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O protagonismo da memória no discurso contemporâneo

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 44-48)

Abordar o tema da memória constitui grande desafio, dada a dimensão das discussões e a profusão de autores que se debruçaram e se debruçam sobre a temática, nas mais variadas temporalidades e vertentes. Entendendo a impossibilidade de incluir todo um estudo de revisão crítica do tema, por uma questão de recorte metodológico, apresento a seguir, de maneira concisa, alguns pontos de reflexão sobre a memória que me permitirão uma aproximação à obra de Abilio Estévez, me atentando especialmente para aqueles temas que de alguma maneira são convergentes na obra estudada.

Em meio à decadência dos projetos históricos que conformam o nosso imaginário contemporâneo, assistimos ao florescimento do exercício da memória como a valorização do ato de rememorar em si que, segundo Andreas Huyssen (2000), funciona como “antídoto” frente à decadência dos ideais de progresso que caracterizaram nossa modernidade. O passado passa a ser pilar e se constitui como referência de enunciação no tempo de instância da palavra: um passado que, sendo dito ou escrito, se faz presente no momento de realização da fala/ escrita.

27 Trad.: Quando produzimos memória não só fazemos referência à fatos objetivos, ocorridos num

passado próximo ou distante, mas sim resgatamos, no presente a significação desses fatos e a importância que tem em nosso discurso, na atualidade.

O autor também nos fala de uma memória cultural, constituída não apenas por dados de arquivos ou pela historiografia tradicional, mas também pela memória contida nos vestígios, no que foi reprimido.

Para entender as ideias de Huyssen vale uma reflexão sobre a memória cultural, da qual também nos fala Jesús Martín-Barbero (2007). De acordo com Barbero essa memória é fruto de acontecimentos cotidianos que garantem o passado por uma via mais subjetiva, posto que emerge de trocas diárias de experiências. Ela – a memória cultural – é resultado de uma negociação que se dá entre a experiência do passado e a consciência do presente; um presente que se atualiza sem descartar o eco do vivido.

Segundo Zilá Bernd (2014), a memória cultural pertence à esfera do sensível e do simbólico e escapa ao registro hegemônico do poder. Ela possui, portanto um caráter polifônico e político.

Ao mesmo tempo, para Abil Trigo (2003) o retorno ao passado por meio da memória não se faz de forma nostálgica e nem como um acúmulo de memórias. Antes de ser compartilhada ela é digerida e processada pela vida comunitária para só então ser posta em circulação e dar continuidade ao processo permanente de construção identitária. (TRIGO, 2003, p.88-89)

Tão importante quanto a memória é o tópico do esquecimento. A memória surge porque houve esquecimento de espaços, vazios de ações, lacunas por preencher. Santo Agostinho (1995), uma das primeiras referências no tema, faz alusão a uma memória sensorial, um tipo de memória que nos invade de forma involuntária através dos sentidos: olhos, tato, audição, paladar e olfato se sensibilizam para capturar o passado que adquire nuances poéticas distintas em

cada um dos cinco sentidos e são responsáveis por completar os espaços deixados pelo esquecimento:

Do mesmo modo, conforme me agrada (grifo meu), recordo as restantes percepções que foram reunidas e acumuladas pelos outros sentidos. Assim sem cheirar nada, distingo o perfume dos lírios do das violetas, ou então, sem provar nem apalpar, apenas pela lembrança, prefiro o mel ao arrobe e o macio ao áspero. Tudo isto realizo no imenso palácio da memória. Aí estão presentes o céu, a terra e o mar com todos os pormenores que neles pude perceber pelos sentidos, exceto os que já esqueci. É lá que me encontro a mim mesmo, se recordo as ações que fiz, o seu tempo, lugar e até os sentimentos que me dominavam ao praticá-las. É lá que estão também todos os acontecimentos que recordo, aprendidos ou pela experiência própria ou pela crença no testemunho de outrem. (AGOSTINHO, 2011, p.223)

Se me atenho à reprodução considerável da obra de Santo Agostinho é para ressaltar o caráter poético de sua linguagem em relação ao significado para ele, do ato de rememorar. Em Agostinho o exercício da memória possui tanto o caráter involuntário (da invasão das lembranças por meio dos sentidos) quanto uma dimensão voluntariosa: “conforme me agrada” (AGOSTINHO, 2011, p.223). Sendo assim o autor manipula suas memórias e confere também uma dimensão criativa à sua arte de rememorar. Na metáfora do “Palácio da memória”, Santo Agostinho se torna soberano, sujeito de suas ideias: “Quando lá entro, mando comparecer diante de mim todas as imagens que quero. [...] afasto-as do rosto da memória, [...] as chamo, [...] quando eu quiser.” (AGOSTINHO, 2011, p.222). A memória em Santo Agostinho também é manipulada e aporta o esquecimento: “a memória lembra-se do esquecimento [...] quando me lembro do esquecimento, estão ao mesmo tempo presentes o esquecimento e a memória: a memória que faz com que me recorde, e o esquecimento que lembro.” (AGOSTINHO, 2011, p.230).

Vale lembrar também que, nas palavras de Abil Trigo (2003), a ação de esquecer se torna importante na cena literária na medida em que deixa entreabertos espaços de representação da memória:

Esquecer de lembrar é outra forma de afirmar a vida dia a dia. Diferentemente da amnésia social, que implementa o corte seletivo e pedagógico de acontecimentos históricos, o esquecimento criativo promove uma irônica historicização da história, colocando em relevo sua materialidade discursiva e permitindo assim recuperar as marcas do diferente na trama do discurso, revelar a reminiscência como representação, e restabelecer a memória como lócus da alteridade. (TRIGO, 2003, p.90-91).

Neste sentido o tópico do esquecimento aporta criatividade à arte de rememorar que, transplantada para o domínio discursivo, seleciona e apaga os acontecimentos históricos com uma intencionalidade pré-determinada de promover memória compartilhada.

El olvido nos devuelve al presente, aunque se conjugue en todos los tiempos. En futuro, para vivir el inicio; en presente, para vivir el instante; en pasado, para vivir el retorno; en todos los casos, para no repetirlo. Es necesario olvidar para estar presente, olvidar para no morir, olvidar para permanecer siempre fieles.28 (AUGÉ, 1998, p. 47)

Saber esquecer é importante para que se disfrute o instante do presente. O esquecimento é necessário tanto para a sociedade quanto para o indivíduo. Neste sentido, Maurice Halbwachs (1990) nos diz que a memória é um construto social, mas é também, sempre, um trabalho do sujeito que, fazendo parte do que chama de “grupos de referência”, conforma uma “comunidade afetiva”, desde onde articula suas lembranças. É o que reconhece como memória individual e memória compartilhada.

28 Trad.: O esquecimento nos devolve ao presente, ainda que se conjugue em todos os tempos. No

futuro, para viver o início, no presente, para viver o instante; no passado para viver o retorno, em todos os casos para não repeti-lo. É necessário esquecer para estar presente, esquecer para não morrer, esquecer para permanecer sempre fiéis.

Em Memoria y autobiografía – exploraciones en los límites, Leonor Arfuch se

questiona sobre a força da recordação:

¿Qué es entonces que “trae” con más fuerza el recuerdo, la imagen de la cosa ausente o la afección presente? Los “hechos” o su impacto en la experiencia? Y ¿cómo llega esa imagen al recuerdo, de modo involuntario o por el trabajo de la rememoración?29 (2013, p.66)

Faço-me os mesmos questionamentos em relação à presença da memória em

Inventario secreto de La Habana e tento respondê-los na medida em que nos

aproximamos da escritura de Abilio Estévez, no tópico subsequente. De imediato, partimos do princípio de que toda ausência traz conjugada uma presença. É a ausência- de espaço, tempo, que aporta toda a aparição- e todo trabalho- da memória. Na mesma obra, a autora nos fala de “temporalidades da memória”: “cosas que sólo pueden aflorar paulatinamente, a medida que pasan los años y la distancia atenua la angustia, libera el secreto o la prohibición.”30 (p.25)

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 44-48)

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