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O probl em a da ordem

No documento A sanção jurídica da sociedade (páginas 80-84)

CAPÍTULO 2: NOÇÃO COMUM DE SANÇÃO

II.4.1 O probl em a da ordem

Começo pelo problema da ordem. A ordem social é apresentada, pelas teorias clássicas, como oposta ao estado natural de conflito ou à anomia. Há condutas indicadas como desvios da ordem que são mantidos em um nível aceitável por meio de algumas medidas de controle social, dentre elas, a sanção. Já foi indicado acima que o problema originário da TSA não é exatamente a anomia ou o conflito, mas a dupla contingência. Para esse problema originário não há apenas uma solução, mas várias: o sentido, a evolução da sociedade, os próprios sistemas sociais115.

Há paralelos entre os problemas originários, mas não se pode dizer que sejam idênticos. O estado de natureza hobbesiano, a anomia e a dupla contingência são problemas solucionados pela sociedade, nisso são semelhantes. Contudo, o estado de natureza hobbesiano não é um momento histórico que possa ter acontecido, apenas uma explic ação do problema resolvido pela sociedade116, diferentes da anomia e da dupla contingência, que são persistentes. O estado de natureza é, então, um problema extremo e muito mais pontual: a luta de seres racionais com interesses contrários. A anomia, por sua vez, trata não só de um problema na relação entre

115 N. LU H M A N N. Come è p osib le... op.cit. p 131 -13 2

116 O próprio Hobbes indica isso. Ver T . HO B B E S, Levia tã ou Matéria, forma

poder de um estado eclesiástico e civil in R.TU C K (or g), Tho ma s Hob bes, 2ª Ed, São Paulo: Martins Fo ntes

indivíduo e sociedade, mas também da própria personalidade individual117. É desligamento, uma falta de sentido, que poderia levar ao conflito ou ao suicídio na versão de DU R KHEIM.

A dupla contingência, contudo, afasta-se de ambos. Não é tão catastrófica quanto a anomia, mas não é tão pontual quanto o estado de natureza hobbesiano. A dupla contingência é um problema permanente que os sistemas de sentido enfrentam ao interagir, não se pode prever com certeza qual será a seleção de sentido – comunicação – seguinte118. A anomia, para a TSA, não seria possível em termos de perda de sentido devido à definição de sentido adotada pela teoria. O sentido é o meio no qual se formam pensamentos e comunicações e o não -sentido não é acessível aos sistemas formados no sentido119. Uma situação de perda de sentido não seria possível ou, ao menos, não seria registrável. A dupla contingência não é a falta de sentido, mas sentido desestruturado! O estado de natureza, um estado de conflito permanente, por sua vez, já pressupõe uma sociedade. Vale a pena ater-se um pouco mais a essa questão.

O conflito é um sistema social. Nesse ponto LU H MA NN afasta-se

bastante das teorias clássicas. Conflitos são sistemas sociais baseados em contradições. São versões negativas da dupla contingência: “não faço o que você quer se você não fizer o que eu quero”, assim descreve LU H MA NN a

sequência de contradições que formam o conflito. Contradições são naturais às comunicações, mas não são simples negações. Novas formas de sentido sempre abrem a possibilidade de negação. Este jantar está muito bom. Este jantar está muito ruim. A contradição não está na negação, mas na contraposição de duas comunicações sequenciais120. Além disso, como já mencionado, a aceitação da comunicação é altamente improvável. Vamos àquele restaurante? Não! Contradições são eventos normais aos sistemas de comunicação e não são necessariamente perigosas para os sistemas.

117 Essa relação entre o estado de natureza hobb esiano e a ano mia foi feita por

PAR S O N S. Ver. T . PAR S O N S. Estrutu ra... op.cit. p 404

118 V. supra item I.3.1 Sentido e ite m I.3.2 Dupla Contingência. 119 N. LU H M A N N. SS op. cit. p 72 -73

Conflitos são encadeamentos de contradições. Vamos àquele restaurante ? Não, mas vamos àquele outro? Não, só vou àquele. Obviamente, conflitos tomam formas muito mais elaboradas do que uma discussão simples, mas o exemplo serve para mostrar que, para a teoria dos sistemas, os conflitos existem dentro da sociedade e não fora dela. E se coubesse traçar alguma relação de causalidade entre eles, conflitos existiriam porque existe sociedade e não o contrário.

Os sistemas sociais têm mecanismos para lidar com conflitos. Não obstante tratar-se de uma versão negativa, um conflito ain da é um sistema social e, mais ainda, um sistema altamente integrado, quer dizer, um sistema cujos enlaces comunicativos são determinados de modo que há pouquíssimas possibilidades de seleções – exceto não fazer o que o outro quer, não há muito mais o que selecionar no conflito. Conflitos são sistemas perigosos porque são parasitários e podem se dissolver em violência física. Dizer que conflitos são sistemas parasitários de outros sistemas, significa que eles nascem no interior de outros sistemas – uma interação, por exemplo – e acabam por tomar todas as comunicações do sistema, justamente por serem altamente integrativos. Em geral, conflitos se dissolvem rapidamente, como a discussão do exemplo acima. Contudo, podem tomar formas mais intensas. Nesses casos, precisam ser encapsulados por outros sistemas ou estruturas. Os sistemas e estruturas capazes de encapsular o conflito formam o que LU H MAN N chama de sistema

imunológico da sociedade e, dentre eles, destacam -se o sistema jurídico – por meio do procedimento – e os movimentos sociais121.

A TSA não considera a relação entre sociedade e conflito como antagônica. Na verdade, a evolução da sociedade depende dos conflitos para seleção e reestabilização de estruturas122. Uma explosão de conflitos poderia, realmente, aumentar sobremaneira a entropia dos sistemas sociais,

121 N. LU H M AN N. SS op. c it. p. 388 -91. Sobr e mo vimento s so ciais co mo p arte do

sistema imunoló gico da sociedade ver . C. CA M P I LO N G O. Interp retaçã o do direito e movimen tos so cia is . Rio de Janeiro: Elsevier. 20 12

mas isso não aconteceu até hoje porque as estruturas e sistemas que compõe o sistema imunológico da sociedade conseguem manter os conflitos em uma forma suportável para a sociedade. Por sistema imunológ ico, LU H MAN N não

entende um sistema parcial da sociedade, nem mesmo um sistema propriamente dito. Trata-se de um conjunto de sistemas e estruturas que realizam esta prestação: dar aos conflitos formas suportáveis. É esse conjunto de estruturas e sistemas q ue mantém a chamada ordem e não a imposição por meio da força nem mesmo a estrutura estatal. O papel do procedimento será especialmente importante para o sucesso da participação do sistema jurídico no sistema imunológico. Retomarei esse ponto nos próximos capítulos.

Resta agora fazer uma rápida consideração sobre os mecanismos de controle social e os conflitos. A grande categoria criada por BOBB IO mostra

que há várias possíveis ações identificadas como medidas de controle. Entre si, elas têm a suposta capac idade de determinar comportamentos o que, como se verá a seguir, não é a mesma descrição feita pela TSA. A respeito dos conflitos é relevante frisar que, na descrição da sociedade feita por LU HMAN N, os chamados mecanismos de controle social não são modos

de encerrar os conflitos. Quando muito os dissolvem por reduzirem os recursos disponíveis aos envolvidos, por exemplo, com o confisco de armas ou com a separação física entre os envolvidos. Considerar as medidas de controle como causa das ações – “corretas” – dos indivíduos na sociedade já seria contrário às premissas da TSA . Aquilo que BOBB IO chama,

amplamente, de medidas de controle poderia ser, na verdade, equiparado aos meios de comunicação simbolicamente generalizados, portanto, a estruturas sociais dis tribuídas por toda a sociedade123.

123 A apro ximação entr e med idas de co ntro le so cial e o s meio s de co municação

simbo licamente gener alizados foi feita p elo pró prio LU H M A N N. N. LU H M A N N. GG op. cit. p 245.

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