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2.2 A relação Executivo-Legislativo: uma harmonização necessária

2.2.1 O princípio constitucional da separação dos poderes

A separação dos poderes estabelecida pela Constituição Federal de 1988 não só tomou a divisão orgânico-funcional entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário como um princípio a ser observado, mas também como uma de suas cláusulas pétreas. Isso significa que o modo como foi desenhada a organização de cada poder e o conjunto de competências atribuídas a cada um foram considerados, pelos constituintes, um dos pilares do Estado Democrático que se pretendeu instituir.

O texto constitucional apresenta como características dos três poderes a independência e a harmonia entre esses.56 Todas as relações entre quaisquer dos poderes devem ser conduzidas e interpretadas à luz desses atributos. Segundo Silva, a independência compreende três aspectos: i) o ingresso e permanência dos agentes nos órgãos de cada poder, que não dependem da confiança ou da vontade dos demais57; ii) o exercício das próprias atribuições, que dispensam, em regra, a interferência ou anuência dos outros poderes e iii) a liberdade de organização interna quanto à prestação dos respectivos serviços.58

Já a harmonia visa estabelecer o mútuo respeito às prerrogativas de cada órgão mas, principalmente, permitir interferências de uns nas atividades dos outros, como forma de controle, relativizando a independência e fazendo com que o exercício das funções ocorra de forma equilibrada.

Na doutrina clássica da separação dos poderes, fruto da teoria política do século XVII, as primeiras interpretações do instituto consideravam essa distinção vinculada à separação de forças políticas. Numa sociedade estamental (com nobreza, realeza e representantes do povo), como foram as das primeiras experiências, a necessidade de separar poderes visava, primordialmente, conferir equilíbrio a esses grupos sociais, por meio do

56 “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” (BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Senado, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 22 jan. 2017).

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Questiona-se a admissão deste primeiro ponto como característica, haja vista previsões contrárias na própria Constituição: a indicação pessoal, pelo Presidente da República, para ministro do STF, seguida de sabatina do candidato pelo Congresso; a livre nomeação, pelo Presidente, de deputados e senadores para cargos de Ministros de Estado, compondo a estrutura administrativa do Executivo; a cassação de mandatos de deputados e senadores pelo STF e o próprio processo de impeachment, no qual o Presidente da República pode vir a ser deposto após julgamento no Congresso.

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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 112.

controle recíproco de um órgão sobre o exercício das funções dos outros. Dessa forma, a separação orgânica de poderes existia em função de uma separação social de poderes.59

Com o surgimento do princípio de legitimação democrática do Estado de Direito, a separação dos poderes subordinou-se a ele, passando a figurar como princípio de organização do poder político-estatal. Deixou de ser tida como ferramenta voltada ao equilíbrio político para ser considerada mecanismo de legitimação de poderes em um Estado democrático.60

Segundo Nuno Piçarra, a concepção contemporânea do princípio da separação dos poderes é de uma divisão normativa, ou orgânico-funcional.61 Isso significa que o poder constituinte, ao inaugurar uma nova ordem constitucional, elege o modelo de distribuição de competências e de controles recíprocos entre os poderes que julga o mais democrático, independentemente das tensões políticas observadas na sociedade.

É evidente que as forças político-partidárias e os grupos sociais se valem dos arranjos institucionais estabelecidos para articulação de seus interesses. Isso é próprio do jogo político. Contudo, os freios e contrapesos previstos na Constituição, como o veto presidencial, nos processos legislativos e o controle das contas pelo Legislativo, por exemplo, são mecanismos institucionais democráticos que independem de quem esteja no cargo de Presidente, ou dos partidos representados no Congresso ou mesmo da matéria discutida.

Há, contudo, uma diferença entre separação (ou divisão) de poderes e distinção de funções do poder. A primeira diz respeito à especialização orgânica do Estado com relação às competências legislativas, executivas e judiciais. A segunda, por sua vez, refere-se à classificação das atividades governamentais quanto à sua natureza, independentemente dos órgãos que a exerçam. Dessa forma, a tarefa de criar leis, por exemplo, será sempre uma função legislativa, ainda que não seja exercida pelo Poder Legislativo. Do mesmo modo, o ato de julgar contas públicas ou de proferir decisões em processos administrativos será sempre uma função judicante, mesmo não sendo exercida pelo Poder Judiciário.

As funções atribuídas, pela Constituição, ao Poder Executivo, não se limitam à mera execução de leis. Segundo Silva, as “funções executivas” podem ser divididas em

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PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 79-81.

60

PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 235.

61

PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 245.

“funções de governo” – atribuições políticas, co-legislativas e decisórias – e “funções administrativas”, que compreendem a intervenção, o fomento e o serviço público.62

A análise desenvolvida no âmbito desta pesquisa concentrar-se-á apenas nas funções de governo, haja vista que os questionamentos a serem respondidos dizem respeito ao arranjo institucional previsto constitucionalmente e às condições de governabilidade apresentadas por ele. O desempenho das funções administrativas foge ao espectro deste trabalho, visto que sua análise acurada é desenvolvida no âmbito do Direito Administrativo e não do Direito Constitucional.