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S anção do si stem a jurí di co

No documento A sanção jurídica da sociedade (páginas 106-114)

CAPÍTULO 3. A SANÇÃO JURÍDICA DE LUHMANN

III.2. San ção da sociedade Introdução

III.2.2 S anção do si stem a jurí di co

No sistema jurídico as sanções são marcas de resistência à quebra de expectativas normativas. O sistema jurídico é o sistema parcial da sociedade funcionalmente diferenciada cuja função é a generalização congruente de expectativas normativas. Suas comunica ções acontecem conforme o código lícito/ilícito173. Percebe-se, então, que a função do sistema jurídico, para a TSA, não é controle social, nem eliminação de conflitos. O sistema jurídico, de fato, lida com conflitos e atua como parte do sistema imunológico da sociedade, que torna os conflitos suportáveis para o sistema social. Essa não é, entretanto, sua função, uma vez que a imunização da sociedade é partilhada, por exemplo, com os movimentos sociais. A sanção do sistema jurídico está, desse modo, ligada à função do sistema, a generalização de expectativas normativas , mas não ao controle social.

173 O cód igo Rech t/Unrech t também poderia ser traduzido por d ireito /não -d ireito .

Em nota no “El Derecho de la Sociedad” TO R R E S Nafarrate exp lica as d ificuldad es q ue tanto ele q uanto Giancar lo CO R S I enco ntr aram nas tr ad uções dos trabalh os de LU H M AN N

para o espanho l e o italiano respectivamente. TO R R E S acaba por ado tar três tr ad uções

possíveis: derecho /no derecho , confo rme o derecho/no con forme o derecho e derecho de uno/ no derecho del otro . Já em inglês as tr ad uções o scilam entre legal/ilega l (texto s do próprio LU H M AN N) e la wfu l/un la wful . Em por tuguês está sed imentada a

trad ução para lícito /ilícito , mas a distinção confo rme/não -con fo rme será útil para co mp reend er as estr uturas relacio nadas à sanção . V. N. LU H M A N N, E l derecho... op . cit.p 81

III.2.2.1. Sanção e manutenção de expectativas

A Teoria dos Sistemas atribui grande importância às expectativas. Não se trata, aqui, ressalto mais uma vez, de operações do sistema psíquico – expectativas pessoais –, mas de condensações de sentido identificadas por um observador. Essas condensações, reuniões e reutilizações do sentido, indicam qual será a referência de sentido seguinte. Espera -se que o sol nasça todos os dias pela manhã, que um “muito obrigado” seja seguido de um “de nada”. Essas expectativas são confirmadas em situações diversas, generalizando-se e formando estruturas. As estruturas da sociedade são, assim, expectativas de sentido174.

Mais importantes do que as expectativas simples são as expectativas sobre expectativas. Alter não apenas espera que à sua comunicação siga outra de ego, espera que ego também espere isso. As estruturas sociais são, assim, expectativas reflexivas. Alter e Ego sabem , ou presume-se que saibam, que a um “muito obrigado” segue-se um “de nada”, ainda que a resposta pudesse ser “42”. Esta resposta, contudo, abriria demais a complexidade da interação (qualquer forma de sentido pode ser resposta!) e prejudica a continuidade das comu nicações175. Por esse motivo, a quebra de expectativas, a decepção, também deve ser processada pelos sistemas sociais176.

Como visto, as expectativas podem ser divididas em cognitivas e normativas, conforme reajam à decepção. São cognitivas as expectativas que tendem a se adaptar ante a decepção e normativas aquelas que tendem a se manter, não obstante o desapontamento. A diferença é sutil, porque os sistemas buscam manter mesmo as expectativas cognitivas. Adaptar qualquer coisa seria aumentar demais a complexi dade do sistema. As

174 N. LUHMANN, SS op. cit., p 96 -97; 293 -294, N. LUHMANN, Introducción…

op. cit., p. 7 3; 86 -87 ; 24 3 -244. Ver supr a item I.3.4. E str uturas e Memór ia

175 Nesse sentido, LU H M A N N mencio na q ue a função das estr uturas é manter a

possib ilidade da autopo iese , ap esar da imprevisib ilidade. V. N. LUHMANN, SS op . Cit., p 288.

176 N. LUHMANN, SS op. cit., p 303 -307. N. LU H M AN N, Sociolog ia do Direito .

expectativas cognitivas resistem em alguma medida à decepção por meio do isolamento do evento – admitir a exceção à regra, um caso especial, uma situação singular – e as normativas, por meio da comunicação da resistência e pela exigência do cumprimento. Essas comunicações podem acontecer de diversos modos, dentre eles, a sanção177.

É preciso ressaltar que não há uma identificação necessária entre expectativa normativa e comunicação jurídica. Do mesmo modo que as expectativas cognitivas são identificadas com a ciência, as expectativas normativas são identificadas com o direito, mas não são exclusividade de nenhum desses sistemas. Há expectativas normativas em todos os sistemas sociais – até em interações simples. Regras de boa educação, regr as de um jogo de tabuleiro, regras morais, todas podem ser expectativas normativas que não são comunicadas no código lícito/ilícito e, portanto, não integram o sistema jurídico178.

A função do sistema jurídico é a generalização congruente das expectativas normativas. Há uma pluralidade de expectativas normativas e de expectativas sobre expectativas normativas. Um sistema social tão complexo quanto a sociedade precisa que algumas – mas não todas – dessas expectativas sejam generalizadas, i.e., estejam disponí veis para as comunicações. Mais ainda, essa generalização deve acontecer de modo congruente, i.e., deve acontecer nas três dimensões do sentido: temporal, material e social. A função do sistema jurídico, portanto, é tornar determinadas expectativas normati vas iguais para todas as pesso as (dimensão social), a todo o tempo (dimensão temporal), em qualquer situação (dimensão material)179.

A sanção é o meio mais expressivo para alcançar a generalização na dimensão temporal. LUH MA NN afirma que a generalização congruente é

177 N. LUHMANN, SS op. cit., p 332 -333. N LU H M A N N, op. cit. p 53 -66 178 N. LUHMANN, SS op. cit., p 323 -332.

179 N. LUHMANN, El derecho... op. cit. p 181 -221 , N. LUHMANN, RS I o p. cit.

alcançada por três mecanismos: institucionalização para a dimensão social, normatização para a dimensão temporal e contexto definido de sentido para a dimensão material. A sanção estaria ligada à normatização. Na dimensão temporal a quebra da expectativa exige uma decisão: manter ou abandonar a expectativa. A manutenção da expectativa deve ser expressa de algum modo. Poderia acontecer por manifestações de autopiedade, por escândalos, por diálogos. Essas manifestações são chamadas estratégias d e processamento de desapontamento. A sanção é uma estratégia de processamento de desapontamento da expectativa que pode ser facilmente generalizada e, mais ainda, que pode combinar -se melhor com outras formas de generalizações180.

A generalização congruente é altamente improvável. A mesma expectativa deve ser generalizada nas três dimensões do sentido e isso não é conseguido facilmente. Além da normatização, que é a generalização na dimensão temporal, a expectativa deve ser institucionalizada, o que LU H MAN N identifica com o consenso presumido de terceiros e o papel do

juiz. A expectativa deve ser, ainda, generalizada na dimensão material181, por meio de planos de abstrações que relacionam norma e fato182. Cada dimensão tem uma variedade de mecanismos possíveis pa ra generalização. A temporal, como dito, poderia incluir o escândalo ou o diálogo. A social poderia conter variações de institucionalização. A material poderia utilizar valores, papéis, pessoas (como feixes de expectativas, não como sistemas psíquicos) ou programas. Algumas combinações foram mais bem sucedidas do que outras ao longo da evolução. Assim, por exemplo, a generalização de valores não combina com a aplicação de sanção. As pessoas não são mecanismos que se combinem facil mente com qualquer outro. O quadro a

180 N. LU H M A N N. RS I op. cit. p 72 -75

181 A tr ad ução p ara o po r tuguês do Socio lo gia d o Dir eito usa o ter mo prática.

Unifor mizei, co ntudo, o s ter mo s ao lo ngo da tese, para não co nfundir o leitor .

seguir resume a compatibilidade entre mecanismos de generalização183. Os mecanismos mais compatíveis estão destacados.

Dimensão Mecanismos de generalização Compatibilidade

Temporal Social Material

Temporal

Desconhecimento Baixa Baixa

Sofrimento Baixa Baixa

Vingança Baixa Baixa

Sanção Alta Alta

Social Observador Baixa Baixa

Processo Alta Alta

Material

Valores Baixa Alta

Programas Alta Alta

Papéis Alta Alta

Pessoas Alta Baixa

O direito é, então, descrito a partir da trindade sanção-programa- processo. Essa descrição é, agora, deduzida da sociologia e não definida nominalmente para o direito. Esses mecanismos de generalização não são as únicas possibilidades existentes, mas formaram uma combinação que foi selecionada na evolução da sociedade. A sanção teve sucesso nessa seleção de combinações por alguns possíveis motivos . É um mal facilmente reconhecido. É um mecanismo reutilizável, u ma multa pode ser a punição para um infrator de trânsito ou para uma empresa que desrespeite leis ambientais. É facilmente passível de gradação, podendo ser quantificada (tantos reais de multa, tantos anos de prisão ) e, desse modo, servindo para expressar diferentes níveis de intensidade. Pode ser combinada com os

183 N. LU H M AN N. RS I op . cit. p 114 -116 . Há um quadro semelhante fe ito pelo

programas e com os processos, completando a generalização congruente de expectativas. A sanção é, então, um modo de generalização e não de coação para determinada ação. A única coação, LU H MA NN afirma, realmente

relevante para o direito é a seleção de expectativas184.

A sanção também não é um elemento essencial da norma jurídica. A relação feita por LU HMAN N entre a norma e a sanção não é ontológica. A

sanção, em verdade, é um modo relativamente improvável de marcar a resistência à frustração da expectativa , mas como visto não é o único, nem é essencial que haja a aplicação da sanção185. Há normas – expectativas normativas generalizadas – que se mantêm mesmo sem a aplicação de sanção por longos períodos de tempo, como o caso dos direitos humanos que, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, são infringidos impunemente e, mesmo assim, se mantêm, cada vez com mais força186. Todavia, a maioria das expectativas normativas não se sustenta sem que as sanções sejam aplicadas. Nesse ponto , LU H MAN N indica haver

uma relação entre o direito, o Estado e a força física .

III.2.2.2. Direito, Estado e força física. Relação histórica

Há uma relação histórica entre o direito, o Estado e a força física. A evolução do direito, até o sistema jurídico funcionalmente diferenciado, passa por dois estágios anteriores: o direito arcaico – que corresponde à sociedade diferenciada de modo segmentário – e o direito das altas culturas – que abrange o longo período entre a diferenciação centro -periferia e a hierárquica –. Toma a forma, finalmente, do direito positivo da sociedade

184 N. LU H M A N N. RS I pp. cit. p 116

185 Seria possível levantar a hipótese de q ue as sançõ es ser iam p ar te dos

progr amas co ndicio nais do sistema juríd ico. Descarto essa hipó tese porq ue não interpr eto o s pro gra mas, na obr a de Luhmann, co mo r elações Se X, entã o SANÇÃO . Esta é a descr ição realizad a por Kelsen. E m Luhmann, os pro gramas cond icio nais são orientações par a a aplicação do código, por tanto, a relação é Se X, então LÍCI TO ou Se Y, en tão ILÍ CI TO . Por esse mo tivo a sanção precisa ser u m segundo progra ma do sistema asso ciado a esse primeiro. O s co mand os das nor mas (se ho micíd io, então X ano s de pena privativa de lib erdade) são , sob uma análise da T SA, muito mais co mp lexo s.

contemporânea, relacionado à diferenciação funcional. Essa evolução não é um progresso ou um aprimora mento, mas um aumento de complexidade. Especificamente, LUH MA NN trata da evolução do direito conforme o

aumento da complexidade do processo decisório. A força física e o Estado serão formas auxiliares ligadas a esse processo187.

O direito arcaico esteve fortemente ligado à força física, tanto como origem quanto como final do processo decisório. Nessa fase o direito é identificado com a própria ordem do mundo e, portanto, as decisões sobre conflitos não são consideradas contingentes, imputadas ao mediador, mas necessárias e deduzidas da ordem natural. Essa concretude dificultava a generalização das expectativas. A resposta à frustração vinha, normalmente, sob a forma de reação violenta, inclusive dirigida à família do infrator (vendeta). Mais ainda, uma vez que os conflitos tinham aspecto concreto, o deslinde violento era esperável e o direito ficou vinculado à força física – era preciso sobreviver à luta para ter direito188.

O estágio seguinte, o direito das altas culturas, abarca configurações diversas e avanços consideráveis. O procedimento é uma conquista desse estágio. A decisão sobre a aplicação da norma – e da sanção – submete-se a um processo decisório e é considerada contingente. O mesmo não acontece, contudo, com a produção de leis, ainda considerada s como decorrência da ordem natural. A sociedade estratificada desenvolve a organização da aplicação da sanção negativa. Nesse ponto, reside mais uma vantagem da sanção negativa como mecanismo de reação às frustrações: ela é facilmente organizável, mais do que o escândalo ou a autopiedade. O procedimento de aplicação da lei passa a ter cargos e papéis que despersonalizam –

187 N. LU H M A N N. El derecho... op. cit. p 301 -358; N. LU H M A N N, Evo lu zio ne del

Diritto in N. LU H M AN N, La differenzia zion e d el d iritto, Contribu ti alla sociolog ia e alla teoria del diritto . Bolo gna: I l Mulino. 1990., p 35 -60, N. LU H M AN N, RS I op. cit. p 167-238. V. tmb M. NE V E S, Entre Temis e Levia tã: u ma relação d ifícil. O Estado Demo crá tico de Direito a partir e a lém d e Lu hm ann e Habermas. São Paulo : Mar tins Fo ntes. 2006 , p 1 -25 . Perceba -se q ue, apesar de aq ui as mudanças no direito serem apresentadas e m ordem crono ló gica, LU H M AN N não as atrela ao passado , mas às fo r mas de difer enciação da sociedade. Por tanto , nada imped e q ue características do d ireito não funcio nalmente d ifer enciado estejam presentes hoje.

188 N. LU H M AN N, RS vol I op. cit p 124 -125 ; 184 -2 00. N. LU H M AN N, E l derecho...

generalizam socialmente – a tomada de decisões. O direito é, então, associado à situação de paz de uma determinada região em que o poder está centralizado e organizado. Por um lado, reforça a centralização pela regulação da aplicação de sanções negativas em caso de conflitos (direito civil) e, por outro, especifica a aplicação das sanções negativas para a manutenção da paz (direito penal)189. Essas mudanças elevaram ainda mais a complexidade da sociedade, que acabou por estabilizar -se por meio de um sistema funcionalmente diferenciado.

III.2.2.3. Questões sobre a sanção do sistema jurídico

Muitas questões podem ser levantadas a partir da de scrição sistêmica do direito. Ao gosto dos paradoxos da teoria, justamente o sistema que LU H MAN N mais trabalhou – ele era jurista de formação – é aquele que

desperta mais inquietações. LU H MA NN atribui alguma importância às

sanções, mas não diz o que sejam. Algumas negativas ajudam a entender o que ele não considerava sanções, como repreensão, escândalo, sacrifício, suicídio, desterro, estigmatização ou maldição perpétua190. Alguns casos, como o escândalo, o suicídio e o sacrifício parecem distantes realmente da noção comum de sanção mas, como visto191, a estigmatização e a maldição poderiam ser consideradas sanções, ainda que não do campo jurídico. E a repreensão não só pode como é uma possibilidade de sanção contida em norma192. Além de ser possível compreender q ue a sanção seja algum tipo de mal, não há definições mais claras. O que é, então, sanção e o que não é? As observações do sistema jurídico indicam alguma estrutura que possa

189 N. LU H M A N N, RS op . cit. vo l I. p 201 -224. N. LUHMANN, El d erecho ... op.

cit.p 307 -348

190 N. LU H M A N N. RS op . cit. p 74 -75 ; 134 191 Ver supra cap. II

192 Um exemplo co nhecid o no Br asil é a pena d e ad vertência co ntid a na lei de

drogas ( lei 11343/06 ).

Art. 28. Quem adq uir ir, guardar, tiver e m d epósito, tr ansportar ou trouxer consigo, para co nsu mo pessoal, dro gas sem autorização o u em desacordo co m deter minação legal o u regulamentar será sub metido às seguintes penas:

I - ad ver tência sobr e o s efeitos das dro gas; II - prestação d e ser viço s à co mun id ade;

ser descrita pela TSA? Quais estruturas são essas? A apresentação de um conceito de sanção é o primeiro passo para responder a essas inquietações.

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