• Nenhum resultado encontrado

2.2 A relação Executivo-Legislativo: uma harmonização necessária

2.2.2 Competências legislativas do Poder Executivo

2.2.2.1 Poderes proativos: medidas provisórias e decretos presidenciais

Pode o Presidente da República editar medidas provisórias, com força de lei e eficácia imediata, para atender demandas do governo ou da sociedade que se mostrem urgentes e relevantes, conforme prevê o artigo 62 da Constituição. A urgência e a relevância são pressupostos formais de cabimento da medida provisória, os quais devem ser observados pelo Congresso quando da sua apreciação.

Afirma-se que a medida provisória é dispositivo análogo ao decreto-lei previsto na Constituição anterior, que conferia ao Executivo o pleno exercício da atividade legiferante, diante de um Legislativo que, durante o período ditatorial, contava com pouca ou nenhuma expressividade política. A opção pela adoção de um instrumento legislativo semelhante ao decreto-lei, embora aparentasse guardar um resquício do período autoritário do qual a democracia buscava se desprender, na verdade, representava um receio dos constituintes ao retorno de uma atividade legislativa morosa e pouco eficiente, quando totalmente exercida pelo Poder Legislativo, conforme mencionado no tópico anterior.64 Nesse sentido, Victor afirma que a edição de MPs tem se mostrado um “mecanismo virtualmente insubstituível” no conjunto de recursos à disposição do Presidente.65

Para Figueiredo e Limongi, a opção pela inclusão da medida provisória no texto constitucional não significou uma abdicação da autoridade legislativa do Congresso, mas sim uma delegação dessa, considerando que foi o próprio Congresso, reunido em Assembleia Constituinte, que assim o decidiu.66

Segundo os autores, a ideia da delegação da função legislativa sugere que haja um ganho para ambos os poderes. A medida provisória seria uma forma de evitar problemas de ação coletiva e instabilidade a que estão sujeitas as casas legislativas, que acabariam impedindo o Congresso de fornecer respostas às demandas sociais urgentes em tempo hábil e de modo efetivo. Dessa forma, os objetivos do Legislativo seriam também realizados quando

63

PEREIRA, Carlos; MUELLER, Bernardo. Uma teoria da preponderância do Poder Executivo: o sistema de comissões no Legislativo brasileiro. Rev. bras. ciênc. soc., São Paulo, v. 15, n. 43, p. 47, 2000.

64

FIGUEIREDO, Argelina Cheibub; LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na nova ordem

constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001, p. 129.

65

VICTOR, Sérgio Antônio Ferreira. Presidencialismo de coalizão: exame do atual sistema de governo brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 113.

66

FIGUEIREDO, Argelina Cheibub; LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na nova ordem

o Executivo legislasse contemplando essas demandas. Haveria, na verdade, uma cooperação entre os dois poderes67.

Na prática, a delegação legislativa da MP tem possibilitado ao Congresso alcançar seus objetivos? Figueiredo e Limongi respondem a esse questionamento sob dois parâmetros de análise: i) quanto à diminuição da influência do Congresso na delimitação de políticas públicas em virtude da edição de MPs (interesse político); ii) quanto ao fortalecimento ou enfraquecimento institucional do Congresso, enquanto poder dotado de capacidade decisória (interesse institucional).68

A partir de estudo estatístico das medidas provisórias editadas pelos primeiros quatro presidentes pós-1998 (Sarney, Collor, Itamar e FHC), os autores constataram, quanto ao primeiro parâmetro que, a depender da natureza da política pública, a diminuição da influência do Congresso poderia ser interessante tanto do ponto de vista político, como do institucional. Isso porque, politicamente, seria conveniente, para os deputados e senadores, retirar do Legislativo, de certa forma, o ônus da responsabilidade por políticas públicas impopulares ou que viessem a fracassar e, institucionalmente, o Congresso não seria visto, pela opinião pública, como um entrave à tomada de decisões que pudessem beneficiar a coletividade.69

Por outro lado, em relação ao segundo parâmetro, essa delegação legislativa pode produzir efeitos negativos quanto ao fortalecimento institucional, pois o Congresso acaba perdendo a possibilidade de apresentar uma agenda política alternativa, sobre a qual teria total crédito. Este cenário limita, em certa medida, o protagonismo legiferante do Congresso, conferindo-lhe, muitas vezes, apenas o papel de ratificar a ação do Executivo.70

Convém destacar que, no texto original do artigo 62, não havia restrição de matérias que pudessem ser objeto de medidas provisórias e os critérios de urgência e relevância eram apreciados apenas subjetivamente pelo presidente, não eram avaliados pelo Congresso como condição para a conversão da medida em lei. Com isso, o ato normativo passou a ser utilizado, pelos presidentes, como principal ferramenta de implantação de

67

FIGUEIREDO, Argelina Cheibub; LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na nova ordem

constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001, p. 126.

68

FIGUEIREDO, Argelina Cheibub; LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na nova ordem

constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001, p. 127.

69

FIGUEIREDO, Argelina Cheibub; LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na nova ordem

constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001, p. 127.

70

FIGUEIREDO, Argelina Cheibub; LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na nova ordem

políticas de governo, e o domínio da agenda parlamentar por medidas provisórias tem sido um traço comum em todas as presidências pós-1988.71

A Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 200172, alterou o artigo 62 da CF/88, estabelecendo não só as limitações materiais à edição de MPs, como também a exigência de que os critérios de urgência e relevância fossem analisados pelo Congresso, como requisitos formais para a conversão da norma em lei. Além disso, a determinação do necessário trancamento da pauta legislativa para votação da medida, a abolição da “conversão tácita”, após o decurso do prazo e a possibilidade de alteração do texto normativo analisado garantiram ao Legislativo uma participação mais efetiva e decisiva na apreciação das medidas provisórias.73

O objetivo das modificações foi o de estabelecer critérios jurídicos para uma utilização mais responsável do instituto, aumentando a capacidade de controle do Legislativo sobre os abusos do Executivo e conferindo àquele um papel mais determinante na aprovação de alterações da ordem jurídica por ato normativo do presidente.74

A possibilidade de reedição das medidas provisórias, todavia, ainda é um dos principais pontos de crítica ao instituto. Embora a Constituição somente autorize a reapresentação de medida rejeitada ou não apreciada em sessão legislativa diferente, o uso que o Executivo faz da reedição tende a ferir o sentido teleológico da norma, na medida em que prolonga no tempo a circunstancialidade que a motivou, além de impedir a atuação do Congresso na regulação dos efeitos jurídicos das medidas não convertidas em lei, visto que,

71 “A medida provisória é instrumento de normação primária destinado a minimizar ou suavizar, em tempo hábil, os impactos sociais e econômicos de determinadas situações fáticas imprevisíveis que não podem aguardar pela resposta do Corpo Legislativo, e não, a nosso entender, o que vem sendo feito através das medidas provisórias, como colocar em prática planos de governo, cuja via normal e ordinária seria a utilização de canais de comunicação funcionais previstos constitucionalmente para submeter tais propostas ao Parlamento”, conforme KADRI, Omar Francisco do Seixo. O executivo legislador: o caso brasileiro. Coimbra: Coimbra, 2004, p. 230- 231.

72

BRASIL. Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001. Altera dispositivos dos arts. 48, 57, 61, 62, 64, 66, 84, 88 e 246 da Constituição Federal, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 19 set. 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc32.htm>. Acesso em: 08 set. 2017.

73

No texto original do artigo 62, a não apreciação da medida provisória pelo Congresso, no prazo de trinta dias, implicava em conversão em lei de forma tácita. Dessa forma, bastava que o Presidente enchesse a pauta legislativa de medidas provisórias, inviabilizando a apreciação destas em tempo hábil, para convertê-las em lei sem a interferência política do Congresso. Porém, com a nova redação do artigo, perdem a eficácia as medidas provisórias que não forem apreciadas no prazo previsto, fazendo com que a conversão em lei dependa, necessariamente, da aprovação expressa de ambas as casas legislativas.

74

Convém destacar que a intervenção parlamentar na conversão de uma medida provisória em lei não se destina a atribuir validade ao ato normativo do Executivo, mas apenas a conferir estabilidade à norma, prolongando seus efeitos no tempo. Conforme KADRI, Omar Francisco do Seixo. O executivo legislador: o caso brasileiro. Coimbra: Coimbra, 2004, p. 202.

quando ocorre a reedição, a regulação dos efeitos jurídicos continua sendo estabelecida pelo próprio Executivo.75

Não obstante as pertinentes controvérsias jurídicas a respeito da utilização desse ato normativo, do ponto de vista político, a edição de medidas provisórias tem sido um importante instrumento de diálogo e de manejo do poder decisório entre Executivo e Legislativo. O instrumento da MP é útil tanto para o governo como para o Congresso, pois possibilita a redução de custos de coordenação de políticas em que haja consenso entre os poderes, sem, contudo, impedir a atuação do Congresso no direcionamento das políticas.76

Quando se verifica uma grande coalizão governamental, a edição de medidas provisórias acaba sendo positiva para o Congresso, primeiro porque, provavelmente, a medida já atende às preferências políticas da maioria dos parlamentares e a conversão desta em lei acaba sendo apenas a conformação da agenda presidencial, e segundo porque, durante o tempo em que as medidas tramitam no Congresso, é possível que os parlamentares já percebam a sua repercussão social, podendo discuti-la com mais propriedade e, assim, converter, rejeitar ou modificar seu conteúdo com base empírica.77

Considerando o papel fundamental do Legislativo no prolongamento dos efeitos das medidas provisórias para além dos 120 dias de sua proposição, não é difícil concluir que este é um campo fértil para negociação entre os dois poderes, fortalecendo o sistema de coalizão em vigor. Diante disso, o argumento de que o aumento na edição de medidas provisórias em determinado governo seja sintoma de uma dificuldade de articulação política para aprovação de propostas por meio de atos normativos ordinários não parece encontrar muito respaldo.

Além das medidas provisórias, os outros atos normativos que podem ser editados unilateralmente pelo Executivo são os decretos presidenciais, previstos no art. 84 da Constituição. Diferentemente das MPs, que tem eficácia precária e depende da expressa conversão em lei para continuar a produzir efeitos, os decretos presidenciais não carecem de nenhuma participação do Legislativo para perdurarem como norma no ordenamento jurídico.

Porém, a competência atribuída ao chefe Poder Executivo para edição de normas regulamentares existe em virtude da incapacidade de previsão, por parte do legislador, de

75

KADRI, Omar Francisco do Seixo. O executivo legislador: o caso brasileiro. Coimbra: Coimbra, 2004. 76

VICTOR, Sérgio Antônio Ferreira. Presidencialismo de coalizão: exame do atual sistema de governo brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 113.

77 “É um mecanismo de monitoramento eficiente e de baixo custo, convenientemente à disposição do Congresso notoriamente despreparado, do ponto de vista técnico, para avaliar o impacto de decisões governamentais.” (AMORIM NETO, Octávio; TAFNER, Paulo. Governos de coalizão e mecanismos de alarme de incêndio no controle legislativo das medidas provisórias. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 45, n. 1, p.21, 2002).

todas as necessidades que existiriam para execução dos comandos expressos no texto legal, haja vista a complexidade ou o tecnicismo de algumas matérias disciplinadas em lei, cujos pormenores são diretamente vivenciados pela administração pública, quando da implementação de políticas públicas.

Nesse caso, a atuação do Legislativo, em relação aos decretos presidenciais, é, em regra, anterior à sua expedição. Os decretos devem apenas regulamentar políticas que já tenham sido discutidas pelo Congresso e implementadas por lei, ou dispor, discricionariamente, sobre a organização interna do Poder Executivo, respeitando as normas próprias do Direito Administrativo.