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O Programa de Penas Alternativas: a proposta aprovada na qualificação

No documento marciamathiasdemiranda (páginas 111-119)

3 A TRAJETÓRIA DO TRABALHO DE PESQUISA: PROJETO E

3.4 O PERCURSO QUE CONDUZIU À CONSTRUÇÃO DO PROJETO DE

3.4.2 O Programa de Penas Alternativas: a proposta aprovada na qualificação

O projeto apresentado na Banca de Qualificação considerava os investimentos no campo da Segurança Pública de Minas Gerais, elegendo a cidade de Juiz de Fora como uma possibilidade de pesquisa por meio de infratores encaminhados ao programa CEAPA da Secretaria de Defesa Social (SEDS) de

Minas Gerais. O projeto concebia a interação entre os indivíduos criminosos e os agentes socializadores como algo decisivo no processo de reabilitação do criminoso. O que buscávamos, em nossa investigação, era conhecer e analisar como os agentes socializadores (família, programa CEAPA e organizações parceiras que participam do processo de reabilitação do criminoso encaminhado ao programa alternativo ao cárcere, por crime de furto, em Juiz de Fora) impõem as regras contidas nos valores gerais e na legislação39 e, em especial, como é o processo de subjetivação advindo desse sistema. A análise proposta considerava a relação interacional entre os agentes socializadores (que formam grupos interdependentes) com o criminoso, bem como a interpretação desse criminoso do processo reabilitativo (de imposição de regras conformistas) ao qual está submetido e a formação da subjetividade advinda desse processo. A análise dos dados incluiria a relação do processo socializador (ao qual cabe a imposição e consequente internalização de normas sociais) com as regras criadas a partir da legislação brasileira, ou seja, a análise do processo de comunicação, bem como a identificação das características que respondem, de forma decisiva, pelo processo de reabilitação.

Tomamos como fundamental na pesquisa o fato de o indivíduo encontrar-se em liberdade (e não em uma socialização restrita aos pares, como lhe oferece o sistema prisional). Desse modo, a noção de reabilitação encontrada em nossas hipóteses se relacionava à reinserção social, concebendo os grupos com os quais o indivíduo interage (família e organizações informais) como fatores decisivos no processo de reinserção do infrator. Os indivíduos que seriam estudados não estabelecem uma interação cotidiana com o programa que os acolhe para o cumprimento da pena. Ao programa CEAPA cabe acompanhar o cumprimento da pena, restringindo o contato interacional com o usuário no momento da chegada dele ao programa e na conclusão da prestação de serviços. Entendíamos que o fato de não haver uma interação significativa (cotidiana) entre o criminoso e o programa de penas alternativas é, exatamente, o que pode favorecer o sucesso da ação reabilitativa (uma vez que o sistema penal é produtor da delinquência).

Com relação ao programa CEAPA, que nos favoreceu formalizar e documentar nossas investigações, recebemos uma abertura muito grande para o

39 Dos Crimes contra o Patrimônio; Capítulo I, do Furto: Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel. Código Penal Brasileiro.

diálogo com relação à proposta e ao apoio à realização da pesquisa, entretanto acompanhados, obviamente, de muitos cuidados no que se refere à exposição dos usuários do programa e ao próprio programa. A negociação, que demandou algumas reuniões, explicações, bem como a correção de alguns pontos no projeto relativos à proposta do programa, foi autorizada após terem sido tornados muito claros os objetivos da pesquisa e os passos necessários para realizá-la.

O programa de penas alternativas pesquisado, desde os primeiros encontros (que se trataram de uma pesquisa exploratória, visando a investigar a possibilidade de uma construção de projeto de pesquisa empírica), mostrou-se muito interessado e aberto a colaborações, por meio da gestora do Centro de Prevenção. O primeiro passo formal do trabalho foi uma reunião com o supervisor de referência, que confirmou todo empenho em colaborar com a pesquisa e, ao entender a proposta de nosso estudo, autorizou-nos fazer a investigação sem grandes restrições.

A preocupação da gestão do trabalho das penas alternativas girou em torno, basicamente, da exposição pública do mesmo, ou seja, não só na possibilidade crítica do pesquisador, como também nas palavras usadas para descrever o programa no projeto apresentado. Isso demandou reescrever alguns pontos do projeto e reenviá-lo, tornando mais clara possível a proposta da pesquisa, bem como mais encontros pessoais para um diálogo sobre o objeto de investigação. Segundo a gestora e o supervisor, o projeto de pesquisa, ao se referir ao programa CEAPA, deveria representar, exatamente, o trabalho que o programa se propõe a realizar (que eles definiram como prevenção, mas não como reabilitação – embora tenha sido esclarecido que a reabilitação comporta estratégias preventivas). A CEAPA passa por uma busca constante de reconhecimento público de seu trabalho, segundo o supervisor e a gestora – há, portanto, uma grande preocupação de que o programa não tenha uma imagem negativa em um contexto que dirige a ele tão pouca atenção e investimento (segundo o que foi colocado em reunião).

Considerando que esta pesquisa partiu de uma literatura, de uma definição e de uma produção teórica, consideramos o programa como reabilitativo, pois a reabilitação corresponde a um conjunto de estratégias, entre elas, também as preventivas e, portanto, a intervenção na vulnerabilidade e nos fatores de risco (que refletem o trabalho preventivo do programa descrito pelo supervisor) não tornam sua

prática inadequada à pesquisa sobre a reabilitação do criminoso – ao contrário, estávamos certos de termos encontrado um contexto adequado a tal investigação.

Destacamos que um outro passo dado (ainda formalizando a pesquisa) foi uma reunião com toda a equipe do programa – o que incluiu a gestora, as profissionais (do Serviço Social, da Psicologia e do Direito) e os estagiários. Na equipe de profissionais, em reunião, a advogada e a gestora sustentaram a abertura e o interesse pelo estudo. Já os outros profissionais e o quadro de estagiários trouxeram muitos questionamentos, acompanhados de uma resistência em colaborar. O encontro refletiu, claramente, a inexperiência desses profissionais e estagiários com a pesquisa (embora um deles já tenha se inserido em um curso de Mestrado), bem como a prática inexistente desse tipo de estudo no programa do qual fazem parte. O obstáculo dizia respeito ao nome dos usuários entrevistados (que compunham os entrevistados da pesquisa). Houve tentativas de escolher quem seriam os entrevistados, ou evitar que a pesquisadora abordasse os usuários para a pesquisa diretamente. Esses profissionais argumentaram acerca da necessidade de o programa sustentar o sigilo sobre os atendidos – a questão reflexiva colocada pela pesquisadora foi: como fazer uma pesquisa em que o entrevistado é um segredo para o pesquisador? Tais profissionais afirmaram a necessidade de “segredo”, mesmo diante de a autorização formal para a pesquisa já ter sido dada pelo supervisor do programa. Na equipe, a contraposição aos obstáculos criados foi feita apenas pela advogada e por um estagiário do Direito.

Todo processo de autorização formal... reuniões... acesso aos entrevistados... foi um processo que demandou 10 (dez) meses de espera. O pedido formal de autorização teve entrada em novembro de 2011. Em maio de 2012, tivemos uma reunião (a pesquisadora, a gestora e o supervisor do programa) na qual a autorização, enfim, foi dada. A reunião com a equipe só foi feita em julho de 2012. De todas as dificuldades enfrentadas, o momento que se seguiu à reunião de equipe foi, sem dúvida, o maior deles. Foram muitos os momentos em que sustentamos a expectativa de, enfim, podermos selecionar o público que seria entrevistado, mas isso era sempre interrompido em nome do “segredo” com relação aos nomes dos atendidos. Fizemos muitas tentativas de explicar à gestão do Centro de Prevenção sobre como se dá um processo de pesquisa e de construção do conhecimento... como é feita uma pesquisa na Ciência Social... explicações sobre o Código de Ética (que a equipe desconhecia, fornecendo informações falsas sobre a

nossa área de pesquisa)... da pertinência do estudo para o trabalho dos profissionais da equipe... esta etapa contou com o orientador desta pesquisa se envolvendo nesse processo diretamente e promovendo uma reunião para maiores explicações, mas, ainda assim, romper o sigilo da amostra para o pesquisador foi uma tarefa bastante desgastante.

O que experimentamos, no momento inicial do trabalho de campo, foi uma prática que denuncia a falta de investimento na produção científica da ressocialização ou das estratégias preventivas – não só por parte do Estado, mas também no que se refere ao interesse dos pesquisadores. Da mesma forma, observamos o desinteresse por parte de alguns profissionais na produção de conhecimento de sua área de atuação. Este foi um momento em que pensamos em refazer o projeto e partir para outra pesquisa, chegando, até mesmo, a pensar em abandonar essa temática. Começamos a fazer uma série de questionamentos com relação ao público selecionado para as entrevistas e a atenção dispensada à reabilitação em Minas Gerais. Vale lembrar que este trabalho de pesquisa estabelece não só um diálogo, mas também uma relação direta com o campo político e, dessa forma, levantamos o seguinte questionamento: quais são, exatamente, os interesses de quem conduz a ação política e quais são os interesses também de quem trabalha com o criminoso? O criminoso condenado não mais tem a proteção e a regulamentação dos direitos civis, mas é incluído no que prevê a LEP. Dessa forma, trata-se de um brasileiro destituído de uma série de direitos, inclusive do direito ao voto (em um país no qual a cidadania é vista, praticamente, como sinônimo de voto e de eleição), então o Estado, ainda assim, vai se preocupar em dirigir-lhe atenção? No caso de insucesso em uma estratégia de intervenção, a sociedade responsabiliza o indivíduo – ela recorre ao descrédito na reabilitação (o que quase nunca é direcionado para o contexto político e/ou social). Assim, os profissionais estão, de fato, preocupados em buscar estratégias efetivas, ou se contentam, simplesmente, em realizar o trabalho, ou seja, em fazer suas tentativas? E os pesquisadores brasileiros – o que os leva a tantos estudos sobre os presídios e tão poucos estudos sobre a execução da pena em liberdade?

A proximidade entre os profissionais do programa e o cientista, uma ideia tanto defendida pela literatura da reabilitação, chegou a parecer, de fato, uma utopia. Se tomarmos Weber (1968) e sua discussão sobre a ciência e a política como duas vocações, compreendemos melhor a postura resistente da equipe, mas

tornamos a questão do tratamento dado ao criminoso como um problema sem solução. Considerando que a boa vontade não é suficiente para sanar os conflitos sociais, nem uma formação profissional que não se permite uma capacitação contínua, favorecer a pesquisa científica e aproximar o avanço científico da atuação política é tarefa primordial para quem se propõe a lidar com um problema de tamanha complexidade, como é o caso da criminalidade. À formação de profissionais liberais, portanto, cabe um trabalho fundamental: o de uma formação crítica que lhes possibilite identificar os limites e as fragilidades de sua prática profissional e a busca constante pela qualificação de suas atividades. A postura crítica, no caso da criminalidade, inclui a reflexão das referências culturais e políticas atuais – o profissional da reabilitação é voltado para a proteção do indivíduo infrator ou da vida coletiva? Diferente do que pensa o senso comum, o trabalho do cientista social que defende a tolerância, os Direitos Humanos, a liberdade e a efetividade no tratamento dado ao criminoso, defende a preservação da vida social – o foco dado no indivíduo, quando se dá metodologicamente, nada mais é do que uma estratégia de investigação para se alcançar a presença e interação dele com o campo social. O crime não é um fenômeno que se dá no campo da particularidade, mas trata-se de um fenômeno social – o crime se dá na relação social. Assim, favorecer reflexões acerca da criminalidade passa pelo investimento e pela aposta na construção científica, pela abertura do campo social a essa construção de conhecimento e também à expectativa de que esse processo possa orientar as alternativas políticas, culminando em um maior equilíbrio da vida coletiva.

Desse modo, passadas tais dificuldades e vencendo as resistências com relação ao trabalho acadêmico, acessamos, enfim, a planilha com o nome dos possíveis entrevistados (10 meses depois de dar entrada ao pedido de autorização para a pesquisa e sem uma resposta por escrito, como nos foi exigido com relação ao pedido). Assim como a advogada do programa já havia suspeitado em reunião de equipe, não tínhamos um número suficiente de amostragem que garantisse uma pesquisa qualitativa tal como propomos. Dessa forma, surgiram os questionamentos, as hipóteses e a justificativa, que culminaram neste projeto de pesquisa e nesta tese. Mas vale ressaltar que nenhuma etapa anterior foi abandonada enquanto material de análise.

Informamos à gestora do Centro de Prevenção que o projeto passaria por readaptações e, assim que estivéssemos prontos para voltar a campo, retomaríamos a pesquisa na CEAPA. Afirmamos sustentar a proposta de investigação inicial – a investigação do crime de furto e das penas alternativas a ele atribuídas.

Ao retornarmos, foi-nos exigido um novo pedido de autorização para a mesma pesquisa. Informamos, por escrito via e-mail como o exigido, que não houve mudança de orientador (o responsável pela pesquisa continuava sendo o Prof. Dr. Paulo Cesar Pontes Fraga); não mudamos de programa (continuamos a pesquisa no curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF); também não mudamos o procedimento ético proposto (sustentamos sigilo quanto ao nome e cargo dos entrevistados que não quiserem ser identificados, continuando a nos orientar pelo Código de Ética que regula a atividade de pesquisa); não mudamos o primeiro passo da investigação (entrevista com a equipe do programa CEAPA – como consta no projeto e no Termo de Consentimento, enviados e aprovados pela diretoria do programa CEAPA, da Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais. Informamos que o propósito do e-mail era o de apresentar a adaptação do projeto e as mudanças realizadas: entrevistaríamos apenas a equipe do programa (gestora do Centro de Prevenção e equipe de profissionais) e não mais, além desses, os usuários e as suas famílias. Não mais trabalharíamos com a observação participante, restringindo nossa presença no programa apenas aos dias das três entrevistas. Também como constava no projeto já autorizado a ser executado na instituição, relembramos que nossas entrevistas se valeriam da técnica de um questionário semiestruturado e que sustentamos, portanto, também esse item. Acrescentamos ao e-mail o que não foi informado antes e agora nos foi solicitado: o conteúdo das perguntas. Informamos (para nos prevenir de respostas previamente preparadas) que as perguntas se estruturam em três eixos temáticos: a) a compreensão da execução da proposta alternativa ao cárcere; b) a compreensão do perfil do usuário incluído no programa PSC (prestação de serviço à comunidade) por crime de furto; c) as representações acerca da ressocialização. Agradecemos a colaboração do programa desde nossa proposta inicial e ressaltamos que estávamos trabalhando, no momento, com uma extrema limitação de tempo, devido às complicações comuns a todo processo de pesquisa, e que o único motivo que nos levaria a concluir nossa investigação sem a

participação dos três profissionais do programa seria a demora na resposta deste e- mail e na realização das entrevistas, uma vez que o Programa de Pós-Graduação do qual a pesquisadora faz parte cobra dos alunos pontualidade na defesa da tese, e tal exigência nos obriga a conduzir com um maior rigor o nosso cronograma. A gestora do Centro de Prevenção nos recebeu na semana seguinte para uma conversa informal sobre os participantes da rede que poderíamos procurar para as entrevistas.

Todas as dificuldades e as lacunas encontradas no decorrer deste percurso acadêmico foram tomadas como material científico de descrição e de análise, uma vez que a dificuldade e a ausência também dizem muito sobre o campo.

4 A POLÍTICA CRIMINAL COMO OBJETO DE PESQUISA: ANALISANDO O

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