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O PSICODIAGNÓSTICO: TEORIA E CIENTIFICISMO

6 Para maiores detalhes sobre os DORT, ver o texto em Anexos II: “Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT): teoria e desempenho”.

2.4 O PSICODIAGNÓSTICO: TEORIA E CIENTIFICISMO

"Diagnóstico", em sentido etimológico significa, "conhecer através de". Para TRINCA (1984), “Diagnosticar quer dizer discernir em um fenômeno aspectos, características e relações que compõem um todo, o conhecimento do fenômeno; este conhecimento é atingido através de processos de observações, avaliações, interpretações que se baseiam em nossas percepções, experiências, informações adquiridas e formas de pensamento" (p. 35).

Quando se fala em psicodiagnóstico estamos nos referindo genericamente a um procedimento de avaliação das condições psicológicas das pessoas. Na verdade; podemos afirmar que o procedimento psicodiagnóstico, a partir da definição do fenômeno psicológico a ser estudado, se organiza em função da abordagem teórico-metodológica, ao mesmo tempo em que delimita o campo da competência do psicólogo. Porém, há muitas maneiras de definir "psicodiagnóstico". Vejamos o que há de comum entre elas:

Para CUNHA, FREITAS e RAYMUNDO (1993), “Psicodiagnóstico é uma avaliação psicológica feita com propósitos clínicos (...), um processo científico, porque deve partir de um levantamento prévio de hipóteses (...),

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onde a testagem é um de seus principais recursos” (p. 3). Afirmam, também os autores:

"O psicodiagnóstico é um processo científico, limitado no tempo, que utiliza métodos e técnicas psicológicas (inputs), individualmente ou não, entendendo (...) os problemas, identificando e avaliando aspectos específicos, classificando o caso e prevendo seu curso possível, para comunicar resultados-(oü^tíís)." (p-9).

OCAMPO (1981) caracteriza o psicodiagnóstico como uma prática bem delimitada, cujo objetivo é "...obter uma descrição e compreensão o mais profunda e completa possível da personalidade do paciente ou do grupo familiar. (...) Abarca os aspectos pretéritos, presentes (diagnóstico) e futuros (prognóstico) dessa personalidade. (...) Uma vez obtido um panorama preciso e completo do caso, incluindo os aspectos patológicos e os adaptativos, trataremos de formular recomendações terapêuticas adequadas".

De uma maneira gerai, os principais autores na área da avaliação psicológica no Brasil (CUNHA, FREITAS & RAYMUNDO, 1993; WECHSLER & GUZZO, 1999) concordam que o psicodiagnóstico comporta geralmente uma série de elementos, dentre os quais:

- O contrato de trabalho: definição de responsabilidades entre cliente ou responsável e o psicólogo, estabelecendo os objetivos e o processo de psicodiagnóstico;

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- A duração do trabalho: no contrato deve ser dada um estimativa do tempo (número aproximado de sessões) que a avaliação vai exigir; - instrumentos: testes que serão utilizados no processo de avaliação; - O historial clínico: levantamento da história clínica e detalhamento

da queixa que gerou o processo de avaliação;

- As hipóteses: no final da avaliação, o psicólogo deve chegar a estabelecer hipóteses explicativas sobre o problema avaliado, de sorte que possa dar encaminhamento e sugestões de intervenção para o caso;

- prognóstico: o psicólogo deve dar uma previsão de possível curso que o caso vai tomar;

- comunicação dos resultados, informação sobre os resultados alcançados, que podem ser formatadas em laudo ou pareceres profissionais.

Dentre os principais finalidades do psicodiagnóstico, podemos, encontramos o seguinte elenco:

- Descritiva: consiste no perito (psicólogo, psiquiatra) detalhar a presença ou não de sinais de distúrbios psicopatológicos (não precisa fazer uso de testes, necessariamente);

- Classifícatória simples: consiste em dar o perfil psicológico do sujeito que resulta da aplicação dos testes, interpretados segundo normas dos mesmos;

- Avaliativa: consiste em identificar problemáticas psicopatológicas através de uma metodologia mais sofisticada. Esta avaliação é

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tipicamente feita por psicólogos e psiquiatras e visa um possível tratamento psicoterápico do caso;

- Preventiva: consiste na identificação precoce de problemas psicológicos no sujeito, fazendo uma avaliação dos aspectos positivos e negativos relacionados ao enfrentamento dos sintomas, dificuldades ou conflitos específicos por parte do sujeito (é chamada correntemente de triagem;

- Entendimento dinâmico: com base na teoria psicológica da personalidade, identificar problemas psicopatológicos;

- Classificatória nosológica: consiste na avaliação da incidência de descompensações psicopatológicas, objetivando classificá-las dentro de uma tabela de classificação psiquiátrica (por exemplo, o DMS);

- Forense: consiste na avaliação psicológica para fins judiciais, geralmente para determinar níveis de sanidade ou insanidade mental de réus;

- Prognóstica: avaliação psicológica para determinar o curso possível de um caso clínico.

Realizar um psicodiagnóstico é, de certo modo, obter um certo conhecimento, porém não em seu sentido social, como conhecemos as pessoas em situações informais. Além de supor naturalmente um "enquadre" mínimo (definido pela metodologia de acesso aos sujeitos, mediante um "contrato" entre a demanda por avaliação psicológica de uma parte e a oferta

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de um serviço especializado, de outra), o psicodiagnóstico, enquanto procedimento de avaliação psicológica; supõe o agrupamento coerente entre teoria, método e técnica, ou seja, trata-se de um conhecimento cientificamente orientado sobre o ser humano.

Uma das características básicas do conhecimento científico é o esforço em não se restringir à descrição de fatos separados e isolados, mas tentar apresentá-los sob o estatuto do contexto e do estado da arte das pesquisas relacionadas. O psicodiagnóstico presume a possibilidade de enriquecimento da nossa percepção sobre os problemas individuais, desde que lastreado cientificamente pelas exigências de investigação de fenômenos psicológicos experenciados coletivamente.

O conhecimento obtido pelo psicodiagnóstico é um conhecimento orientado pelas teorias psicológicas. Teoria entendida em seu sentido como o "conjunto organizado e coerente que integra um grande número de fatos e leis (...) mediante certas regras de combinação e dedução " (Granger, citado por RUSSELL, 1969; 292).

As teorias psicológicas são sistemas conceituais que podem nos ajudar a encontrar a inteligibilidade dos fenômenos do psicodiagnóstico, entendendo e interpretando, articulando e organizando, sintetizando e universalizando nossa experiência. Para isto é preciso contar com esta outra linguagem, diferente da linguagem comum. A linguagem comum é decisiva na organização de nossas experiências, e como em toda linguagem, implica que a diversidade dos fenômenos desapareça sob nomes que designam semelhanças aparentes. A linguagem comum agrupa os fenômenos a partir

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de semelhanças aparentes, enquanto a linguagem da ciência não procura nos fenômenos apenas a similitude, mas fundamentalmente a ordem: um dos elementos inerentes e indispensáveis da ciência é a criação de uma terminologia sistemática coerente:

"O que é feito inconscientemente na linguagem é conscientemente pretendido e metodicamente realizado no processo científico. A criação de uma terminologia sistemática e coerente não é, de modo algum, um aspecto acessório da ciência, e sim um de seus elementos inerentes e indispensáveis. Quando Lineu criou sua P/?//osop/7/a botanica, teve de enfrentar a objeção de que se tratava apenas de um sistema artificial, não natural. Mas todos os sistemas classificatórios são artificiais. A natureza, como tal, contém apenas fenômenos individuais e diversificados. Se colocarmos esses fenômenos em conceitos de classe e leis gerais, não estaremos descrevendo factos da natureza. Todo sistema é uma obra de arte - resultado da ação criativa consciente” (CASSIRER, 1994: 297).

Elaborar um sistema conceituai cuja ordem e coerência corresponda completamente à ordem da natureza é um velho sonho humano, sendo a ciência o limiar expressivo deste esforço milenar. Tentar conciliaF a palavra e a coisa equivale à busca da verdade, no sentido filosófico, algo que nunca se atinge, mas para o qual se orienta permanentemente o conhecimento humano.

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Em todas as ciências, como na Psicologia, são criados modelos abstratos, formulações lógico-hipotéticas, que- unem-se em uma relação de analogia com os objetos do conhecimento. Historicamente, um dos primeiros modelos de que se serviu o psicólogo para orientar a atividade psicodiagnóstica foi o modelo médico. A medicina, aliás, é a área de origem onde surgiu o termo "diagnóstico", tal como assinala SEMINÉRIO (1977):

"Em sua área de origem, a medicina, o sentido de diagnóstico liga-se sistematicamente á explicação de manifestações patológicas, à qual se chega "através de" sintomas observáveis (diagnóstico) que, por sua vez, permitem prever evolução e conseqüências (prognóstico)" (p. 55).

De forma moderna, o modelo de diagnóstico médico é definido por DOR (1991) da seguinte mgneira:

"Na clínica médica, o diagnóstico é, antes de tudor um ato que obedece a duas funções. Trata-se, em primeiro lugar, de efetuar uma discriminação baseada na observação de certos sinais específicos (semiologia). Em segundo( trata-se de pôr em perspectiva o estado patológico assim especificado, em relação a uma classificação devidamente codificada (nosografia). (...) o arsenal de investigação que se desdobra simultaneamente em duas orientações complementares: uma investigação anamnésica destinada a recolher os fatos comemorativos da enfermidade; uma investigação "montada" centrada

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sobre o exame direto do paciente por meio de mediadores instrumentais, técnicos, biológicos, etc. Essa dupla investigação çolige o conjunto das informações necessárias para definir o perfil especificamente isolável da afecção patológica"(p. 49).

Ao situar o modelo do psicodiagnóstico ao longo da história da Psicologia, OCAMPO (1981) afirma:

"O psicólogo trabalhou durante muito tempo com um modelo similar ao do médico clínico que, para proceder com eficiência e objetividade toma a maior distância possível em relação a seu paciente a fim de estabelecer um vínculo afetivo que não lhe impedisse de trabalhar com a tranqüilidade e a objetividade necessárias" (p. 14).

Tradicionalmente, o processo psicodiagnóstico era considerado "a partir de fora", como uma situação em que o psicólogo atuava como alguém que aprendera o melhor possível a aplicar testes psicológicos. De outro ponto de vista, "a partir de dentro", o psicólogo sentia sua tarefa como o cumprimento de uma solicitação com as características de uma demanda a ser satisfeita seguindo os passos e utilizando os instrumentos indicados por outros (psiquiatra, psicanalista, pediatra, neurologista, etc).

Grande parte dos problemas relacionados à carência de instrumentos psicológicos válidos em nossa realidade se deve a essa postura de cumpridor de tarefas por parte dos psicólogos A história da avaliação psicológica no

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Brasil nos mostra que, fora algumas exceções, o psicólogo manteve uma distância acentuada da pesquisa e do tratamento adequado das informações geradas pelos diversos tipos de psicodiagnóstico realizados.

O psicodiagnóstico, ao se apoiar em dados empíricos, embora nem sempre controláveis, resulta de uma avaliação objetiva, de acordo com o sistema de representação conceituai que se trabalha (relação linguagem- teoria). Diferentemente do modelo médico, a atribuição de causalidade psíquica aos sintomas procede de outras vias que não necessariamente as cadeias habituais de causas e efeitos (doença orgânica, variações químicas do organismo), ainda que se possa identificar e prever a evolução de uma patologia. Porém, em psicologia, é difícil verificar uma organização estável entre a natureza das causas e a dos efeitos.

A identificação de "elementos estáveis" no curso de um psicodiagnóstico requer o concurso de alguma orientação teórica através da qual a diversidade das manifestações dos sintomas do sujeito é percebida mediante certa ordem. Dito de outro modo, o examinador deverá "apoiar-se em certos princípios e procurar os fatos", sendo que os eventos por ele observados devem ser concebidos não como uma realidade intuída, que se oferece imediatamente à percepção, mas como realidade instruída, identificada a partir de um modelo que, como uma "rede", é aplicada pelo especialista sobre os eventos, revelando-se alguma inteligibilidade, a possibilidade de um sentido.

A noção de estrutura, por exemplo, é útil para fazermos distinções. Pode-se considerá-la um instrumento do pensamento com o qual organizar a

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percepção (e descrição) do que se passa num processo diagnóstico. Com esta chave, podemos antecipar, sob a expressão diagnóstico estrutural a noção de que constitui uma totalidade, em que as partes formam um sistema de relaçõesMerdependentes.

O conjunto das respostas numa prova do Rorschach, por exemplo, pode e deve ser considerada sistematicamente. Não são apenas palavras aleatórias, casuais; devem ser reconhecidas formando redes discursivas. O sentido que pode emergir das possibilidades combinatórias traduz uma síntese de uma totalidade-(personalidade); da dinâmica dos processos associativos imediatamente ligados à realidade interna e externa ao sujeito, tal como a noção de estrutura faz supor. Por isso que; nos testes de personalidade, o sentido das respostas está na organização da rede de significados da qual pertencem-outros sujeitos, com percepção e-atribuição de significados semelhantes ou bastante diferenciados.

Quando consideramos o conteúdo da própria interpretação do especialista, sua síntese diagnostica, (tal como sugere o termo síntese), também não pode contemplar apenas aspectos parciais da personalidade do sujeito. A percepção do psicólogo deve se orientar para o jogo de oposições, equilibrações, compensações - os dinamismos - da personalidade. Um item de agressividade deve despertar a atenção do intérprete para seu contrário, os momentos em que o sujeito sugeriu o uso de mecanismos defensivos, recuperando o controle. Uma possível polarização assim reconhecida deve ser confrontada com outras semelhantes, - e não apenas com base no registro das respostas do sujeito, mas considerando-se as indicações de

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outros níveis da relação com o intérprete, sua postura, seu comportamento verbal, sua história clínica, a forma que estabelece seus contatos sociais, etc. A síntese de um psicodiagnóstico espelha a sensibilidade do intérprete; é um desafio em que a habilidade-em retratar o sujeito humano desempenha um papel vital. Dispor de inclinações intelectuais voltadas para o assunto é uma condição fundamental para o bom intérprete.