que permeiam a construção para superar ameaças, explorar oportunidades e limitar amenidades. Basicamente o processo estratégico consiste no cruzamento das oportunidades e ameaças previsíveis (fatores externos) com as forças e fraquezas (fatores internos) da cidade.
Sendo assim, as estratégias deveriam resultar de um processo controlado e consciente de planejamento formal, decomposto em etapas segmentadas, cada uma marcada por checklists e apoiada por técnicas específicas. Surgem estratégias prontas deste processo, devendo ser explicitadas para que possam ser implantadas através da atenção detalhada a objetivos e metas, orçamentos, programas e planos operacionais de vários tipos (MINTZBERG et al. 2000).
O primeiro plano estratégico de cidade no mundo foi o de São Francisco em 1982, o qual serviu de modelo mais tarde para os planos de outras cidades norteamericanas, como Nova York, Chicago, Detroit e Dallas. Porém, este modelo de plano só ganhou notoriedade a partir da experiência de Barcelona, na Espanha, em 1987 (ARGILES, 2003).
Este modelo também oferecera oportunidades para os países subdesenvolvidos, entre os quais o Brasil, que aproveitou a alternativa ao esgotamento do planejamento físicoterritorial e sistêmico para solucionar suas crises fiscais e as dificuldades financeiras que mais tarde foram caracterizadas como “década perdida”.
Essa teoria estratégicaempresarial passou a ser reconhecida e adaptada para as cidades. O que a difere do planejamento físicoterritorial e do sistêmico é a descentralização das responsabilidades do Estado, a ideia de competitividade da empresa à cidade, o reconhecimento da participação da sociedade organizada e o relacionamento com a iniciativa privada.
Assim, o planejamento urbano deixava gradativamente de se preocupar com as questões relacionadas ao crescimento urbano e a planificação das cidades, passando a objetivar o lucro, a “engrenar a máquina”.
A partir da década de 1990, sob a dimensão da competição global, da desregulamentação e do mercado globalizado, o planejamento estratégico experimenta o “city marketing”, que passou a significar a promoção e a competitividade da cidade como um todo (PEREIRA, 2003). Tal atitude não se limitaria a um desejo de melhora do tecido urbanoarquitetônico da cidade, mas marcaria, na verdade, a adesão da cidade às novas tendências internacionais, que partiriam da premissa de que a qualidade do espaço urbano está vinculada ao aumento da competitividade, subsidiada pela inovação das tecnologias de informação e comunicação.
Este modelo estratégico foi apresentado como alternativa democrática para o planejamento e a gestão da cidade, mas seus elementos estabeleceram a contradição e falharam através do estímulo à competição desleal em
As manifestações em torno de uma nova política no Brasil na década de 1980 foram fundamentais para que se repensasse o papel da sociedade no planejamento do governo. As mobilizações, que se centravam na reinvindicação pela cidadania e democracia nas tomadas de decisões do Estado, foram relevantes para posteriormente levar ao questionamento: o governo deve ser o protagonista da gestão e do planejamento urbano?
Iniciase a criação de mecanismos de participação cidadã e de controle social das políticas públicas onde parte da sociedade inicia a ideia de que a democracia representativa, sozinha, não iria conseguir garantir os novos direitos até então conquistados. A ideia de que seria necessário gerar mecanismos de democracia participativa consolidavase permitindo assim, um maior controle sobre o aparato do Estado, no que diz respeito a elaborar e monitorar os serviços prestados à população (MOREIRA, 2011, p. 910).
Para Avritzer (2013), a partir daí os movimentos sociais organizados passaram a investir nestas aspirações democráticas, que estavam alinhadas com parte dos gestores. Como fruto ideológico, a partir da década de 1990 alguns prefeitos que já disseminavam princípios democratizantes instituíram, em nível local, políticas de compartilhamento do planejamento e da gestão das cidades.
Iniciase na década de 1990, gradativamente em alguns municípios brasileiros, o planejamento participativo. Tratase do modelo em que a participação popular em instâncias públicas foi um dos principais pilares de sustentação dos governos locais, instaurada pelo orçamento participativo e conselhos municipais de saúde, educação, infraestrutura e desenvolvimento, cultura, entre outros.
Neste momento há que se lembrar do programa “Porto Alegre Mais – Cidade Constituinte”, em que o prefeito Olívio Dutra (19891993) expressou a vontade política de aprofundar a experiência de participação da sociedade iniciada no seu primeiro governo. “O orçamento participativo adotado durante a sua gestão possibilitou a participação equitativa e plural de todos (comunidade e população) potencialmente afetados pelo planejamento” (MOURA, 1997, p. 37).
Em Belo Horizonte, a partir de 1996, além da estrutura do orçamento participativo regional – que continuou a decidir sobre investimentos em saneamento, infraestrutura e urbanização –, passou a existir também o orçamento participativo da habitação, destinado a deliberar sobre os investimentos em construção de unidades habitacionais e lotes urbanizados, destinados aos núcleos do Movimento dos SemCasa (CARDOSO e VALLE, 1999, p. 10).
A criação de instrumentos municipais democráticos de deliberação e controle social das políticas urbanas, como conselhos e fóruns de orçamento participativo, e a democratização do processo de elaboração dos planos diretores, nas referidas experiências e em administrações municipais na década de 1990, significaram importantes alterações no modelo até então vigente e revelaram o início dos avanços da participação popular que a governança urbana no Brasil estava por experimentar.
A participação popular desenvolveuse nos países anglosaxônicos, inicialmente, conforme aponta Lacaze (1993), como uma crítica acadêmica e mais tarde como prática de movimentos e organizações sociais. Somente na década de 1990 configurouse como planejamento participativo, “comunicativo” ou “estratégicoparticipativo”. Esses modelos possuem em comum a democratização e o controle popular sobre o planejamento, a atuação e a destinação dos recursos públicos.
Tais práticas fizeram da década de 1990 “um momento de explosão da participação social no Brasil” (AVRITZER, 2013, p. 11). Para Roberto et al. (2014), este contexto conseguiu mais legitimidade a partir de 2001, principalmente devido à aprovação do Estatuto da Cidade, e posteriormente com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) que se apresentou como um partido político de esquerda à Presidência da República, em 2003.
Diferente das outras correntes de planejamento que são acessíveis às pessoas com conhecimento técnico, o planejamento participativo é acessível a qualquer cidadão.
Lacaze (1993) associa o planejamento participativo a graus de participação dos cidadãos na política, que deve corresponder essencialmente à disponibilidade de informação, à ampliação dos sistemas de consulta ou pesquisas públicas e à partilha do poder de decisão.
Conforme foi exposto, os modelos de planejamento participativo possuem inputs mínimos de participação, cuja intenção deve estar expressa, assim como os instrumentos e ambientes efetivados.
As questões mais importantes referemse a natureza prática e instrumental: forma de institucionalização, identificação dos beneficiados, modo de participação da sociedade, o ambiente de participação, o controle dos excessos, a vinculação das decisões, etc. (OLIVEIRA FILHO, 2009).
Embora não seja um modelo definitivamente teórico, diferente das correntes apresentadas, ainda não há consenso sobre a qualidade da participação neste modelo. Afinal, o que é participar do planejamento urbano? Quais os estímulos que estão imbricados nesta prática? Participar, de fato, garante a construção coletiva de um projeto de cidade? O planejamento participativo favorece alguma reforma social ou tratase apenas de uma formalidade, que agora precisa da legitimidade da população? Qual participação queremos ou mesmo podemos exercer?
Há que se atentar para os riscos das respostas, que podem estar instrumentalizadas no conservadorismo de outras correntes do planejamento e relacionadas com a ideologia do capitalismo e sua influência na produção dos espaços.
Alguns argumentam que a participação está sujeita a abusos, é facilmente capturada pelas elites e pode se tornar uma “nova tirania” [...]. Outros argumentam que os proponentes da participação têm uma visão ingênua do poder, e que a participação falhou em lidar com as duras políticas de construção e mobilização de demandas partidárias, [...] permitindo assim que formas mais fracas de participação sejam facilmente capturadas e cooptadas por uma organização neoliberal. Outros ainda examinam quem realmente participa de novos espaços democráticos e o grau em que esses espaços são – ou podem ser – mais inclusivos através de outras formas de representação (GAVENTA, 2006).8
8 No original: “Some argue that participation is subject to abuse, is easily captured by elites, and can itself become a “new tyranny” [...]. Other argue that participation proponets have a naive view
Desde o início do século XXI, inspirados pelo debate da descentralização do poder de decisão, muitos modelos “participativos”, “colaborativos”, “emancipatórios” vêm sendo propostos e experimentados. O que dificilmente aparece é que as classes sociais têm não só poderes políticos e econômicos muito diferentes, mas também escalas de atuação, canais de acesso ao poder de decisão e principalmente interesses distintos.
Evidentemente em um país desigual como o Brasil, com uma abismal diferença de poder político entre as classes sociais, conseguir uma participação popular democrática, que pressuponha um mínimo de igualdade, é difícil. Essa é a principal razão da “ilusão da participação popular”. Assim, os debates públicos seriam apenas a ponta de um iceberg, pois aquilo que não aparece é muito maior do que a parte evidente (VILLAÇA, 2005).
Um planejamento urbano participativo deve fortalecer as relações políticas locais, promovendo um espaço de diálogo e equilíbrio, corrigindo desigualdades, potencializando os mais fracos, permitindo e facilitando o acesso a todos, até atingir uma racionalidade comunicativa mínima. Assim, poderíamos falar em legitimidade e validade de participação.
É consenso que este modelo só se efetivou no Brasil a partir da aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, que em conjunto e edição de outras normativas instituiu a ideia de participação como diretriz fundamental no processo de planejamento e de gestão da cidade.
Deste modo, podemos concluir que a criação de instrumentos para organizar e transformar a realidade das cidades brasileiras desenvolveuse gradualmente à luz do planejamento nos últimos anos. Embora a negligência leve pessoas, grupos, movimentos e instituições a direcionarem o planejamento para interesses individuais e empresariais, conseguimos visualizar um avanço nos últimos anos na transformação do papel da sociedade no planejamento das cidades.
mobilization of demands [...], thus enabling weaker forms of participation to be easily captured and coopted by a neoliberal agenda. Still others examine who really participates in new democratic spaces, and the degree to which such spaces are – or can be and to be – more