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O processo de construção das narrativas e as percepções

No documento DOUTORADO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA (páginas 102-108)

4.2 O alicerce da pesquisa

4.2.4 As narrativas como instrumento de análise

4.2.4.1 O processo de construção das narrativas e as percepções

As narrativas e os elementos de discussão durante as leituras pautaram-se nos registros sobre o contato das alunas estagiárias com a professora da classe e das alunas com os alunos. Essas vivências foram determinantes para que suas memórias e lembranças (re)significassem suas concepções sobre ensinar e aprender, recuperassem suas visões de escola e oportunizassem uma nova concepção da profissão.

A construção das narrativas era individual e acontecia logo após a participação nas aulas. As alunas dispunham de um caderno, e seus registros pessoais serviam de suporte para a produção das narrativas. Esse caderno ficava à disposição da pesquisadora e da professora titular da classe e dava transparência ao processo de pesquisa. É importante destacar que a relação das professoras titulares com as alunas estagiárias inicialmente era de desconfiança, porém, a partir do momento em que as alunas começaram deixar seus registros à disposição das professoras e da diretora, a situação pouco a pouco ficou mais tranquila. Isso ocorreu porque as alunas demonstravam, nas narrativas, que suas concepções, geralmente, vinham ao encontro do que acontecia na escola.

Como ressalta Bruner (1997), as narrativas são versões da realidade, orientadas, por convenção e necessidade, para o relato de histórias e fatos considerados verdadeiros ou falsos. A defesa e a apresentação do que é narrado depende da intenção do narrador; fica a seu critério o que escrever para o leitor.

Passegi (2010), em sentido semelhante, apresenta a narrativa como instrumento de pesquisa que exige uma análise multirreferencial inserida na perspectiva do interacionismo sociodiscursivo, pois é um gênero textual em que o processo de autoria e o de construção identitária se entrelaçam: o narrador coincide, enquanto escreve, com o autor empírico do texto. Ele é o agente responsável pela totalidade das operações do ato de escrever. Assim, o processo de escrita consiste na apropriação de novos saberes conceituais, sobre a língua e sobre o conteúdo que narra, transformadores dos conhecimentos sobre suas práticas pedagógicas, de escrita e sociais. A escrita, também, transforma um conhecimento de senso comum em acadêmico, na medida em que ressignifica, examina e retoma suas palavras para apresentar suas ações, suas crenças e seus valores. Para a autora, a liberdade do narrador de controlar, censurar e aprovar o que escreve provoca mudanças na constituição identitária, o que lhe permite apropriar-se das representações de si mesmo.

As narrativas, nesse sentido, demonstraram ser excelentes recursos para que as alunas estagiárias comunicassem suas vivências, suas impressões e seus conhecimentos. A análise de cada texto implicava não apenas a exploração do que estava escrito, mas também a análise do modo figurativo da linguagem. Por exemplo, a narrativa da aluna Marta sobre as contribuições do estágio traz de modo figurativo a percepção dos significados que atribui para o estágio: foi a partir do estágio que ela concluiu que tinha escolhido a profissão certa.

Para mim, o estágio está sendo um espelho do que vou encontrar na profissão. Eu percebi que mudou muito o ambiente de sala de aula em relação à época que fui aluna de 1º ao 4º ano. Eu fico um dia com uma professora e outro com outra professora. Eu consigo analisar os procedimentos de cada professora para dar aula e para atender os alunos. Enquanto uma professora é mais dinâmica, explica bem e atende os alunos, outra professora é mais preocupada com a rotina e com o tempo de cada atividade. Reflito sobre cada situação, vejo o quanto é difícil ter que decidir sobre o que deve ser feito e o que deve ser seguido, reflito sobre

as situações e faço um ensaio: se eu fosse a professora, faria dessa forma. Penso que o estágio é uma oportunidade de fazer este ensaio de como eu faria para conseguir que todas as crianças aprendam. Enfim, por isso considero que estágio é um espelho. (MARTA, Grupo de discussão, 28 ago. 2010)

As alunas estagiárias, mesmo tendo sido informadas de que o foco da pesquisa estava direcionado para o ensino dos conteúdos de matemática nos anos iniciais e para a aprendizagem da docência, sentiram necessidade de discutir outros aspectos que observaram no cotidiano escolar, uma vez que ficavam cinco horas na sala de aula.

Esses aspectos foram descritos após o primeiro encontro com a pesquisadora, no dia 09 de abril de 2010. Os conteúdos de matemática e os rituais de ensino ficaram em evidência, uma vez que as narrativas apresentavam detalhes importantes – articulados com as orientações que as estagiárias recebiam dos professores – sobre o comportamento, os procedimentos e a participação dos alunos da escola nas atividades. Nas observações sobre os conteúdos de Matemática, ficaram em destaque os procedimentos docentes e o envolvimento dos alunos para ensinar e aprender conceitos de números, as operações matemáticas, os problemas envolvendo raciocínio lógico, medida e proporção. Quanto aos rituais da escola e às rotinas da professoras, houve referências à entrada dos alunos, ao início da aula, ao uso dos espaços e do caderno, às orientações iniciais da professora da turma e ao fechamento das atividades e do dia.

Importa registrar aqui que as narrativas inicialmente se caracterizavam como relatórios: ora pela apresentação do passo a passo adotado pela professora, ora por opinião pessoal sobre a postura desta. Pode-se afirmar que eram relatos sem reflexão.

A aula de Matemática iniciou depois da aula de Língua Portuguesa.

As crianças não haviam guardado os livros de Língua Portuguesa e já estava sendo distribuído o de matemática.

Revisão da avaliação – As crianças repetiram os exercícios da prova (os que a classe teve maior dificuldade). Numerais de 0 a 50. Muitas crianças se perderam, não conseguem ver a sequência. O caderno ficou todo sujo e feio de tanto os alunos apagar, e isso as deixou visivelmente frustradas. Depois de algum tempo a professora escreveu os numerais na lousa, para aqueles que ainda não haviam terminado copiar. (ANA CLARA, 1º ano EF31, narrativa n. 2, 30 abr. 2010)

Esta estrutura foi se ampliando à medida que as leituras aconteciam nos encontros, constituídos também de narrativa orais, resultantes das indagações sobre os detalhes que envolviam a cena, os procedimentos adotados e os que poderiam ser empregados e sobre as percepções do momento.

Assim, o acompanhamento do estágio, pela pesquisadora e pelas alunas, acontecia de forma significativa e transformadora dos conhecimentos profissionais: tanto aqueles conquistados durante a realização do curso de Pedagogia quanto os que foram adquiridos mediante as reflexões críticas nos encontros com a pesquisadora ou durante as vivências na escola de Ensino Fundamental.

Nos encontros das alunas com a pesquisadora, a apropriação do gênero narrativo foi uma conquista, especialmente em relação à exposição dos conteúdos contextualizados com o cenário vivido, com o tempo, com às emoções implícitas, com exposição da articulação dos conteúdos trabalhados pela professora titular; e às apropriações da aluna estagiária.

A concepção do estágio ampliava-se, tendo como diferencial a ação de registrar, rever e ampliar as possibilidades de entender a docência, que, muitas vezes, estavam além da ação auxiliar nos olhares para a aprendizagem de conteúdos matemáticos. Marta, no grupo de discussão, por exemplo, falou da importância do estágio para sua preparação para assumir a profissão: “Eu posso

afirmar que, antes de fazer o estágio, eu não me sentia preparada para dar aula.

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Realizar o estágio nesta escola garantiu meu entendimento sobre o que é ser professor, o que é uma escola. Tudo é muito dinâmico”.

As dinâmicas vividas indicavam a amplitude do envolvimento das alunas na sala de aula. A rigidez dos professores nos tratos com os alunos e a riqueza do trabalho realizado eram narradas simultaneamente e favoreciam reflexões importantes para a formação inicial.

No primeiro contato com a sala achei a professora muito rígida. Depois com o passar das horas percebi que sua rigidez se faz necessária para a disciplina da sala que se dispersa com muita facilidade. Sei que a estagiaria não pode dar aula. Eu nunca havia ficado com uma classe ou dado aula. Hoje, quinta-feira a professora saiu da classe por alguns minutos e pediu para eu terminasse a correção dos problemas na lousa, Foi quando eu percebi que é muito difícil conduzir a aula e seduzir os alunos para participarem do momento. Decidir sobre o que falar, o que fazer e que atitude adotar é bem diferente do que assistir a aula, participar da aula e pensar nas atitudes que poderiam ser adotadas. (MARTA, 5º ano do EF, narrativa n. 1, 19 abr. 2010)

Essa era a riqueza do processo de apropriação da docência que resultava das indagações que emergiam. Marta, por exemplo, viu-se cúmplice da situação real e registrou que entendia a postura da professora. Deixou implícito que é correto ser autoritária para conseguir a atenção dos alunos. Contudo, no encontro nº 2 com a pesquisadora, ao ser questionada a respeito da situação narrada, Marta concordou que existe algo que não é coerente com a concepção de ensino que defende o aluno como protagonista da aprendizagem e o professor como mediador da aprendizagem cujas intervenções precisam ser desafiadoras. Declarou não ter resposta sobre como fazer com que aqueles alunos se sintam desafiados e percebam que os conteúdos da escola e a proposta da professora ajudarão na sua formação; concordou que a postura da professora não é aceitável, pois os alunos só realizam a atividade por se sentirem obrigados.

A reflexão foi produtiva, não havia a intenção de prescrever o que é correto nem o que deveria ser feito; procurava-se, ao contrário, adotar uma postura cuidadosa para as interpretações da prática educativa, pautadas num olhar mais direcionado à apropriação de conhecimentos profissionais para legitimar o processo de profissionalização individualmente e coletivamente.

Nesta escola vejo que o dia-a-dia é muito difícil. As salas são grandes e servem de biblioteca, palco de teatro, ambiente de estudo. Sinto que somente com a presença da professora os alunos são obedientes. Contudo, vejo muitas possibilidades de trabalho diversificado dentro deste precioso ambiente – sala de aula – para esta escola que tem poucos recursos físicos adequados para as crianças. (ROSE, 4º ano do EF, narrativa n. 10, 02 abr. 2010)

Assim, no contexto dessas narrativas e de outras não apresentadas, as descobertas das incompreensões e de caminhos ainda não trilhados ficaram evidentes, e os espaços que inicialmente eram narrados com certa naturalidade agora se transformavam em lugares de formação, pois o sentido e o significado das experiências eram apresentados com cumplicidade nas narrativas.

Havia a certeza da criticidade em relação à complexidade de ser professor, decorrente da necessidade de romper com a racionalidade ainda presente na escola hoje, seja na relação de poder da professora com o conteúdo selecionado ou da sua autoridade para garantir o ensino.

Nesse contexto, o espaço, o estágio e os conhecimentos matemáticos ficavam imbricados e traziam, tanto para as alunas como para a pesquisadora, indagações que exigiam pesquisa, discussão e ressignificação. A aluna Rose, por exemplo, ao apresentar suas impressões sobre o estágio, confirma esta percepção:

No início do curso, quando tinha que preparar as práticas pedagógicas, eu não me preocupava com o aluno real. Quando cumpri o estágio, percebi que as atividades que eu preparei são muito infantilizadas; os alunos estão preparados para participar de situações mais elaboradas. As crianças são muito capazes, desenvolvem atividades que eu nem imaginava; as atividades precisam ter significado para elas. O curso por si não apresenta a escola real, as aulas. Os professores do curso de Pedagogia apresentam simplesmente o conteúdo, o currículo, as estratégias de ensino e exemplos de desafios e conflitos do dia a dia. Porém, sinto que é preciso sair da condição de aluno do Ensino Superior, para entender o que foi ensinado no curso e tentar usá-lo no seu dia a dia. Existe uma distância muito grande entre saber o que é para fazer e o que é para realizar, entre adotar procedimentos e conduzir as aprendizagens no dia a dia. Eu, por exemplo, não sei se consigo ensinar o conceito de fração para os alunos do 4º ano do Ensino Fundamental. (ROSE, Grupo de discussão, 28 ago 2010)

A trama de reportar-se ao que foi vivido, ao que ficou de significativo e às indagações que emergiram, notoriamente, aparecia nas narrativas, o que justifica a adoção deste gênero como instrumento metodológico e de análise.

No documento DOUTORADO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA (páginas 102-108)