2 CAPÍTULO – CIDADE INTELIGENTE: UMA ORIENTAÇÃO À
2.1 POLÍTICAS E RECONHECIMENTO DA MOBILIDADE URBANA
Como abordado, o Brasil foi um dos países que tiveram um ritmo acelerado no seu processo de urbanização, e infelizmente isso aconteceu de modo destoante das políticas para o bemestar e a qualidade de vida no espaço urbano, e também no espaço rural, cuja estrutura agrária foi modificada.
A ascensão de um Estado democrático em meados da década de 1980, alimentou a articulação entre os movimentos comunitários e setoriais urbanos, o movimento sindical e entidades profissionais. Juntos, conseguiram incluir a questão urbana em dois artigos9 da Constituição Federal, e consequentemente o fato permitiu a inclusão nas constituições estaduais e nas leis orgânicas municipais de propostas democráticas sobre a função social da propriedade e da cidade.
No entanto, a regulamentação desses dois artigos constitucionais levou 13 anos para ser conferida. Nesse período, o tema do transporte urbano permaneceu sem muita credibilidade na década de 1990, embora se apresentasse uma forte e progressiva degradação de serviços.
Em 1996 foi realizada, em Istambul, a Habitat II: a 2ª Conferência Mundial das Nações Unidas pelos Assentamentos Humanos. Essa grande reunião provocou uma mudança nos paradigmas da questão urbana e fortaleceu o avanço da consciência política sobre a “urbanização da pobreza” e a insustentabilidade ambiental no crescimento das cidades, especialmente nos países desenvolvidos.
O Movimento Nacional pela Reforma Urbana, reunido no Fórum Nacional pela Reforma Urbana, não cessou suas manifestações ao Congresso Nacional. Foram várias ações e manifestos, idas e vindas de militantes dos diversificados movimentos sociais, entidades profissionais, ONGs, entidades universitárias e
de pesquisa, entre outros que buscavam a aprovação do Estatuto da Cidade. Mas somente em 2001 esse projeto de grande importância foi aprovado no Congresso Nacional e se tornou a Lei Federal Nº 10.257.
Foram estas ações políticas que estimularam a criação do Ministério das Cidades (MCidades) em janeiro de 2003 pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (20032010). O MCidades veio de uma proposta lançada em 2000, através do Projeto Moradia, documento elaborado com a promoção do Instituto Cidadania e a participação de um grande número de consultores e lideranças sociais e empresariais.
Concomitantemente foram criadas quatro Secretarias Nacionais: Habitação; Saneamento Ambiental; Transporte e Mobilidade Urbana; e Acessibilidade e Programas Urbanos ou “Desenvolvimento Social”, além da Secretaria Executiva. Foram transferidos ao MCidades o Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN) que pertencia ao Ministério da Justiça, e dois órgãos: a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) e a Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre S.A. (TRENSURB), ambas pertencentes ao Ministério dos Transportes.
Conforme previsto, a finalidade do MCidades era tratar da política de desenvolvimento urbano. Esta política é um conjunto de princípios, diretrizes e objetivos construídos democraticamente para nortear os investimentos do poder público em habitação, saneamento e mobilidade urbana, bem como fortalecer institucionalmente os municípios brasileiros.
A integração entre os organismos do MCidades é atribuição da Secretaria Executiva, à qual cabe também promover ações para a capacitação do poder público e da sociedade como um todo, tendo em vista a implementação nacional da política urbana. Tais esforços se orientam tanto para os aspectos físicos quanto para os sociais, tendo em vista a construção de quadros técnicos competentes e de sujeitos políticos que garantam a implementação das políticas de desenvolvimento urbano.
conforme ilustra as Figuras 8 e 9. Uma articulação suprapartidária ocupou a cena política com a criação do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte e da Frente Parlamentar de Transporte Público. Figura 8: Revolta do Buzú, Salvador/BA. Fonte: AGUIAR, 2003. Figura 9: Revolta da Catraca, Florianópolis/RS. Fonte: MINELA, 2004. A partir destes episódios, corroboradas pela criação do MCidades, pelos diagnósticos realizados na Conferência Nacional das Cidades, pelas reuniões da Frente Nacional dos Prefeitos – e, não menos importante, pelas manifestações populares –, as diretrizes para a política de mobilidade urbana foram formuladas e publicadas em 2004, sob o título “Política Nacional de Mobilidade Urbana Sustentável”.
Embora gerais, essas orientações envolveram diversos agentes e discussões em seminários e audiências locais e regionais, em diversas cidades brasileiras, sendo importantes para guiar as ações do MCidades em seus programas de investimento, financiamento e apoio à gestão dos sistemas de transporte nas cidades brasileiras. Da mesma forma, consubstanciaram o projeto de lei encaminhado pelo Presidente (PL Nº 1687/2007), que veio a ser regulamentado sob forma de Lei Federal Nº 12.587 em 3 de janeiro de 2012, como a Política Nacional de Mobilidade Urbana.
Não cabe aqui detalhar todos os dispositivos da lei, contudo, ressaltase os mais significativos e potencialmente de maiores impactos: acessibilidade universal; desenvolvimento sustentável; equidade no acesso ao transporte público coletivo; transparência e participação social no planejamento, controle e avaliação da política; segurança nos deslocamentos; justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do uso dos diferentes meios e serviços; equidade no uso do espaço público de circulação, vias e logradouros; prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado; integração da política de mobilidade com a de controle e uso do solo; a complementaridade e diversidade entre meios e serviços (intermodalidade); a mitigação dos custos ambientais, sociais e econômicos dos deslocamentos de pessoas e bens; o incentivo ao desenvolvimento tecnológico e ao uso de energias renováveis e não poluentes; a priorização de projetos de transporte coletivo estruturadores do território, entre outras.
Como já é sabido, o uso intensivo dos modos de transporte individuais motorizados constituiu importante fonte de externalidades negativas à cidade, desde impactos socioambientais aos econômicos.
A lei, que traz a noção de equidade, avança no sentido de buscar uma correção destas externalidades, criando respaldo jurídico para que o poder público implante políticas de taxação ou subsídio, no sentido de priorizar modos de transporte sustentáveis e ambientalmente amigáveis. Ela contribui, de forma geral, para o acesso universal e reconhece o pedestre e os modos não motorizados como prioridade. Além disso, timidamente também incentiva por
meio legal o desenvolvimento da produção e o uso da tecnologia nos serviços de transportes. Soluções criativas ou inteligentes, como “pedágios urbanos”, cobrança de estacionamentos, subsídios às tarifas, foram algumas das medidas experimentadas.
No entanto, foram décadas de urbanização e crescimento das cidades com pouco planejamento, além de políticas voltadas para o desenvolvimento do transporte motorizado individual em detrimento do transporte público e do transporte não motorizado. Veja a Figura 10: Figura 10: Propaganda da Chevrolet. Fonte: Revista VEJA, 1972. O automóvel é um dos bens mais adquiridos no mundo, e também um dos desafios do planejamento urbano, que de uma forma ou de outra acaba por ser indispensável para cada um de nós, quando nos deparamos com urgências ou deficiências do sistema de transporte de uso coletivo. Por outro lado, a sua aquisição é decorrente de uma propaganda em evolução, que se vende à sociedade com o objetivo de estimular o consumo. Neste sentido, o desenvolvimento de políticas e projetos amparados pela Lei da Mobilidade continua sendo um desafio.
Ressalvase que o MCidades teve relações segmentadas e pouco articuladas desde a sua estrutura, organização, financiamento, gestão e operação com o Ministério dos Transportes, o que revela um desajuste funcional e a incompreensão da mobilidade como um conceito mais amplo.
Todavia, embora extinguidos10 pelo presidente Jair Bolsonaro (2019 2022), tanto o MCidades como o Ministério dos Transportes tiveram importante papel no desenvolvimento de ações de capacitação de corpo técnico do poder público de forma a cumprir as diretrizes gerais do desenvolvimento urbano em respeito à enorme diversidade existente no país.
O MCidades foi fundamental sobretudo na aprovação do marco jurídico urbanístico consolidado no Brasil na última década, a partir da regulação das políticas setoriais reunidas em torno da habitação e regularização fundiária (Lei Federal Nº 11.124/05; Decreto Federal Nº 5.796/06; Lei Federal Nº 11.481/07; Nº 11.952/09, Nº 11.977/09, Nº 13.465/17); do saneamento ambiental e resíduos sólidos (Lei Federal Nº 11.445/07; Decreto Federal Nº 7.217/10; Lei Federal Nº 12.305/10; Decreto Federal 7404/10); do transporte e da mobilidade urbana (Lei Federal Nº 12.587/2012); das áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos (Lei Federal Nº 12.608/12; art. 42A, Estatuto da Cidade) e das regiões metropolitanas (Estatuto da Metrópole, Lei Federal Nº 13.089/15).
O desmonte de políticas consolidadas através da redução de Ministérios, além de violar direitos, não garante o aumento da eficiência na implementação de políticas públicas ou do necessário combate à corrupção que assola o país. Pelo contrário, a extinção destes e outros ministérios remete a um retrocesso na busca pela integração das políticas urbanas, na captação de recursos internacionais, na implementação das agendas internacionais, no diálogo entre a União, estados e municípios, no planejamento e na gestão das cidades, na garantia do direito à cidade de todos e todas.
10 Cabe ressaltar que as atribuições destes ministérios foram incorporadas nos atuais: Ministério da Infraestrutura e Ministério do Desenvolvimento Regional.
A cidade continua a se expandir, crescendo a partir da abertura de novos loteamentos que dão origem a novos bairros, esses cada vez mais distantes da área central11. Esse modelo de crescimento exige a construção de ruas e avenidas que conectem os novos bairros à cidade. O resultado desse crescimento é uma cidade onde as pessoas têm que se deslocar por distâncias muito grandes, gastando muito tempo neste ir e vir, para realizar suas atividades cotidianas.
É neste sentido que se entende a importância do debate e da implementação de políticas que possibilitem à sociedade questionar e refletir sobre o seu cotidiano. Até mesmo pequenas e médias cidades vivem hoje problemas ligados à mobilidade, reproduzindo modelos insustentáveis do ponto de vista ambiental e socioeconômico adotado nas grandes cidades.
Pensar a mobilidade para cidades inteligentes, vai além de entender os meios e modos de transporte, o trânsito, equipamentos e infraestruturas dotadas de tecnologia. É também compreender as políticas necessárias, os usos e a ocupação da cidade; é otimizála e garantir o acesso das pessoas e bens ao que a cidade oferece: locais de trabalho, escolas, hospitais, praças, áreas de lazer, entre outros.
Se observamos o dia a dia das cidades brasileiras, perceberemos que majoritariamente o carro tem prioridade no espaço urbano. E é essa lógica que precisa ser invertida: a cidade é humana; o clamor é priorizar as pessoas e suas necessidades de deslocamento para garantir o acesso amplo e democrático à cidade e ao que ela oferece.
Houve avanços legislativos no país no sentido de reverter essa lógica? Sim. O Estatuto da Cidade já trouxe instrumentos interessantes para o desenvolvimento mais justo e equilibrado. A Lei da Mobilidade tem foco nas pessoas. Vários investimentos realizados nos últimos anos no Brasil – principalmente aqueles relacionados aos grandes eventos, como a Copa do
11 Para Corrêa (2003, p. 37), a Área Central constitui o foco principal não apenas da cidade, mas de sua hinterlândia. Nela concentramse as principais atividades comerciais, de serviços, da
Mundo Fifa em 2018 e os Jogos Olímpicos de Verão em 2016 já seguiram a diretriz principal de priorizar o transporte público e não motorizado, e o governo federal tem apresentado maior protagonismo nos últimos anos com investimentos e financiamentos baseados na Lei.
No entanto, sabemos que o caminho para o desenvolvimento da cidade inteligente é peculiar, um modelo híbrido que requer a cooperação entre o Estado, a sociedade e a iniciativa privada no direcionamento da melhor qualidade de vida, concebida pela capacidade de ensino e aprendizagem e desenvolvimento da tecnologia e inovação. É necessário o engajamento político de todos os agentes, e ressaltase o importante papel do poder público para detalhar e adequar os instrumentos destas políticas apresentadas à realidade de sua cidade. Isto, por sua vez, está sujeito à ampliação da cidadania, ao aprofundamento da democracia e sobretudo da capacitação do poder público, em todas as suas esferas, para atender direta e indiretamente as necessidades sociais, e também da sociedade para reconhecer a cidade como sua casa, seu lugar.
Sassi e Zambonelli (2014) enfatizam que a mobilidade inteligente propõe um conjunto de soluções integradas, suportadas pela coleta de dados disponíveis pelos mais diversos agentes e manipuladas por uma gestão inteligente. Esta é capaz de produzir informações úteis no seu contexto e potencializar o intercâmbio social entre estes agentes, os quais são retroalimentados com estas informações de maneira a reforçar sua interação e produzir um círculo virtuoso. Conforme foi exposto, várias são as alternativas que se apresentam como modelos de serviços providos pela cidade inteligente relacionados à mobilidade. Neitotti et al. (2014) estudaram os projetos realizados em cidades inteligentes da Europa e constataram que mais de 50% deles possuíam iniciativas pertinentes à mobilidade das pessoas. Piro et al. (2014) pesquisaram os principais projetos em andamento ou recém concluídos, também na Europa, e verificaram que 12 de 19 projetos (63% do total) fomentavam alguma alternativa ligada à área da mobilidade.
Destarte, as pesquisas de GIFFINGER et al. (2007), CARAGLIU et al. (2009) e BATTY et al. (2012) defendem a importância da mobilidade no desenvolvimento das cidades. Associam a mobilidade a uma qualidade crítica e crucial das cidades inteligentes, e reconhecem os desafios sociais e econômicos resultantes da sua demanda crescente: os impactos do uso e ocupação do solo; o problema do aquecimento global devido às emissões dos gases do efeito estufa; os prejuízos decorrentes do tráfego congestionado e o aumento no número de acidentes no trânsito, que resultam na redução geral da qualidade de vida dos cidadãos. As crises política, sociocultural e econômica que o Brasil tem enfrentado nos últimos anos têm se refletido em incertezas nas atividades de planejamento, já que há uma crescente instabilidade, e foco do Estado é no ajuste fiscal. Essa realidade se reproduz também nos estados, e consequentemente nas cidades, especialmente naquelas que enfrentam dificuldades históricas com o equilíbrio econômico. Contudo, é neste momento que as atividades de planejamento e gestão devem ser valorizadas para que a retomada seja possível.
Neste âmbito, a ocasião é propícia para aprofundar a análise das potencialidades e fragilidades que se impõem ao desenvolvimento da cidade, sobre fontes alternativas de custeio e financiamento, principalmente aquelas que conectam os poluidorespagadores e beneficiários indiretos dos sistemas de transporte público.
No Brasil, a descentralização da população e de suas atividades da região sudeste tem se caracterizado como uma dinâmica territorial de destaque para os estudos e pesquisas sobre o espaço urbano. No Planalto Central e no Amazonas, a população tem experimentado novas características em mobilidade, assim como a região metropolitana de São Paulo tem inovado em experiências.
Os avanços regulatórios também são necessários, tanto no sentido de governança integrada quanto no de integração tarifária e operacional dos modos de transporte. Aqueles aspectos de regulação econômica também são
infraestrutura do sistema, sem comprometer a capacidade de investimento do poder público e da iniciativa privada.
Neste contexto, o grande desafio é transformar o arcabouço legal com avanços significativos, em planejamento e gestão, em estruturas de mobilidade urbana que efetivamente tragam qualidade de vida para a população, principalmente com redução das externalidades negativas e melhoria das condições de acesso à cidade. Para isso, é crucial refletir e reafirmar o papel da mobilidade no desenvolvimento da cidade inteligente.
2.2 O PAPEL E OS PRINCÍPIOS DA MOBILIDADE URBANA NO