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O recurso extraordinário como instrumento de aplicação de precedentes

CAPÍTULO 2 – RECURSO EXTRAORDINÁRIO: INSTRUMENTO DE

2.2. Conceito e função do recurso extraordinário no sistema vigente

2.2.4. O recurso extraordinário como instrumento de aplicação de precedentes

Para delimitar o sentido de precedente no Direito brasileiro, a princípio, não podemos confundi-lo com processo, na qualidade de instrumento criado pela Jurisdição para a pacificação social. Tampouco, um precedente não pode ser confundido com um instrumento processual que o aplica. De fato, um processo pode possuir uma pluralidade de precedentes, e, até mesmo, um único precedente pode ser formado por uma pluralidade de processos.

De acordo com Caio Márcio Gutterres Taranto, “os precedentes, em uma visão funcional, consubstanciam o instrumento mediante o qual o magistrado atribui racionalidade a uma certa decisão quanto à matéria de direito. Logo, o precedente, apenas, existe no contexto de uma decisão que expõe o conhecimento pré-constituído ao qual ele (o precedente) atua como veículo ou em manifestações outras aptas a provocar, de forma direta ou indireta, a decisão do Poder Judiciário em dado sentido, como em uma contestação, em um parecer do Ministério Público ou em uma contrarrazão” (TARANTO, 2010, p. 6).

Nesse contexto, o mesmo autor define precedente judicial como “o instrumento mediante o qual o Poder Judiciário, como instituição e no exercício da Jurisdição Constitucional, edita normas jurídicas a serem aplicadas em decisões posteriores, atribuindo-lhes racionalidade na medida em que o julgador expressa as razões de decidir” (TARANTO, 2010, p. 8).

O recurso extraordinário, sobretudo após a edição da Emenda Constitucional nº 45/2004, e também da Lei nº 11.418/2006, conforme veremos mais à frente, atua na qualidade de instrumento de aplicação de precedentes

judiciais quando da defesa do ius in thesi, na medida em que se desenvolve em torno da diferença de aplicação da lei federal ou de uma norma constitucional pelos diversos tribunais pátrios contribuindo para a uniformização da jurisprudência em sentido amplo.

Na experiência brasileira, a atribuição da função uniformizadora foi fixada ao Supremo Tribunal Federal em 1926, provocada pelo estado caótico e conflitante em que se encontrava a jurisprudência dos tribunais estaduais e federais. Assim, o artigo 60, § 1º, alínea c, da Carta de 1891, tratou da possibilidade de recurso ao Supremo Tribunal Federal quando dois ou mais tribunais locais interpretassem de modo diferente a mesma lei federal, podendo o recurso ser, também, interposto por qualquer dos tribunais referidos ou pelo Procurador-Geral da República.

Como bem leciona Caio Márcio Gutterres Taranto, ao citar Rodolfo Camargo Mancuso, o recurso extraordinário, espécie do gênero recurso excepcional, “identifica-se pela impossibilidade de admissão pela simples alegação de injustiça do julgado, má apreciação da prova ou errada interpretação do contrato ou da manifestação de vontade [...]. [...] os acórdãos divergentes que atuarão na qualidade de paradigmas, e o recorrido, trazidos à colação, terão que se referir à exegese de um mesmo texto de lei federal ou constitucional. [...] o recurso não será admitido se os textos em confronto forem diversos, na medida em que não se terá uma questão federal ou constitucional, apenas existindo dissídio quando são diversas as soluções sobre a mesma questão e não quando há soluções idênticas para questões diferentes” (TARANTO, 2010, p. 269).

Essa característica uniformizadora do recurso extraordinário é evidente perante a redação do artigo 102, inciso III, da CRFB, sobretudo agora com a inserção do parágrafo 3º, que introduziu o requisito da repercussão geral para sua prévia admissibilidade, fortalecendo, ainda mais, a força dos julgados precedentes.

Várias disposições foram estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal a respeito do manuseio desses instrumentos, dentre elas a fixação de que, para o conhecimento do recurso extraordinário, o Pretório Excelso não possa ter firmado orientação no sentido da decisão recorrida (Verbete n. 286). O mister uniformizador dos tribunais de superposição por força dos recursos excepcionais foi tema de especial indagação no Agravo Regimental nos Embargos de

Divergência no Recurso Especial nº 228.432, relator Ministro Humberto Gomes de Barros, publicado em 18 de abril de 2002, cuja ementa merece ser reproduzida:

“O Superior Tribunal de Justiça foi concebido para um escopo especial: orientar a aplicação da lei federal e unificar-lhe a interpretação, em todo o Brasil. Se assim ocorre, é necessário que sua jurisprudência seja observada, para se manter firme e coerente. Assim sempre ocorreu em relação ao Supremo Tribunal Federal, de quem o STJ é sucessor, nesse mister. Em verdade, o Poder Judiciário mantém sagrado compromisso com a justiça e a segurança. Se deixarmos que nossa jurisprudência varie ao sabor das convicções pessoais, estaremos prestando um desserviço a nossas instituições. Se nós – os integrantes da Corte – não observarmos as decisões que ajudamos a formar, estaremos dando sinal para que os demais órgãos judiciários façam o mesmo. Estou certo de que, em acontecendo isso, perde sentido a existência de nossa Corte. Melhor será extingui-la”.

Paradoxalmente, o Supremo Tribunal Federal, por força da Súmula n. 369, fixou a impossibilidade de utilização de recurso extraordinário quando os precedentes paradigmas forem oriundos do mesmo tribunal, na medida em que o pressuposto constitucional era a interpretação divergente com outro tribunal ou com o próprio Supremo. Sendo assim, em primeiro momento, a função uniformizadora do direito constitucional compete a todos os tribunais regionais, que deverão fazer uso do incidente de uniformização de jurisprudência previsto no Código de Processo Civil.

Ainda assim, é patente a transformação do recurso extraordinário em mecanismo de uniformização de jurisprudência, e, por que não falar, também em instrumento de efeito vinculante. É o que se observa na Emenda Regimental nº 12/03 do Supremo Tribunal Federal, que, ao regulamentar o art. 14 da Lei nº 10.259/2001 (dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal), dispõe em seu § 5º, incisos I, VI e VII,:

“§ 5º. Ao recurso extraordinário interposto no âmbito dos Juizados Especiais Federais, instituídos pela Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, aplicam-se as seguintes regras:

I – verificada a plausibilidade do direito invocado e havendo fundado receito da ocorrência de dano de difícil reparação, em especial quando a decisão recorrida contrariar Súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, poderá o relator conceder, de

ofício ou a requerimento do interessado, ‘ad referendum’

do Plenário, medida liminar para determinar o sobrestamento, na origem, dos processos nos quais a controvérsia esteja estabelecida, até o pronunciamento desta Corte sobre a matéria;

[...]

VI – eventuais recursos extraordinários que versem idêntica controvérsia constitucional, recebidos subseqüentemente em quaisquer Turmas Recursais ou de Uniformização, ficarão sobrestados, aguardando-se o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal;

VII – publicado o acórdão respectivo, em lugar especificamente destacado no Diário da Justiça da União, os recursos referidos no inciso anterior serão apreciados pelas Turmas Recursais ou de Uniformização, que poderão exercer o juízo de retratação ou declará-los prejudicados, se cuidarem de tese não acolhida pelo Supremo Tribunal Federal”.

Caio Márcio Gutterres Taranto (2010) indaga sobre a necessidade de um provimento de urgência na hipótese do inciso VI, que trata dos recursos extraordinários ainda não ajuizados, mas identificáveis pelo objeto, uma vez que a simples vinculação à orientação firmada pelo Pretório Excelso, no julgamento do recurso extraordinário que serve de parâmetro, já seria suficiente para garantir a uniformização dos futuros julgados.

Com efeito, esses dispositivos não merecem ser interpretados despojados do conteúdo decisório do recurso extraordinário de “efeito vinculante’, pois representaria excluir-lhes força normativa, o que manteria o regime antigo dos recursos excepcionais. Trata-se, pois, de mecanismo de simplificação do procedimento, pelo uso de “precedente vinculante monoprocessual ou pluriprocessual, sumulado ou não” (TARANTO, 2010, p. 191), tendo-se em vista que a decisão, ao menos em parte, da questão constitucional, é decidida pelo Pretório Excelso, evitando-se, assim, a continuidade dos demais recursos até a mais alta Corte e instância recursal.

Observa-se, portanto, que a utilização desse complexo instrumento produz efeito vinculante para o recurso extraordinário em relação aos processos sobrestados pelo provimento de urgência, seja autônomo ou incidental, mesmo que não ajuizados, mas identificáveis pelo objeto, nos termos da medida cautelar.

Todavia, produz efeito meramente persuasivo ou impeditivo de recurso para os

processos não sobrestados, caso já ajuizados, e para os não identificáveis pelo teor do provimento de urgência.

A despeito de a dogmática jurídica haver confeccionado a assertiva de que o julgamento oriundo de recurso extraordinário tem eficácia apenas entre as partes, despojado de vinculação, com o fundamento de consubstanciar instrumento do controle incidental, não concentrado, de constitucionalidade, é fato que tal orientação vem sofrendo profundas mudanças pela jurisprudência de nossos tribunais e também pelo legislador nacional. A maior delas, no entanto, ficou reservada ao instituto da repercussão geral, cuja análise passamos a efetuar nos capítulos seguintes do presente trabalho.

CAPÍTULO 3 – A TRAJETÓRIA BRASILEIRA EM BUSCA DO