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O processo de apropriação como instrumento psicológico de constituição do

CAPÍTULO 3: O Desenvolvimento humano e os sentidos subjetivos na

3.2 O processo de apropriação como instrumento psicológico de constituição do

A partir da concepção de homem da Psicologia Sócio-Histórica concebe-se que, para conhecer o sujeito, deve-se conhecer as relações, pois por essas relações acontecem a apropriação dos processos da dimensão social em dimensão individual, permitindo o acesso aos seus sentidos subjetivos, já que o fenômeno psicológico só existe pelas mediações sociais, ele é mediado e não imediato.

“Modificando la conocida tesis de Marx, podríamos decir que la naturaleza psíquica del hombre viene a ser um conjunto de relaciones sociales trasladadas al interior y convertidas em funciones de la personalidad y en formas de su estructura” (Vygotski, 2000, p. 151).

Leontiev (1978), ao debater sobre o processo de desenvolvimento, da formação e das funções psíquicas próprias do homem enquanto ser social, defende que esses são produzidos em um processo de formação de um plano interno e de aquisição, no qual a criança ao nascer deve aprender a ser homem na relação com os outros homens. Afirma que as propriedades biologicamente herdadas pela criança ao nascer constituem apenas uma das condições da formação das suas funções psíquicas. O mundo que fornece ao homem o que ele tem de verdadeiramente humano é o mundo de fenômenos e objetos que circundam o homem.

Assim, nesse momento interpõe-se o processo de internalização/apropriação31 que Smolka (1992) apresenta como processo a partir de sua etimologia em que a internalização envolve um movimento ‘para dentro’, para o interno. A seguir Smolka

31 O termo adotado para o processo de reconstrução da atividade psicológica, baseada na operação com

signos, será o de apropriação (Smolka, 2000). Esclarece-se que os termos: formação de um plano interno, conversão das relações sociais em funções mentais, incorporação, internalização e interiorização, serão utilizados como sinônimos do processo de apropriação visando a compreensão/padronização do mesmo.

(2000) entende o construto internalização que, considerando a etimologia, firma a imagem de dentro/fora do organismo, podendo gerar uma oposição entre o individual e o social, mas que, como construto psicológico considera o ‘lá fora’, a cultura, por exemplo, e supõe que o indivíduo toma ‘de fora’ e de alguém, implicando a ação sobre algo e se coloca como propriedade individual desse ‘fora’ que é constitutivo do dentro. Assim, o termo internalização poderia ser sinônimo do termo apropriação, utilizado por outros autores para evitar essa possível distância entre o individual e o social.

Duarte (2005) discute o processo de apropriação, caracterizando-o primeiramente como um processo ativo em que o indivíduo se apropria de um produto da história humana. A apropriação da cultura para ele é o processo mediador entre o processo histórico de formação da humanidade e o processo de formação de cada indivíduo. Considera a formação do indivíduo pela apropriação dos resultados da história social e pela objetivação no interior dessa história. Portanto, a sua formação se dá por meio da relação entre objetivação e apropriação e se efetiva no interior de relações concretas com outros indivíduos.

Smolka (2000) analisa que Vygotski explicou o conceito de apropriação como a reconstrução da atividade psicológica baseada nas operações dos signos. Essa autora identifica o processo de apropriação como um construto teórico que trata do processo de desenvolvimento humano como “incorporação da cultura, como domínio dos modos culturais de agir, de pensar, de se relacionar com outros, consigo mesmo” (p. 27). Essa autora questiona como se concebe o processo de constituição do sujeito no contexto cultural, seguindo o pressuposto das relações sociais como lócus que dimensiona a constituição interna do sujeito.

Especificamente sobre a introdução da noção de cultura na constituição da psique humana, Pino (2005) declara que essa introdução representa uma verdadeira mudança de paradigma, uma passagem do plano biológico para o plano da cultura. Esse autor salienta que no trabalho de Vygotski não há uma discussão específica do conceito de cultura. Esse conceito emerge em sua obra no contexto da elaboração sobre o problema do desenvolvimento das crianças, afirmando que o desenvolvimento é de natureza cultural, tendo as funções psicológicas sua origem no social e não no plano biológico. Esse processo complexo é o processo de apropriação.

Sobre essa discussão do conceito de cultura em Vygotski, Luria (2001) exemplifica que a criança está em constante interação com os adultos e esses procuram incorporá-las à sua cultura e ao modo de fazer as coisas que se acumulam historicamente e são envolvidas pelos significados construídos. Com essa mediação dos adultos, processos psicológicos mais complexos se formam na criança, sabendo que no início esses processos funcionam na interação apenas, são os processos interpsíquicos partilhados. Mas em seu desenvolvimento as crianças constroem e elaboram seus processos, tornando-se intrapsíquicos, sendo que essa apropriação dos meios de operações das informações ocorre pelos meios historicamente determinados e culturalmente organizados.

Em outras palavras, Pino (2002) afirma que é a significação que tem o poder de converter o fato natural em fato cultural, permitindo a passagem do plano social para o pessoal. Isso é fundamental para entender o processo de constituição cultural do ser humano. Pino (2005) explana que Vygotski em sua produção preocupa-se em clarificar que:

“No ser humano existe, ao mesmo tempo, continuidade e ruptura entre o biológico e o cultural. Continuidade porque o cultural supõe o biológico para poder constituir- se; ruptura porque o biológico é transformado sob a ação do cultural” (p. 19).

Para Pino (2005), a constituição do ser biológico num ser cultural acontece pela apropriação das significações culturais em significações pessoais, definidoras da subjetividade de cada sujeito.

Smolka e Laplane (2005) explicam que a significação (criação e uso de signos) é a atividade mais fundamental do homem, pois é aquela que o diferencia dos animais, permitindo a transformação do mundo e a recriação contínua das condições de existência humana. Na atuação do homem sobre o mundo e sobre sua existência, este cria instrumentos psicológicos, como os signos e a linguagem, que trabalham como meio de comunicação e de operação mental, possibilitando a vivência humana significada no nível tanto social quanto individual. Define-se assim o sujeito único: social e ao mesmo tempo histórico.

A partir de investigações sobre o desenvolvimento cultural pela observação da criança, Vygotski (2000) aponta a lei geral sobre o desenvolvimento cultural:

“toda función en el desarrollo cultural del niño aparece en escena dos veces, en dos planos; primero en el plano social y después en el psicológico, al principio entre los hombres como categoría interpsíquica y luego en el interior del niño como categoria intrapsíquica” (p.150).

Pino (1992), seguindo o modelo teórico de Vygotski que tem com pressuposto a origem social das funções psíquicas, foca no processo de apropriação a possibilidade da reconstrução no plano pessoal dessas funções de origem social e destaca o signo como instrumento que permitiu ao homem dar existência cultural à natureza e a si mesmo em que o homem é o mediador da natureza e da cultura.

As funções psíquicas superiores se colocam nesse parâmetro da reconstrução do plano pessoal como sendo produzidas por meio das relações apropriadas da ordem social, e as reconstrói nesse plano intrapsíquico: “toda función psíquica superior pasa ineludiblemente por una etapa externa de desarrollo porque la función, al principio, es social” (Vygotski, 2000, p. 150). Precisa-se entender essa condição externa na história do desenvolvimento humano do sujeito para apreender os sentidos apropriados pelo sujeito em sua vida, pois:

“Toda función psíquica superior fue externa por haber sido social antes que interna; la función psíquica propriamente dicha era antes uma relación social de dos personas. El medio de influencia sobre si mesmo es inicialmente el medio de influencia sobre otros, o el medio de influencia de otros sobre el individuo” (p.150).

Dialogando com essa questão do plano externo, Góes (1991) aponta que o funcionamento interno é resultado da apropriação da formas de ação e depende das estratégias e dos conhecimentos dominados pelo sujeito, mas também das ocorrências registradas no contexto interativo. Compreende-se que o plano intrasubjetivo de ação é formado pela apropriação de capacidades originadas no plano intersubjetivo, e que esse último é o plano da relação do sujeito com o outro. Conclui-se, esse plano intersubjetivo não se coloca por si só como responsável por influenciar os processos subjetivos, na medida em que a atividade do sujeito é ativa nesse processo: “o conhecimento do sujeito não é dado de fora para dentro, suas ações não são linearmente determinadas pelo meio, nem seu conhecimento é cópia do objeto. Não se trata, pois, de um sujeito passivamente moldado pelo meio” (p. 21).

Vygotski (2000) entende que o processo de fixação/interiorização se dá em um processo de desenvolvimento que inclui mudanças evolutivas e revolucionárias, com retrocessos e falhas, em um movimento de zig-zag e de conflitos e contradições, em um choque entre o natural e o histórico, o primitivo e o cultural e o biológico e o social. Ele elucida que o processo do desenvolvimento cultural do homem é vivo, de formação e de luta:

“el desarrollo no se procuce por lá vía de cambios graduales, lentos, por una acumulación de pequeñas peculiaridades que producen en su conjunto y al final alguna modificación importante. Ya desde el mismo principio el desarrollo observado es de tipo revolucionario. Dicho de otro modo, observamos la existencia de cambios bruscos y esenciales en el propio tipo de desarrollo, en las propias fuerzas motrices del processo. Y es bien sabido que la coexistencia de cambios revolucionarios con los evolutivos no es indicio que excluya la posibilidad de aplicar a ese proceso el concepto de desarrollo” (p. 156).

O processo de apropriação, ao revolucionar a estrutura do psiquismo, possibilita a superação do estabelecido e constitui algo novo, interno e externamente, por meio das ações realizadas na cultura. Smolka (2000) defende que assim não se pode compreender o processo de formação do funcionamento mental meramente pelas relações humanas em si. As relações sociais devem ser analisadas conjuntamente a produção de signos e sentidos. Apropriar-se é o ato do sujeito em seu desenvolvimento que ao pertencer e participar das práticas sociais se constitui nessas relações significativas, dando-lhe sentido a elas.