• Nenhum resultado encontrado

– PósGraduação em Letras Neolatinas

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "– PósGraduação em Letras Neolatinas"

Copied!
85
0
0

Texto

(1)

DESLOCAMENTO E DISCURSOS DA MEMÓRIA EM

INVENTARIO SECRETO DE LA HABANA, DE ABILIO ESTÉVEZ

Lays Gabrielle Neves Moreno

(2)

Por

Lays Gabrielle Neves Moreno

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas).

Orientadora: Professora Doutora Elena C. Palmero González

(3)

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos/ Literaturas Hispânicas).

Examinada por:

________________________________________________________ Presidente, Profª. Drª. Elena Cristina Palmero González – UFRJ

________________________________________________________ Professora Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri- UFRJ

________________________________________________________ Professor Doutor Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo- PUCRJ

(4)

Agradeço a Deus que me permitiu encerrar mais um importante ciclo da minha vida. Mesmo com tantos obstáculos e aventuras ao longo desse árduo percurso, a chegada é doce, doce.

À UFRJ e ao CNPq pelo apoio acadêmico e financeiro necessários para a realização desta pesquisa. Ao órgão financiador desta pesquisa, em especial, por proporcionar assistência com prorrogação de bolsa à pesquisadora gestante, garantindo minha permanência no meio acadêmico sem que para isso tivesse que abrir mão ou adiar os sonhos de ser esposa e mãe.

À minha orientadora Elena C. Palmero González, pelos incentivos e silêncios nos momentos certos. Por sua coerência e sensatez em tudo que faz. Eu me orgulho de ter sido sua orientanda. Te agradeço pelo voto de confiança. Levarei para a minha vida todos os seus ensinamentos.

Aos professores que, de bom grado, aceitaram fazer parte da banca: Professora Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri - UFRJ e Professor Doutor Rafael Eduardo Gutierrez Giraldo- PUCRJ.

Ao professor Ary Pimentel por ter feito eu me encantar pela literatura hispano-americana durante as aulas da graduação. Por me acompanhar de perto durante o processo de preparação para entrar no mestrado. Foi essencial o seu estímulo, todo o seu incentivo.

(5)

Ramos, Carolina Corrêa Gonçalves, Cláudia Sulami, Danielle Russo, Danielle Terceiro, Elen Fernandes, Fernanda Orphão, Imara Cecília Silva, Gustavo Coimbra, Suelem Ferreira, Taiana Cristina da Rocha Braga e Thaís Maria de Jesus Branco. Ao Movimento dos Focolares e à família expandida que me deram força e coragem para viver o amor na dor.

À minha família e à família do meu esposo, que representam meu alicerce.

Aos meus sogros German Luiz Rafael Moreno e Christina Saraiva Moreno que em mais uma de suas infinitas demonstrações de amor, foram presença essencial, foram a luz no fim do túnel. Obrigada também Emanuel e Juliana que aceitaram a troca de casas e Marina Chiara por me lembrar de sorrir em meio ao caos de escrita. À minha mãe, Almerinda Gonçalves, que me recebeu de alma e coração puros, carinho e gratidão maior não há. Sei que se pudesse e se tivesse tempo teria me ajudado mais com questões práticas na elaboração deste trabalho. Os pais fazem tudo pelos filhos. E tudo que tenho e sou devo a você. No doutorado você também estará lá... E no pós-doutorado e em tudo que venha além da vida e da morte.

Ao amado esposo que soube e sabe preservar todo o amor que existe em mim, Inácio Saraiva Moreno, que topou embarcar nessa aventura comigo (durante o mestrado nos casamos e tivemos uma linda macaquinha). Nunca saia de perto de mim. E entre tantas coisas, obrigada por resgatar em mim o significado de se confiar e ter fé na Providência, vivendo o presente de cada dia da maneira que melhor se pode viver. Hoje nossas vidas estão completas.

(6)
(7)

Lays Gabrielle Neves Moreno Orientador: Elena Palmero González

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos Literaturas Hispânicas)

Esta dissertação apresenta um estudo de Inventario secreto de La Habana (2004),

do escritor cubano Abilio Estévez, tendo como objetivo a caracterização de uma poética do deslocamento no contexto da escrita contemporânea hispano-americana. Especificamente, o estudo se propõe a analisar como opera o trabalho da memória no caso de escritores que produzem sua obra vivendo fora do seu país de origem, em contato com outras realidades culturais e de que maneira os mais variados discursos da memória se cruzam na escrita destes autores imersos no atual cenário de mobilidade cultural. Busca-se reconhecer como deslocamento, memória e discursos da memória se articulam na obra de um escritor como Abilio Estévez. Como referencial teórico me apoio nos estudos sobre deslocamento e diáspora de James Clifford (1995), Stuart Hall (2005) e Elena Palmero González (2010, 2011, 2012); no âmbito do discurso da memória recorremos a Santo Agostinho (1955), Andreas Huyssen (2000), Abil Trigo (2003) e Beatriz Sarlo (2012); e a Philippe Leujune (2008), Sylvia Molloy (1996) e Leonor Arfuch (2010, 2013) no que tange às discussões em torno do discurso autobiográfico e autorreferencial.

Palavras-chave: Abilio Estévez; literatura hispano-americana; deslocamento cultural; poéticas do deslocamento; memória; discursos da memória.

(8)

Lays Gabrielle Neves Moreno Orientador: Elena Palmero González

Resumen da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação

em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas)

Esta disertación presenta un estudio de Inventario secreto de La Habana (2004), del

escritor cubano Abilio Estévez, teniendo como objetivo la caracterización de una poética del desplazamiento en el contexto de la escritura contemporánea hispanoamericana. Específicamente, el estudio se propone analizar cómo opera el trabajo de la memoria en el caso de escritores que producen su obra viviendo fuera de su país de origen, en contacto con otras realidades culturales y de qué manera los más variados discursos de la memoria se cruzan en la escritura de estos autores inmersos en el actual escenario de movilidad cultural. Se busca reconocer como desplazamiento, memoria y discursos de la memoria se articulan en la obra de un escritor como Abilio Estévez. Como referencial teórico me apoyo en los estudios sobre desplazamiento y diáspora de James Clifford (1995), Stuart Hall (2005) y Elena Palmero González (2010, 2011, 2012); en el ámbito del discurso de la memoria echamos mano a Santo Agostinho (1995), Andreas Huyssen (2000), Abil Trigo (2003) y Beatriz Sarlo (2012); y a Philippe Leujune (2008), Sylvia Molloy (1996) y Leonor Arfuch (2010, 2013) en lo que tiene que ver a las discusiones em torno al discurso autobiográfico y autorreferencial.

Palabras-clave: Abilio Estévez; literatura hispanoamericana; desplazamiento cultural; poéticas del desplazamiento; memoria; discursos de la memoria.

(9)

DISPLACEMENT AND MEMORY SPEECHES IN

HABANA, BY ABILIO ESTÉVEZ

Lays Gabrielle Neves Moreno Orientador: Elena Palmero González

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos Literaturas Hispânicas)

This dissertation presents a study of secret inventory of Havana (2004 ) , by Cuban writer Abilio Estévez , aiming the characterization of a poetics of displacement in the context of Latin American contemporary written. Specifically, the study aims to analyze how it operates working memory in the case of writers who produce their work living outside their country of origin, contact with other cultural realities and how the most varied memory discourses intersect in the written these authors immersed in the current scenario of cultural mobility. It seeks recognition as displacement, memory and memory discourses are articulated in the work of a writer like Abilio Estévez. As a theoretical framework I rely on studies of displacement and diaspora of James Clifford (1995 ) , Stuart Hall (2005) and Elena Palmero González (2010 , 2011, 2012 ) ; in the field of memory discourse we resorted to Santo Agostinho (1955 ), Andreas Huyssen (2000 ) , Abil Trigo ( 2003) and Beatriz Sarlo (2012 ) ; and Philippe Leujune (2008 ), Sylvia Molloy (1996) and Leonor Arfuch (2010 , 2013 ) in what has to do with the discussions on the autobiographical and self-referential discourse.

Keywords: Abilio Estévez; Hispanic American literature; cultural displacement; poetics of displacement; memory; memory speeches.

(10)

INTRODUÇÃO...12

I - DESLOCAMENTO CULTURAL E AS POÉTICAS DO DESLOCAMENTO...20

1.1. Os deslocamentos na contemporaneidade: a nova imaginação em movimento...21

1.2. A escrita em deslocamento de Abilio Estévez: Inventario secreto de La Habana...29

II - MEMÓRIA EM DESLOCAMENTO: Inventario secreto de La Habana...43

2.1. O protagonismo da memória no discurso contemporâneo ...43

2.2. Inventario secreto de La Habana: a memória em deslocamento………..………...…..47

III – DISCURSOS DA MEMÓRIA NA ESCRITA EM DESLOCAMENTO DE ABILIO ESTÉVEZ ...59

3.1. Discursos da memória em Inventario secreto de La Habana...59

3.2. O eu que lembra e o eu que fala em Inventario secreto de La Habana...73

CONCLUSÕES ... ...79

(11)

Desaprender

Muitas tintas me pintaram Muitas cores eu não vi Dos versos que me cantaram Fiz-me eu mesmo e o que há em mim

Ensinaram-me a pensar A ser, a crer e existir Não ensinaram o que há além-mar A perceber, a reagir

Não, não vou para onde queres E não sei para onde ir Eu não vou para onde queres: Vou renascer, redescobrir

Muitas tintas me pintaram Muitas cores eu não vi Dos versos que me cantaram Não sei mais: desaprendi

(12)

INTRODUÇÃO

No âmbito da mobilidade cultural na contemporaneidade a noção de deslocamento torna-se central nos estudos da cultura, abrindo um fecundo espaço para a discussão de problemas que dominaram o pensamento moderno, mas que em condições de pós-modernidade adquiriram novos significados. Um tema central nesses debates tem a ver com a recuperação historiográfica de uma ampla produção literária produzida no entre-lugar cultural que se gera com esses

deslocamentos, produções que têm uma relação conflituosa com o chamado cânone literário nacional ou continental e, consequentemente, com a historiografia literária, como é o caso do objeto de estudo dessa dissertação: a literatura americana produzida em condições de deslocamento isto é, a literatura hispano-americana fora do âmbito geográfico das Américas.

Nessa conjuntura, a noção de deslocamento vem ocupando também um lugar de destaque na crítica literária, considerando que o deslocamento pode ser considerado uma poética da escrita (PALMERO GONZÁLEZ, 2010, 2011 e 2012) no caso das literaturas que conformam o quadro das diásporas contemporâneas, em resposta à necessidade crescente de caracterização das novas formas de apropriação do lugar e da nova imaginação em movimento (APPADURAI, 2001) que a subjetividade moderna veio a inaugurar.

(13)

possibilita reconhecer seus elementos estéticos configuradores, norteadores dessa nova poética.

Essa dissertação é fruto das discussões e pesquisas do projeto que se desenvolve no Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da UFRJ,

Poéticas do deslocamento nas letras hispânicas contemporâneas: mobilidades

culturais e historiografia literária, que tem como objeto de estudo as literaturas que

se produzem sob condições de trânsito intercultural. Individualmente, os integrantes dessa pesquisa desenvolvem projetos próprios, selecionando autores e obras que possibilitam oferecer fontes para estudos de natureza histórico-literária que integrem, de maneira mais harmônica, as literaturas produzidas em condições de extraterritorialidade e deslocamento cultural.

O projeto que desenvolvo nesse trabalho coletivo maior, é o que dá título a essa dissertação: “Deslocamento e discursos da memória em Inventario secreto de La Habana, de Abilio Estévez”. Interesso-me na caracterização de uma poética do

deslocamento na obra de Abilio Estévez, particularizando na forma em que é assumido o trabalho da memória em Inventario secreto de La Habana, bem como

nas variadas formas discursivas em que o memorialístico entra em seu discurso narrativo, fundamentalmente através da hibridação dos discursos da autobiografia, da autoficção, das memórias, das crônicas, do diário e do inventário.

(14)

Havana, cidade natal do artista e tema central do romance que estudo nesta dissertação.

Apesar de sua relevante produção como dramaturgo1 e polifacetada produção artística, é a sua criação no âmbito da narrativa a que será aqui estudada, problematizando a maneira em que essa escrita se insere no cenário contemporâneo das mobilidades culturais, do trânsito de imagens, de pessoas e de informações, que configuram nosso século XXI.

Dentro do gênero narrativo destacam-se suas obras: El año del Calipso

(2012), El bailarín ruso de Montecarlo (2010), El navegante dormido (2008), Inventario Secreto de La Habana (2004)- nosso objeto de estudo, Los palacios distantes (2002) e Tuyo es el reino (1998). Apesar de suas singularidades estéticas,

existe um diálogo entre todas elas, tendo como ponto comum o referente da ilha em diferentes contextos históricos. Ainda que elas não tenham sido concebidas como continuidade narrativa, a crítica aponta para uma possível leitura desses textos como uma saga, a saga da Havana na obra de Estevez2.

No imaginário do narrador cubano a Havana é protagonista: em toda a sua produção narrativa a cidade cubana é imaginada, inventada e textualizada, ainda que não haja a intenção de fazê-lo. Os distanciamentos físico e temporal vivenciados pelo autor, entretanto, deslocam o olhar que se lança à terra natal e

1 Destaco sua peça teatral

La verdadera culpa de Juan Clemente Zenea (1987), galornada com o

prêmio "José Antonio Ramos", uma obra de referêcia no teatro cubano do século XX. Outras relevantes produções teatrais: La noche y Un sueño feliz (1997); Ceremonias para actores desesperados (2004); Un sueño feliz. La noche (2013).Los adioses, (Dos ceremonias para actores desesperados) (2015)

2 Ver nesse sentido o ensaio de Elena Palmero González,

(15)

resgatam poeticamente uma memória individual e coletiva que adquirem uma identidade única.

No caso de escritores deslocados, como Abilio Estévez, é possível identificar traços em sua produção ficcional expressivos de uma poética do deslocamento. É possível também que o distanciamento no espaço, juntamente com o distanciamento temporal, gere formas muito originais de assumir o trabalho da memória num contexto híbrido de enunciação. Neste sentido, Inventario secreto de La Habana

(2004) pode ser expressivo desses problemas e o estudo de sua singularidade estética ajudaria a uma caracterização da poética escritural de Abilio Estévez, marcada pelo deslocamento e pelo trabalho com a memória.

(16)

teórico inicial, traçaremos nos parágrafos seguintes um panorama geral do cenário teórico que alicerça a pesquisa.

Tradicionalmente concebemos a residência como a base da nossa vida coletiva na medida em que entendemos a estabilidade, o paradeiro, a fixação, como anseios de vida. No entanto, James Clifford inverte tal lógica e sugere que o deslocamento também pode constituir-se como lugar: segundo o autor, podemos viver uma residência em viagem, em deslocamento.

Essa condição deslocada gera identidades, que Stuart Hall (2006) caracteriza como sendo perfeitamente negociáveis já que o próprio conceito de identidade se vê modificado na contemporaneidade: alheia a qualquer essencialismo biológico, a identidade diaspórica transita por novos espaços e negocia com novas culturas. Os sujeitos deslocados possuem identidades verdadeiramente “líquidas”, para lançar

mão do termo empregado por Zygmunt Bauman em Modernidade líquida (2001).

Edward W. Said, por outra parte, considera que o mundo inteiro pode ser lido como uma terra estrangeira. Assim sendo, conceitos fechados como “lugar de origem”, “lugar de destino” e até a própria viagem, são lugares de extraordinária relatividade.

(17)

híbrido, que inventa ficções de si e que se espelha na sua própria tradição literária e linguística.

Com a perda dos projetos utópicos nacionais e consequente decadência das grandes narrativas, vivenciamos, segundo Andreas Huyssen (2000), uma “sedução

da memória", na qual a projeção a um passado é a saída encontrada por muitos frente à decadência de um presente antes sólido e a ausência de perspectivas futuras. Nesse contexto, adquirem extraordinária relevância os gêneros literários memorialísticos, revelando-se como uma ferramenta indispensável do sujeito deslocado que, ao lançar mão da escrita memorial acaba por duplicar sua experiência descentrada que é escrever a partir da memória. Constitui, então, uma escrita duplamente deslocada: no tempo (memória) e no espaço (deslocamento). Escreve-se a partir dos fragmentos de recordações (muitas vezes uma construção imaginada dada a impossibilidade de resgatar todas as experiências vividas e compartilhadas) e a partir de um lugar alheio.

Abil Trigo (APUD Hollanda Cavalcanti, 2012, p.53), argumenta que a memória no caso de sujeitos deslocados deve ser vista a partir da dupla articulação entre passado e futuro, em tanto, Andrea O’Reilly (2007) aponta para o fato de que nas

identidades em movimento a memória não representa um simples depósito de fatos passados. Ao contrário, existe neste resgate uma constante negociação entre o que foi vivido, coletado, herdado, ou mesmo esquecido na imaginação diaspórica, no momento da narração.

(18)

acaba por enfraquecer as fronteiras entre os gêneros memória e autobiografia e este último e a autoficção, uma vez que o que se narra é resultado do que se viveu ou do que se gostaria de ter vivido. Além do mais, com as novas formas de figuração do eu (Pozuelo, 2013), outros discursos da memória invadem a cena literária, descentralizando a figura do eu, em direção ao seu entorno. O diário, a crônica, o inventário e as memórias, por exemplo, ao se preocuparem com os fatos circunstanciais como a caracterização do tempo e do espaço, acabam por revelar também novas facetas do sujeito que narra.

Como objetivos gerais, essa dissertação pretende contribuir para o estudo crítico de textos literários em deslocamento cultural, fundamentalmente para aqueles em que o discurso memorial é dominante. Além disso, pretende abrir possibilidades de análise, integração e comparação de textos literários relevantes no domínio da cultura artística da contemporaneidade, contribuindo para um olhar mais orgânico da literatura em condições de deslocamento. Já os objetivos específicos consistem em analisar um corpus narrativo literário pertencente ao universo criativo de Abilio

Estévez nas suas coordenadas temáticas, compositivas e comunicativas; integrar a análise do texto ao exercício interpretativo; e proceder ao estudo de caracterização da obra Inventario secreto de La Habana, particularmente no que concerne às

poéticas da memória nas escritas em deslocamento e às singularidades discursivas dessa escrita memorial. No referido ao trabalho com o texto artístico, procederemos com instrumentos de análise textual e hermenêutica literária, articulando o estudo dos procedimentos narrativos com suas implicações ideológico-discursivas.

(19)

problemas gerais que alicerçam a pesquisa aos problemas específicos: a obra em deslocamento cultural de Abilio Estévez, a memória deslocada em Inventario Secreto de La Habana e as variadas formas discursivas que assume o tema da

memória nesse corpus.

No primeiro capítulo, intitulado “Deslocamento cultural e as poéticas do deslocamento”, lanço as bases da minha pesquisa. Desse conceito chave se desdobrarão novas discussões teóricas que posteriormente guiarão nosso estudo. Particularizo, ainda, nesse capitulo numa praxe artística concreta, o deslocamento na obra de Abilio Estévez.

No segundo capítulo “A memória em deslocamento – Inventario secreto de La Habana”, é discutida a fortuna crítica norteadora desse trabalho, no referido à

memória e, especificamente, à memória em deslocamento, para finalmente, aceder a uma hermenêutica da memória em Inventario secreto de La Habana.

(20)

I - DESLOCAMENTO CULTURAL E AS POÉTICAS DO DESLOCAMENTO

Sur o no Sur

To beast or not to beast, that is the hueso.

(Sarampión Mamá, que esto es contagioso!)

Me voy porque acá no se puede, me vuelvo porque allá tampoco Me voy porque aquí se me debe, me vuelvo porque allá están locos Sur o no sur...

Me voy porque aquí no me alcanza, me vuelvo porque no hay esperanza Me voy porque aquí se aprovechan, me vuelvo porque allá me echan Sur o no sur...

(Disculpe, la embajada de Italia?)

No sé por qué pasa lo que me pasa, quizás sea la vejez Quisiera quedarme aquí en mi casa, pero ya no sé cuál es

Sur...

(A babor!)

No sé por qué pasa lo que me pasa, quizás sea mi niñez Quisiera quedarme aquí en mi casa, pero ya no sé cuál es... (Me voy para la embajada, me vuelvo por no estar visada Me voy porque soy de por acá, me vuelvo por ser un sudaca Malaya, qué triste destino, ser o no ser un Argelino Malaya, qué triste destino, ser o no ser un marraschino...) Sur o no sur3

3Trad.: Sul ou não Sul

– Letra e música de Kevin Johansen

Ser bestial ou não ser bestial, este é o osso./(Sarampo, Mamãe, que isto é contagioso!) Vou porque aqui não se pode, /volto porque lá também não/ Vou porque aqui me devem/ volto porque lá estão loucos/ Sul ou não sul.../ Vou porque aqui não me basta,/ volto porque não há esperança/ Vou porque aqui se aproveitam/ volto porque lá sentem falta de mim/ Sul ou não sul.../(Desculpe,a Embaixada da Itália?)/

(21)

1.1 Os deslocamentos na contemporaneidade: a nova imaginação em movimento

Na perspectiva transnacional em que estamos inseridos, estudar a questão identitária se vê cada vez mais subjugada às noções de deslocalização e relocalização. Conforme argumenta James Clifford em seu livro Dilemas de la cultura. Antropología, literatura y arte em la perspectiva posmoderna (1995) um

marco referencial para antropologia moderna, estudar hoje identidades significa abolir a defasada visão da cultura e das tradições culturais como elementos contínuos e homogêneos, arraigados em uma nação. Segundo Stuart Hall, “a cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar” (HALL, 2005, p. 13). Na literatura isto significa estar aberto para que infinitas identidades “venham a ser”, se realizem, na medida em que são textualizadas, e que da sua co-existência e da sua confrontação surjam novas formas identitárias, da fecundação e da proliferação.

A noção de identidades nacionais, neste sentido, se torna alvo de questionamentos, já que ela não constitui mais a única forma de identidade possível. Isto é, quanto mais a vida social é regida pelos meios de comunicação, pelas imagens e mercados globais, mais as identidades deixam de ser lidas como pertencentes a um determinado tempo, espaço, e história específicos ou como algo biológico, nato, e passam a ser ativadas, interpretadas e atualizadas a cada novo contexto.

(22)

organizações de classe, etnias e nações, frente às manifestações que surgem na fronteira, no entre-lugar, na margem e por que não, no deslocamento?

De acordo com Benedict Anderson (2008), mais que uma noção abstrata, a nação é um relato construído, inventado. No caso de Inventario secreto de La Habana, por exemplo, a nação parece estar nas citações literárias, na singular

lembrança de amigos e figuras da vida cultural da Havana, nos pequenos relatos do bairro, na rememoração de uma praça, de um beco, de uma ruela, também na observação pessoal da maneira de falar, de andar ou de esperar dos homens e mulheres que habitam a cidade.

Dois processos contribuíram, de acordo com Stuart Hall (2006), para este recente cenário cultural: a globalização e os movimentos migratórios; ambos rompendo com a noção de cultura homogênea ao aproximar realidades díspares e promover o constante diálogo e contato a través de fronteiras cada vez mais negociáveis e porosas. A combinação destes dois elementos, de acordo com Arjun Appadurai (2001), leva a pensar em novas formas da subjetividade e da imaginação:

[...] imágenes en movimiento encontrándose con espectadores desterritorializados. [...] En suma, los medios electrónicos y las migraciones masivas caracterizan el mundo de hoy, no en tanto nuevas fuerzas tecnológicas sino como fuerzas que parecen instigar (y a veces obligar), al trabajo de la imaginación.4

O trabalho da imaginação, neste sentido, é imprescindível: “Nações são imaginadas, mas não é fácil imaginar. Não se imagina no vazio ou com base no nada” (SCHWARCS, 2008, p. 16).

4 Trad.: “[...] imagens em movimento se encontrando com espectadores desterritorializados. [...] Em

(23)

Distingo, com Appadurai (2001, pgs. 8-9), três caraterísticas que definem nossa imaginação em tempos de “modernidade desbordada”. A primeira delas diz respeito a uma autonomia da imaginação: “[...] actualmente, la imaginación se desprendió del espacio expresivo proprio del arte, el mito y el ritual, y pasó a formar parte del trabajo mental cotidiano de la gente común y corriente.”5. Antes atrelada ao campo mítico e ritualístico, imaginar era um esforço de criação daqueles que se empenhavam ao campo artístico de produção; hoje se torna um espaço mais abrangente e democrático, deixando de ser uma atividade privativa dos artistas. A segunda mudança de perspectiva gira em torno da relação entre imaginação e realidade: “la fantasía se puede disipar, pero la imaginación, cuando es colectiva, puede ser el combustible para la acción. [...] Actualmente la imaginación es un escenario para la acción, no sólo para escapar.6 O caráter passivo, contemplativo e de deleite da imaginação individual cede lugar à uma imaginação ativa, capaz de interromper a inércia social, se pensamos em sua força coletiva. O sentido individual e coletivo da imaginação, por fim, é a terceira caracterização dessa nova ordem imaginativa: o exercício de imaginar hoje, pode ser feito por qualquer pessoa, sem que se questione nem a sua autenticidade nem a sua autoridade para fazê-lo, cobrando novos significados no âmbito da interação coletiva (nas redes sociais, no ciberespaço, etc.)

Daí que imaginar desde a ilha não é o mesmo que imaginar a partir da distância. Livre da dominação do olhar alheio, o sujeito deslocado imagina, recria, fabula por meio de uma visão que deixou de ser focada para registrar mais

5 Trad.: Atualmente a imaginação se desprendeu do espaço expressivo próprio da arte, o mito e o

ritual, e passou a fazer parte do trabalho mental e cotidiano das pessoas comuns e correntes.

6 Trad.: A fantasia se pode dissipar, mas a imaginação, quando é coletiva, pode ser o combustível

(24)

amplamente o que a proximidade impede que se enxergue. Há um intercâmbio de olhares: do focal ao multifocal ou periférico e o efeito resultante dessa prática é textualmente evidenciado, como veremos mais à frente. A iluminação textual dos pequenos relatos conformadores da cidade passa a exercer protagonismo, não um protagonismo cego, à custa da exploração cultural e rebaixamento do lugar do “outro”. Ocorre aqui uma fusão, comum ao espaço binário e paradigmático da fronteira, ou o espaço “bifrontal”, como prefere denominar Clifford (1995). Pensar o espaço físico da fronteira, na visão do autor, possibilita um duplo olhar interpretativo. Desde a ótica contemporânea de mobilidade, as fronteiras podem ser tanto espaços tradicionais de fixação, que delimitam territórios, limites intransponíveis, quanto espaços móveis, reajustáveis ao meio, realizações mentais de construção de pertencimento.

Segundo Appadurai, também a mobilidade, paralelamente à fixação, pode ser lida como um lócus de enunciação, sem que isso represente uma identificação

(25)

[...] ya no se pueden formular teorias desde lugares sino desde itinerarios;

entonces la pregunta que debe realizarse a un enunciado no es más desde

donde se produce sino entre donde o betweeness: “Not so much “Where are

you from?” as “Where are youbetween?”. Esse “entre donde” es el lugar de

enunciación característico de estos sujetos.7 (CLIFFORD, 1997.

APUD Colombi, 2004, p.24)

No contexto da diáspora cubana contemporânea, a discussão que se vem articulando, principalmente a partir dos anos 80, é reveladora de uma variada gama tipológica de deslocamentos, com predomínio dos conceitos de exílio e diáspora para caracterizar a migração da Cuba de hoje. Para alguns autores, como Eliana Rivero (2005), a palavra “exílio” já não consegue abarcar a realidade em movimento cubana, nem consegue expressar a ideia de Cuba como transnação, além de representar um impacto muito duro, com uma carga sentimental apelativa ao definir do ponto de vista da perda. Um “exilado” é um sujeito sem terra natal, sem o direito ao retorno, sem identidade. A sua experiência de “exilada”, principalmente no contexto pós-revolucionário cubano, lhe atribuía “matices individuales de fugitiva, apátrida, sin solares y sin fueros, eternamente victimizada.8” (RIVERO, 2005, p.19)

O reclamo de Eliana Rivero tem a ver com uma prática, não exclusiva da crítica cubana, de identificar diáspora com exílio e ainda de discutir o exílio pela questão do pertencimento ou não pertencimento a um território, a uma nação.

Isto posto, pensar a diáspora cubana na contemporaneidade exige uma mudança progressiva de perspectiva e consequente ativação de novos conceitos para definir os renovados processos que se instauram. Enquanto o sujeito exilado é

7 Trad.: [...] já não é possível formular teorias desde lugares, mas sim desde itinerários; então a

pergunta que deve ser feita a um enunciado não é mais desde onde se produz e sim entre ondeou no intervalo: “Não tanto de onde você é?” Mas sim “Você está entre onde?”. Esse “entre onde” é p lugar

de enunciação característico destes sujeitos.

(26)

dominado pelo desejo de retorno à terra de origem, o sujeito diaspórico responde a outra lógica – cosmopolita, comunitária e imaginária- de habitar o mundo.

Rafael Rojas (2013) não vê uma relação excludente entre os conceitos de exílio e diáspora: “El exílio cubano siempre fue diaspórico” (ROJAS, 2013, P.137),

fazendo alusão a uma subjetividade nômade, que implica uma ótica desde o descentramento e a multiplicação territorial por meio da errância. Para o crítico e historiador cubano "diáspora" e "exílio" definem, mais bem, dois momentos da emigração cubana pós-revolucionária. Até meados dos anos 80 as primeiras ondas de emigrantes cubanos se dirigiram fundamentalmente para os Estados Unidos, onde inauguraram uma verdadeira “política do exílio” ativamente combativa. Mas, a partir dessa data, começou outro tipo de migração, a de quem vai para cidades latino-americanas ou europeias com a ideia de voltar. Esse grupo, principalmente profissionais, vive a sua migração não como uma separação radical. Para Rojas a diferença real entre aqueles que se consideram exilados e os que se reconhecem na diáspora reside na visão do retorno. O exilado pensa a repatriação como um retorno final que lhe devolverá à nação perdida. O diaspórico pensa em um repatriamento reversível, intermitente, mais em sintonia com a era pós-nacional.

O caso de Abilio Estévez, sem desconhecer sua visão profundamente crítica do sistema político atual da ilha, se inscreve numa clara dimensão diaspórica. Trata-se do caso, comum na Latino América, do escritor que procura a proximidade com os eixos editoriais europeus, como forma de consolidação de uma carreira.

(27)

Estados Unidos tece sua narrativa cubana, com obras já consagradas pela crítica como El año que viene estamos en Cuba (1997) e Cincuenta lecciones de exílio y desexilio (2000).

Apesar de não existir um confronto extremo entre línguas, no caso de Abilio Estévez, a questão linguística não deixa de ser conflituosa. Ainda que considerado um autor cosmopolita, que escreve somente em espanhol e que seu público é fundamentalmente hispano, no eixo América- Europa, não é possível desatender o fato de que, impelido pelas exigências mercadológicas e editoriais, precisa negociar sua escritura no âmbito do chamado espanhol neutro. O resultado dessa negociação reclama um tratamento diferente.

Entendendo que tal cenário já não consegue mais sustentar identidades, narrativas, produções culturais de sujeitos como o autor aqui estudado, chego assim, ao coração pulsante desta pesquisa: o deslocamento.

O termo, amplamente discutido pela professora e pesquisadora cubana Elena Palmero González, faz referência de maneira mais abrangente a uma gama de definições: “[...] diferentes formas de mobilidade, física, espiritual, linguística; [...] diversas práticas de emigração, exílio, diásporas, êxodos, nomadismos, circulações humanas.” (2010, p.109). Esse caleidoscópio permite transitar entre os diversos

(28)

conceito, adoto nesta pesquisa o conceito de deslocamento, ao invés da diáspora, para referir não somente ao deslocamento físico ou geográfico do autor, mas também seu deslocamento enunciativo e seu modo de escrever, que em muito contribui para uma caraterização de uma poética.

Visto o deslocamento como prática intrínseca da experiência humana, precisaremos reeducar nossa visão para dialogar e conviver com essa realidade. É certo, como explica Bauman, que:

Estar total ou parcialmente “deslocado” em toda parte, não estar totalmente

em lugar algum [...] pode ser uma experiência desconfortável, por vezes perturbadora. Sempre há diferenças a serem atenuadas ou desculpadas ou,

pelo contrário, ressaltadas e tornadas mais claras. As “identidades” flutuam

no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta [...]. Há uma ampla probabilidade de desentendimento, e o resultado da negociação permanece eternamente pendente. (BAUMAN. 2005, P.19)

Bauman (2005) enfatiza o lado de desconforto que qualquer deslocamento gera, mas é importante apontar também que este abre um leque de opções de vivências, dentre as quais o desconforto é apenas uma e não a mais importante- das sensações. Nesse sentido, em sua tese de doutorado, Giane da Silva Mariana Lessa (2012, p.132) complementa:

Por outro lado, os deslocamentos implicam a reflexão sobre como se dá a constante negociação discursiva e identitária, exigindo também a descrição e compreensão dos conflitos de índoles diversas, mas também a identificação do produto resultante do deslocamento, da produção de conhecimento e de novas formas de ser e estar no mundo.

Silvia Rosman (APUD Palmero González, 2010), fugindo das noções essencialistas de cultura, identidade, língua e literatura nacional, afirma que:

[...] não abandonamos ainda o hábito de localizar o lugar e o agente da

deslocação; que continuamos buscando “uma identidade” ao ler textos

(29)

perdemos o costume de querer inscrever as obras em uma “comunidade literária”. (p. 114)

A necessidade de se olhar desde a perspectiva da singularidade é reveladora. Em algum sentido minha pesquisa se identifica com essa proposta, ao fazer uma leitura da obra Estevéz focada na singularidade de sua praxe criativa. No tópico que segue, tento caracterizar a escrita de Abilio Estévez, marcada desde sempre pelo deslocamento.

1.2. A escrita em deslocamento de Abilio Estévez: Inventario secreto de La Habana

Pensar o conjunto da obra narrativa de Abilio Estévez é transportar-se, invariavelmente, a outro território, é evadir-se através do jogo entre imaginação e realidade, é movimentar-se por meio das tessituras de seu texto, é alcançar e afastar-se paradoxalmente do vivido e do inventado, colecionando lugares, pessoas e histórias. A original dinâmica que rege sua escrita está pautada, sobretudo, no deslocamento, na viagem, no trânsito e em elementos que, devido a sua sistematicidade e recorrência nos levam e perceber a presença de uma cronotopia imaginária perpassando toda a sua escrita. Refiro-me aos limites imprecisos, entre realidade e imaginação, memória e esquecimento, passado e presente, terra natal e terra de acolhida, mobilidade e fixação. À medida que cruzamos esses tópicos nos confrontamos com a força criativa de um autor deslocado que torna a própria escrita um elemento poético. Cabe aqui um breve resumo de sua produção artística a fim de observar o conjunto de sua obra.

Em seu mais recente romance, El año del Calipso (2012) é narrado o

(30)

iniciação o jovem experimenta novas sensações, descobre o próprio corpo, o valor do erotismo e desabrocha naquele inesquecível ano que foi embalado ao ritmo do calipso de uma Cuba sempre quente.

El bailarín ruso de Montecarlo (2010) conta a saga de Constantino

Augusto de Moreas, protagonista da narrativa, que viaja a Zaragoza para apresentar seu trabalho de pesquisa, depois de uma vida inteira vivida em Cuba, investigando a vida e obra do poeta José Martí. Já em território europeu decide pegar um trem com destino a Barcelona, a cidade que tanto sonhava em conhecer para dar asas à realização de seus desejos, vontades recalcadas, amores reprimidos. Longe de Havana, entretanto, descobre uma dura realidade, acompanhado de uma imagem fantasmagórica que sempre aparece em suas lembranças. Trata-se do velho amigo bailarino clássico que um dia prometera que iriam dançar juntos na famosa companhía Ballets rusos de Montecarlo.

El navegante dormido (2008) se situa nos dias que sucederam ao temível

furação que se aproximava da costa cubana, em outubro de 77, quando um grupo de personagens de várias gerações convive num abandonado bangalô. Enquanto esperam que algo terrível ou benéfico ocorra, suas vidas narram um passado de segredos à espera de serem revelados com a passagem do furacão. Despertar esse passado assombroso é tarefa da jovem Valéria que desde Nova Iorque reconstroi sua vida deixada para trás, ao reviver também seu primo que decidiu fugir num bote da ilha, depois da tempestade.

O romance Los palacios distantes (2002) conta a história de Victorio, um

(31)

vida que levava até então e começa uma trajetória sem rumo pelas ruas e espaços abandonados de Havana, perdendo-se nas reminiscências de sua infância, nas recordações dos tempos de ouro daquela cidade outrora esplendorosa, de palácios luxuosos e pessoas ilustres.

Com uma toponímia que nos remete ao “reino” da imaginação, em Tuyo es el reino (1998) penetramos num universo mediado pelo olhar de uma família à

espera de um acontecimento extraordinário em suas vidas. Em La Isla, localizada a

pouca distância de Havana, os membros dessa família (que vivem em “Más Acá”)

resgatam um passado cheio de labirintos e a grande expectativa da chegada de um “ser supremo” que vem de “Más Allá” os consome.

Como se percebe, de uma forma ou de outra, o leitor de Abilio Estévez é sempre remetido à Havana, nos seus mais variados contextos históricos que iluminam em cada uma das obras um tópico específico do imaginário do autor, do imaginário da ilha.

O corpus desta pesquisa, a obra Inventario secreto de La Habana, está

composto de seis capítulos, um epílogo e um colofão. No primeiro capítulo, intitulado

En un café de El Molinar, o narrador se encontra em Palma de Mallorca e começa a

resgatar poeticamente a outra ilha, a Havana, o seu mar tenebroso, a contemplação a partir da distância, dados históricos, relatos de personagens do seu convívio, tradições culturais, o medo, a fronteira, os mitos, uma gama de autores e poetas que tematizaram a cidade. O início de um longo inventário começa a ser traçado neste capítulo. No capítulo II- Largo muro junto al mar, o narrador se debruça sobre alguns

(32)

noites calorentas ao longo do muro. A espera, a resignação, a referência histórica aos balseros. A degradação física desses espaços feita pelo salitre. “Un largo muro

junto al mar. Un lugar para sentarse y definir posiciones […] descubrir dos modos de sentarse en él: de frente al mar o de frente a la ciudad.”9 (p.67) Definir destinos: partir ou ficar, a travessia ou a estagnação. Em Un sueño de la infancia, terceiro

capítulo da narrativa, o personagem-narrador recorre às suas memórias de infância no bairro Hornos para demonstrar a sensibilidade que tinha desde sempre para “las afueras”, a sua já conhecida sensação de estranhamento: “Desde que tuve uso de la razón, como suele decirse, La Habana fue para mi um espacio distante, un territorio que de algún modo no me pertenecía, un sitio de donde venía y adonde iba, pero en el que no estaba, un lugar que debía ser alcanzado, merecido o hasta conquistado”10 (p.88). Na sequência, em El estanque del joyero japonés, o narrador traz à tona as

histórias de ilustres e anônimos da cidade com uma riqueza de detalhes tal que somente a imaginação do autor justifica o trabalho exaustivo da memória. Como imagens congeladas em sua memória, o narrador redescobre personagens de sua juventude, momentos de uma estadia feliz: “Parece idílico, lo sé. En toda vida, supongo, habrá algún momento perfectamente idílico.”11 (p.166) Inventario secreto

(Advertencias para descubrir una ciudad) é o capítulo que o autor dedica mais

páginas. Nele é feito uma desconstrução do olhar turístico, do senso comum, que se lança sobre Cuba, suas tradições e hábitos. A proliferação de incontáveis histórias num resgate de uma cubanidade adormecida nas memórias do

9 Trad.: Um amplo muro junto ao mar. Um lugar para se sentar e definir posições. [...] Descobrir dois

modos de se sentar nele.

10 Trad.: Desde que fiz uso da razão, como se costuma dizer, Havana foi para mim um espaço

distante, um território que de algum modo não me pertencia, um lugar de onde se vinha e aonde se ia, mas no qual não se estava, um lugar que deveria ser alcançado, merecido ou ainda conquistado.

(33)

personagem. No sexto capítulo- De madrugada, en la calle Valencia, vemos o

despertar de um sonho. O narrador volta a se relocalizar em Barcelona: “Entre el sueño de mi paseo errante por La Habana y el despertar con la visión de las torres de La Sagrada Familia, algo notable, supuse, había ocurrido.”12 (p.292) No epílogo da obra, “El trompetista de Stuttgart”, por fim, o narrador problematiza o

pertencimento a uma nação, ao questionar seu lugar de origem e a impossibilidade de habitar somente um espaço. O colofão é a suposta voz narrativa de um autor, que se declara Abilio Estévez, que dedica as últimas páginas em nome daqueles que o acompanharam nesse percurso.

Transpassando toda a narrativa central de primeiro plano, inúmeras referências vão sendo intercaladas à maneira de metatextos dispersos ao longo do texto. Assim, entram na narrativa, toda espécie de citações: literárias, poéticas, artísticas, históricas, que pensadas do ponto de vista significativo funcionam como testemunhos do esplendor outrora vividos em Cuba ou denunciam o abandono de um povo fadado à esperar.

Essas narrativas intercaladas, a modo de collage, são organizadas

cronologicamente num período histórico que vai de 1800 a 2002, resgatando a voz de poetas e escritores como Alejandro de Humboldt, Cirilo Villaverde, Miguel de Carrión, Severo Sarduy, Alejo Carpentier, María Zambrano, Guillermo Cabrera Infante, Reinaldo Arenas, Antonio José Ponte, Leonardo Padura Fuentes, além dos referentes diretos, com quem Abilio Estévez manteve amizade, José Lezama Lima e Virgilio Piñera.

12 Trad.: Entre o sonho do meu passeio errante por Havana e o acordar com a vista das torres da

(34)

Esses metatextos, resemantizados na narrativa de Estévez, dão ao livro uma aparência de rede hipertextual. Sua funcionalidade se concretiza na interação dialógica com o texto que está sendo narrado pelo autor, ora complementando-o, ora contradizendo-o, potencializando um fundo lúdico, irônico, por vezes questionador. Referências que, como as ondas do mar, quebram o seu ritmo natural, mas nem por isso deixam de fazer parte dele. Recordações que assaltam voluptuosamente e se juntam ao presente, como se dele fizesse parte, no entanto, o próprio formato que o autor as apresenta denuncia a sua irremediável condição estrangeira. Existe algo que se perdeu entre o tempo e a distância transcorridos, que talvez somente a escrita possa recuperar.

A estruturação da narrativa se apresenta como uma “colcha de retalhos”, uma aparente fragmentação desconexa do todo que ao invés de tentar abarcar “A”

história cubana, faz emergir múltiplas histórias, desde os mais variados enunciadores. “As mãos” que bordam a colcha são as mãos de colonizadores e colonizados, personagens emblemáticos e anônimos, sujeitos reais e imaginários, narrador e personagem, figuras que à sua maneira narram a “nação”, enquanto

(35)

Cuba deixa de ser a nação dos livros, das enciclopédias, da mídia, para tornar-se uma Cuba imaginada.

O livro traz as memórias de um sujeito-narrador, ora personagem, ora autor das memórias que estamos lendo, que captura um passado motivado pelo presente que o rodeia. Quando menos espera, as imagens, os sons, todas as sensações o penetram, deixando aflorar as recordações de um tempo e um lugar distante do agora em que se escreve. Esse retorno ao passado, entretanto, não o amedronta e como num sonho, a dimensão da temporalidade se esvai, as ações cotidianas de pessoas comuns ganham movimento, a paisagem aporta cores, o clima resgata a vivacidade de outrora. Como num quadro costumbrista, o narrador começa a pintar uma manhã chuvosa em Palma de Mallorca que- por ironia do destino?- também é uma ilha. Elementos como o mar, as horas pesarosas, o passear despropositado, são o motivo inicial responsável por transportá-lo de uma ilha à outra e de repente aquele café onde se encontra poderia estar em qualquer outro canto do mundo, pois o espaço e tempo presentes são apenas suportes físicos responsáveis por penetrar nesse mundo convidativo, que tanto narrador quanto leitor anseia descobrir.

A própria criação literária constitui outro motivo no livro, elaborando-se todo um sistema metapoético marcado pelo o que Fernanda Bustamante (2010) chamou de “a retórica da redundância e da saturação”, onde o plano de fundo é o conflito

(36)

Ao contrário das cidades pós-modernas que tendem a dividir brutalmente seus espaços entre edifícios, zonas, bairros e condomínios fechados, com linhas e fronteiras bem demarcadas, a questão da ocupação e utilização do espaço em Havana possui outro modo de leitura. Como bem descreve Josefina Ludmer em

Aquí América Latina – Una especulación:

Las ciudades latinoamericanas de la literatura son territorios de extrañeza y vértigo con cartografias y trayectos que narran zonas, líneas y limites, entre fragmentos y ruínas. El nombre de la ciudad puede llegar a vaciarse (como pueden vaciarse la narración o los sujetos de las ficciones) y desaparecer, y entonces el trayecto, el cruce de las fronteras y el vértigo son los de

cualquier ciudad o los de “una ciudad”13

Em Havana a única linha fronteiriça é a que divide o mar. Em terra firme os territórios são super saturados, as janelas e portas abertas que dão para a rua borram a fronteira entre o público e o privado e revelam o que habitualmente não se vê. As construções degradadas, carcomidas pelo tempo, pelo salitre e pelo sol escaldante, desconstroem noções como dentro/fora, claro/ escuro, velho/novo. A realidade se nota plana, monocromática, enquanto os territórios constroem subjetividades para além da superfície.

O tópico da espera em Cuba assume diferentes projeções. Uma delas condiz a uma espécie de submissão ao destino, a predestinação à aceitação pacífica das dores e percalços da vida, como podemos entrever no fragmento do poema de Gabriel de la Concepción Valdés (Plácido), poeta romântico cubano a quem Abilio faz referência:

13 Trad.: As cidades latino-americanas da literatura são territórios de estranhamento e vertigem com

cartografias e trajetos que narram zonas, linhas e limites, entre fragmentos e ruínas. O nome da cidade pode chegar a esvaziar-se (como podem se esvaziar a narração ou os sujeitos das ficções) e desaparecer, e então o trajeto, o cruzamento das fronteiras e a vertigem são os de qualquer lugar ou

(37)

Jamás murmura de su suerte aleve, Ni se lamenta del sol que la fascina, Ni la cruda intemperie la extermina, Ni la furiosa tempestad la mueve.14 (p. 66)

Para todo e qualquer contratempo, “o que se pode fazer?” Se a luz acaba, por

exemplo, não resta outra saída senão esperar que o apagão seja breve. Para justificar a espera: “No cojas lucha”: Se falta ovo, pão, feijão, água, roupa, dinheiro...

No cojas lucha’. “O sea, tranquilízate, reanímate, llénate de paciencia que la

solución queda fuera de tus manos. Nada se puede hacer, así que, relájate, chico, ‘no cojas lucha’” 15 (p.75)

A espera, entretanto, corre o risco de ser acompanhada pelo esquecimento. Anulando as vontades, calando os desejos, inevitavelmente se anula também o sujeito: “Es inevitable que la espera llegue acompañada por el olvido, otro demonio atroz.”16 (p.81). Para que não se esqueçam, também os monumentos preenchem uma ausência: Abilio Estévez, lendo de longe a cidade, escreve sobre o mito da espera presente na estátua de La Giraldilla. A lenda conta como Isabel de Bobadilla terminou o resto de seus dias na torre do Castelo da Força, esperando o regresso de seu esposo que havia partido pela conquista de La Florida. “O sea, que no sólo Isabel, sino toda la población esperaba.”17 (p.81). A espera em Havana, portanto, se justifica por diferentes motivos: espera-se por resignação, por inércia, por contemplação, por indiferença ou por amor, mas a passagem do tempo em todos os casos é implacável.

14 Trad.: Jamais maldiz o seu destino traiçoeiro, / Não se lamenta pelo sol que a fascina / Nem a crua

intempérie a extermina, / Nem a furiosa tempestade a move.

15 Trad.: Ou seja, se tranquiliza, ânimo, se encha de paciência que a solução está fora do seu

alcance. Nada se pode fazer, então, relaxa rapaz, <<não procure lutar>>.

(38)

“O tempo está suspenso em Havana” (2011), disseram Silvia e Heitor Reali, correspondentes da cidade, autores do texto “Para onde vai Cuba?”, publicado na sessão de viagem da Revista Planeta. Exatamente esse tempo busca-se capturar na

obra: o tempo esquecido, flutuante, desconhecido porque impermeável até então. No inicio de Inventario secreto de La Habana o narrador nos fala: “<<paseaba>> [...]

como si el tiempo no existiera y fuera realmente el dueño de mis actos.”18(p 17). Desde o princípio do livro nos sensibilizamos rapidamente ao plano onírico proposto pela narração. Como num sonho, a dimensão da temporalidade se esvai e o vazio deixado também pela distância entre narração e objeto narrado é preenchido pela imaginação. A obstinação de alcançar uma cidade inalcançável dá lugar a essa imaginação, que é afinal o único território conhecido e revisitado do poeta:

En aquellos años, como en estos, como siempre, prefería las respuestas de la imaginación, por horribles que fueran, que toda la precaria verdad, las dudosas razones de la lógica. Al final, la realidad siempre es peor.19 (p. 61)

Quando Abilio Estévez sai da ilha carrega consigo o olhar mediado e o contrapõe ao olhar inventado e imaginado. Do confronto nasce sua singular narrativa. O confronto ao qual me refiro não se trata de um discurso marcado de protestos, reivindicativo, permeado de queixas ou mágoas do lugar que ficou para trás, apesar de deixar entrever uma dose destes elementos, não é seu objetivo exaltá-los. A ironia e a crítica fina são a linha que tece seu discurso. O que narra é resultado dessa mistura de olhares que ainda é entrecruzado pelo deslocamento e

18 Trad.: Passeava [...] como se o tempo não existisse e eu fosse realmente o dono dos meus atos. 19 Trad.: Naqueles anos, como nesses, como sempre, preferia as respostas da imaginação, por

(39)

pela memória. Por isso, muito do seu potencial linguístico vai além do que se narra, sendo muitas vezes mais importante o próprio modo da narração.

A fluidez genérica da obra, então, contribui para um resgate marcadamente subjetivo, onde narrador, personagem e autor se revezam e se complementam na tentativa de inventariar uma cidade. Trata-se de um verdadeiro inventario20 de bens

culturais, coleções secretas capturadas do ponto de vista do deslocamento.

A obra tem o olhar voltado a maior parte do tempo para Havana, salvo em raros momentos (o início e o final da narrativa e outro perdido na metade da obra) nos quais o narrador opta por especificar bem o lugar geográfico em que se encontra: Barcelona. Até mesmo estes intervalos, entretanto, são motivo para reviver a outra cidade e o olhar mediado pelo deslocamento que se lança a ela é o responsável pela maneira distinguida como é retratada. Refiro-me ao sentimento de deslocamento que é estar na Espanha: o mesmo que vive quando está em Cuba ou em qualquer outra parte do mundo.

A distância física desperta um deslocamento subjetivo. O narrador, então, ao contrário do que se pensa de um sujeito que decide tematizar suas origens, não faz desse retrato um lugar comum. Ao recriar imagens, ao transpor paradigmas, abre espaço para um trabalho artístico da imaginação. O olhar saudosista, o sentido da perda irreparável, o indomável desejo de regresso à terra natal, bem como a sua exaltação desmedida, cedem lugar às histórias do “disse-me-disse” ou do “faz -de-conta”, isto é, histórias que pairam no âmbito familiar/ pessoal e no âmbito da

20 Segundo o Dicionário da Real Academia Espanhola trata-se de um levantamento de bens e

demais coisas pertencentes a uma pessoa ou comunidade, feito com ordem e precisão. Refere-se ainda ao papel ou documento onde estão escritas estas coisas. A objetividade e concretude a que

nos remete o significado da palavra “inventário”, então, se contrapõem ao caráter altamente subjetivo e abstrato com que a mesma é empregada no contexto da obra. Daí se explica também o paradoxo

(40)

imaginação, respectivamente. De forte iconicidade metafórica, portanto, é o seu discurso. Falar do mar, da espera, do corpo, da luz forte ou da ausência dela, por exemplo, funciona como verdadeiras metáforas que se conectam ao imaginário cubano.

Como sujeito deslocado, Estévez manifesta uma multiplicidade de identidades, nas quais não existe mais um único centro, mas sim múltiplos centros que lhe põem em uma condição de “entre dominios, entre formas, entre hogares,

entre lenguajes”, como bem descreve Aimee Bolaños (2010, p. 169) 21 Assim é que

tanto estando em Havana, quanto estando em Barcelona, a sensação de deslocamento é a mesma, como percebemos através das duas citações que seguem, respectivamente: “¿Qué haces cuando de pronto no entiendes por qué te hallas en una ciudad que no es la tuya, tan lejos de todo lo que fuiste y sigues siendo, como si hubieras entrado en el espectáculo equivocado?”22(p. 293)

Y la nueva realidad de la habitación hizo ostensible aquella especie de destierro en el que me sentía. ¿Y por qué digo destierro? ¿Por qué no puedo desembarazarme de un tufillo altisonante o autopiadoso? El diccionario de la Real Academia dice, más o menos, que destierro es una pena que consiste en expulsar a una persona de un lugar o territorio determinado. Dejando de lado la fabulosa ambigüedad de la palabra <pena>, ¿a mí quien me expulsó? ¿Y de dónde? ¿Por qué estoy lejos de La Habana, en Barcelona, en este sexto piso de la calle Valencia?23 (p.

295/296)

A condição de distanciamento constante acaba definindo o narrador da obra por essência e, desde este lugar não-lugar, constrói seu pertencimento em um

21 Trad.: entre domínios, entre formas, entre lares, entre linguagens.

22 Trad.: O que você faz quando de repente se encontra em uma cidade que não é a sua, tão longe

de tudo o que você você e continua sendo, como se tivesse entrado no espetáculo equivocado?

23 Trad.: E a nova realidade do quarto fez ostensiva aquela espécie de desterro em que me sentia. E

(41)

contexto de deslocamento. Assim, apesar de possuir uma residência e uma carreira já estabelecida tanto em Cuba quanto na Espanha, é como se habitasse e só encontrasse espaço de representação na viagem, vivendo os dois espaços

simultaneamente, desde longe, desde sua memória, desde sua invenção:

Semejante inmobilidad inauguró entre nosotros la otra tradición, la del peregrino inmóvil, de la que Lezama Lima sería el otro exponente insigne, esa variante del destierro que tanto encontraremos en nuestro siglo xx. Querer huir pero, estar preparado sólo para la huída mentirosa, la falsa y en el fondo más legítima huida de la poesia. Al parecer, no siempre exílio, destierro y lejanía son sinónimos de partida.24 (p. 263)

Posto isto, nos damos conta de uma constante que rege a vida do personagem/ narrador/ autor da obra em questão: a instauração de uma poética da distância,

como nos sugere Leonor Arfuch (2013), reveladora de uma nova condição subjetiva e literária, que confere ao autor e aos autores emergidos do exercício poético o que reconheço como uma espécie de empoderamento narrativo, resultante dessa

plasticidade performática de um autor em trânsito. Tal empoderamento se reflete até mesmo no nível da linguagem que possui para Abilio Estévez um valor estético. O gosto pelo o labirinto de histórias e a tendência pela lógica da complicação argumentativa levaram ao que a crítica veio a definir como uma espécie de Barroquismo literário.

Situo a escritura de Abilio Estévez neste cenário. Em entrevista concedida a Asunción Horno Delgado, o autor esclarece os motivos que o levaram a sair da ilha:

24 Trad.: Semelhante imobilidade inaugurou entre nós a outra tradição, a do peregrino imóvel, da que

(42)

“Yo creo que desde cierto punto de vista hacía tiempo que yo ya no

vivía en La Habana. (...) De algún modo yo ya no me sentia ya partícipe de lo que ahí ocurría. Bueno, yo nunca me sentí partícipe de lo que estaba ocurriendo allí, la verdad; pero cada vez me sentía más

excluido y vivía como más encerrado.”25 (ASUNCIÓN, 2006, p.154)

Impelido por esse mal estar local decide sair de Cuba depois do plebiscito instaurado em assembleia pelo Poder Popular em resposta ao “Projeto Varela”, elaborado pelos chamados dissidentes da Revolução. O resultado a favor da manutenção pelo Sistema é praticamente unânime e, quando questionado pelo representante do CDR (Comite de Defensa de la Revolución) por que havia sido o

único de sua circunscrição que não havia ido votar ele responde: “ya no tengo más nada que hacer aqui26.” (ASUNCIÓN, 2006, p.155) Esse evento, entretanto, é apenas o estopim, uma gota d’água em meio há quarenta anos de chamado “insilio”,

a sensação perpétua de estar exilado em sua própria terra.

Num primeiro momento nos perguntamos por que Barcelona como destino, ao invés de Miami, se consideramos os dois grandes êxodos cubanos em 1980, quando mais de 120.000 pessoas fogem pelo porto de Mariel e o verão de 1994, com a saída de milhares de balseros, com destino aos Estados Unidos, por exemplo. A

resposta a essa pergunta vai muito além de resoluções políticas como o próprio artista deixa entrever no desenrolar da entrevista: “Entonces pensé que Barcelona era la civilidad porque allí está la editorial, allí me apoyan”. (ASUNCIÓN, 2006, p.155) Além do fato de Tusquets estar próxima de onde reside em Barcelona, a cidade possui a acolhida que necessitava, é cosmopolita sem ser indiferente e

25 Trad.: eu acho que desde certo ponto de vista fazia tempo que eu já não vivia em Havana. (...) De

algum modo eu já não me sentia já parte do que ocorria aí. Bom, eu nunca me senti parte do que estava ocorrendo ali, na verdade; mas cada vez me sentia mais excluído e vivia mais enclausurado.

(43)

também tem a proximidade com o mar, um item que parece ser indispensável para todo cubano.

(44)

II - MEMÓRIA EM DESLOCAMENTO: Inventario secreto de La Habana

“Cuando hacemos memoria no sólo hacemos referencia a unos hechos objetivos, acontecidos en un pasado próximo o lejano, sino que rescatamos, en el presente, la significación de estos hechos y la

importancia que tienen, en nuestro discurso, en la actualidad (…)”.27

(Halbwachs, 1925)

2.1. O protagonismo da memória no discurso contemporâneo

Abordar o tema da memória constitui grande desafio, dada a dimensão das discussões e a profusão de autores que se debruçaram e se debruçam sobre a temática, nas mais variadas temporalidades e vertentes. Entendendo a impossibilidade de incluir todo um estudo de revisão crítica do tema, por uma questão de recorte metodológico, apresento a seguir, de maneira concisa, alguns pontos de reflexão sobre a memória que me permitirão uma aproximação à obra de Abilio Estévez, me atentando especialmente para aqueles temas que de alguma maneira são convergentes na obra estudada.

Em meio à decadência dos projetos históricos que conformam o nosso imaginário contemporâneo, assistimos ao florescimento do exercício da memória

como a valorização do ato de rememorar em si que, segundo Andreas Huyssen (2000), funciona como “antídoto” frente à decadência dos ideais de progresso que caracterizaram nossa modernidade. O passado passa a ser pilar e se constitui como referência de enunciação no tempo de instância da palavra: um passado que, sendo dito ou escrito, se faz presente no momento de realização da fala/ escrita.

27 Trad.: Quando produzimos memória não só fazemos referência à fatos objetivos, ocorridos num

(45)

O autor também nos fala de uma memória cultural, constituída não apenas por dados de arquivos ou pela historiografia tradicional, mas também pela memória contida nos vestígios, no que foi reprimido.

Para entender as ideias de Huyssen vale uma reflexão sobre a memória cultural, da qual também nos fala Jesús Martín-Barbero (2007). De acordo com Barbero essa memória é fruto de acontecimentos cotidianos que garantem o passado por uma via mais subjetiva, posto que emerge de trocas diárias de experiências. Ela a memória cultural é resultado de uma negociação que se dá entre a experiência do passado e a consciência do presente; um presente que se atualiza sem descartar o eco do vivido.

Segundo Zilá Bernd (2014), a memória cultural pertence à esfera do sensível e do simbólico e escapa ao registro hegemônico do poder. Ela possui, portanto um caráter polifônico e político.

Ao mesmo tempo, para Abil Trigo (2003) o retorno ao passado por meio da memória não se faz de forma nostálgica e nem como um acúmulo de memórias. Antes de ser compartilhada ela é digerida e processada pela vida comunitária para só então ser posta em circulação e dar continuidade ao processo permanente de construção identitária. (TRIGO, 2003, p.88-89)

(46)

cada um dos cinco sentidos e são responsáveis por completar os espaços deixados pelo esquecimento:

Do mesmo modo, conforme me agrada (grifo meu), recordo as restantes percepções que foram reunidas e acumuladas pelos outros sentidos. Assim sem cheirar nada, distingo o perfume dos lírios do das violetas, ou então, sem provar nem apalpar, apenas pela lembrança, prefiro o mel ao arrobe e o macio ao áspero. Tudo isto realizo no imenso palácio da memória. Aí estão presentes o céu, a terra e o mar com todos os pormenores que neles pude perceber pelos sentidos, exceto os que já esqueci. É lá que me encontro a mim mesmo, se recordo as ações que fiz, o seu tempo, lugar e até os sentimentos que me dominavam ao praticá-las. É lá que estão também todos os acontecimentos que recordo, aprendidos ou pela experiência própria ou pela crença no testemunho de outrem. (AGOSTINHO, 2011, p.223)

Se me atenho à reprodução considerável da obra de Santo Agostinho é para ressaltar o caráter poético de sua linguagem em relação ao significado para ele, do ato de rememorar. Em Agostinho o exercício da memória possui tanto o caráter involuntário (da invasão das lembranças por meio dos sentidos) quanto uma dimensão voluntariosa: “conforme me agrada” (AGOSTINHO, 2011, p.223). Sendo assim o autor manipula suas memórias e confere também uma dimensão criativa à sua arte de rememorar. Na metáfora do “Palácio da memória”, Santo Agostinho se torna soberano, sujeito de suas ideias: “Quando lá entro, mando comparecer diante

Referências

Documentos relacionados

Cabrujas é tão diretor que, sem perceber, trai a verossimilhança de sua própria obra de teatro realista quando, como fica plasmado no fragmento anterior, em lugar de

Este é o liame que utilizaremos para perpassar o trabalho, que tem fontes literárias muito maiores, compulsamos praticamente toda a poesia de Pablo Neruda e de Federico García

E segundo fui informado, o eram pela força e de pouco tempo para cá, e como por mim tiveram notícia de vossa alteza e de seu real grande poder, disseram que queriam ser vassalos

A presente dissertação tem como objetivo realizar um estudo sobre as expectativas e motivações dos estudantes do curso de graduação em Letras Português/Italiano (LPI)

Além das inúmeras considerações sobre a mulher, as quais possuíam uns caracteres peculiares por proceder de uma pessoa de seu mesmo sexo (PALACIO FERNÁNDEZ, 2002), a autora, em seus

Foi iniciada a preparação de um texto que servirá de base à apresentação do colóquio, sobre a parceria firmada entre o pintor-viajante francês François Biard, autor do

De um lado, a Teoria da Tradução, que, por meio de procedimentos técnicos de tradução e modalidades tradutórias, pretende, de certa forma, reconduzir o leitor

Trata-se, sobretudo, de uma “Veneza interior” (expressão de Proust retomada por Bizub em sua tese sobre a tradução proustiana), e que não deixa de ser uma expressão