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O regime militar (1964-1984), a Igreja e as CEBs

CAPÍTULO I ORIGEM DAS CEBs NO BRASIL

1.3 O regime militar (1964-1984), a Igreja e as CEBs

Do exposto anteriormente, vale dizer que ao longo das décadas de 50 e 60 houve um deslocamento de alguns setores da Igreja e de parte do laicato em direção ao movimento das classes populares no país. Esse deslocamento vai juntar-se às outras forças sociais que implementam mudanças sociais. Intensificam-se a participação popular e a articulação de trabalhadores em sindicatos no meio rural e no meio urbano por todo o Brasil. Movimentos sociais reivindicam mudanças de base, como por exemplo, a reforma agrária e outros direitos básicos da cidadania. Diante desses fatos, as forças mantenedoras da ordem, vendo-se ameaçadas, não tardaram a se manifestar, aliadas a outros fatores da conjuntura nacional e internacional arquitetam o golpe de 1964. Ele não foi apenas uma efêmera intervenção das forças armadas nas atividades do governo, mas, como enfatiza Teixeira (1988), um “movimento de classe, estrategicamente e cuidadosamente desenvolvido em direção a uma contenção das forças populares” (p.177).

O que interessa enfatizar aqui é que, com o golpe militar, se promove uma desarticulação das pastorais populares e dos movimentos populares desenvolvidos nas duas décadas anteriores. As “elites” políticas e econômicas movimentam-se na direção dos interesses de sua classe. Com o regime militar e a aplicação do Ato Institucional (AI) nº. 5, de 1968, ocorre o fechamento do Congresso e toda a repressão que se seguiu, a Igreja, historicamente ambígua em suas posições políticas, se divide.

Ainda que a Igreja tenha sido atingida pelo regime militar, alguns acontecimentos externos favoreceram seus setores mais progressistas. Dois dentre eles são decisivos: o Concílio Vaticano II (1962-1965) e a Conferência Episcopal Latino — Americana em Medellín, Colômbia (1968). Esta última além de ser uma tradução e adequação das diretrizes do Concílio foi decisiva para o desenvolvimento da Teologia da Libertação – fonte de reflexão e rearticulação da pastoral popular no contexto de uma sociedade onde as organizações populares encontravam-se reprimidas pelo regime38. A

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O denominado popularmente “Medellín”, para indicar a Conferência de 1968, foi sem sombra de dúvida o acontecimento mais relevante impulsionador de uma “Igreja Popular”, da “Teologia da Libertação” e das “Comunidades Eclesiais de Base”. Anedoticamente, narra-se que na época em que o documento foi popularizado no Brasil, agentes de segurança do regime militar queriam saber “onde se encontrava este tal de “Medellín”, pois era necessário eliminá-lo, uma vez que causava “ameaça” ao regime. De fato, o grande valor do evento Medellín para a Igreja Católica refere-se ao fato de ter reconhecido a situação de miséria e os desequilíbrios estruturais do Continente: o subdesenvolvimento, miséria, colonialismo externo e interno, marginalização e violência institucionalizada. O evento foi estratégico também no apontar caminhos de libertação e uma forma de presença mais ativa na Igreja por

falta de liberdade política impedia a organização de canais alternativos de participação política da população em defesa de seus interesses. Os setores progressistas da Igreja assumiram a causa dos marginalizados. Além disso, a Igreja, por toda parte do país, cedeu espaço físico para encontro e discussão de práticas democráticas e de apoio e abrigo a diversas lutas. Era um dos canais possíveis de participação aberta à população.

Sem a menor dúvida, a Igreja desse período foi importante para a rearticulação da pastoral e do movimento popular que viria a contestar o regime e apontar para o processo de democratização do Estado e da Sociedade Brasileira nas décadas seguintes. A instituição eclesiástica não se posicionava monoliticamente frente ao regime ditatorial. São segmentos, setores da Igreja progressista que estabelecem aliança estratégica com setores da organização popular, ou seja, constituem-se nesta conjuntura, dois sujeitos políticos agindo no enfrentamento de um inimigo comum, o regime ditatorial. Eles foram decisivos na oposição crítica, nas denúncias de práticas de um Estado de exceção, no progressivo enfraquecimento do regime e no engendramento de novos sujeitos políticos no interior da sociedade civil e política.

Pensando esse contexto histórico no cenário da cidade e diocese de Lages, Munarim (1990) lembra que Lages continua a ter como Bispo Diocesano (até 1973), Dom Daniel Hostin. Em que pese a presença já significativa, embora discreta dos bispos coadjutores – primeiro dom Afonso Niehues com ares de quem participou do Concílio Vaticano II e depois Dom Honorato Piazzera com postura de democratização das decisões administrativas – a Igreja Católica na Diocese de Lages não evoluiu naquele sentido político marcado pela Ação Católica Brasileira no âmbito nacional. Ao contrário, enfatiza esse autor, todo o clero, sem exceção, orientado pela hierarquia, posiciona-se firmemente a favor do golpe militar de 64 e pregava a favor da “marcha da família com Deus pela liberdade”. Pregava o anti-comunismo a uma população de fiéis sem condições objetivas e subjetivas de sequer entender o significado histórico do comunismo. Sequer a Pastoral Popular, a partir de Medellín, consegue soprar ventos até a Diocese de Lages (p.124). Munarim (idem) registra uma exceção no meio do Clero neste período, o pe. Dilmar Antônio Sell, cuja ação foi marcada por forte oposição ao regime vigente.

É no contexto de divisão da Igreja Católica frente ao regime e de aliança do seu campo progressista com organizações sociais populares que comparecem em cena as

todo o contexto latino-americano através da “opção pelos pobres” e a opção pelas Comunidades Eclesiais de Base.

Comunidades Eclesiais de Base. Na ausência dos “corpos sociais intermediários” como se designava na época, este corpo organizado que articula sociedade e governo, a Igreja já vinha trabalhando a partir de meados da década de 60 e 70 por todo o Brasil, com as suas Comunidades Eclesiais de Base39. Exemplo mais clássico são as CEBs de São Paulo que funcionaram como células dos movimentos de bairro. A partir de reivindicações locais, dois movimentos ganharam amplitude nacional, como o Movimento de Custo de Vida e o Movimento contra a Carestia. O primeiro, quando se traduziu em campanha popular, obteve mais de um milhão de assinaturas, apostas em

documento entregue ao Governo Federal. Teixeira (1988) conclui apontando dois fatores muito importantes para a criação

de um espaço propício ao nascimento das CEBs: o primeiro refere-se “aos sinais de uma Igreja em plena renovação que, a partir de início de 60, iniciou um processo de deslocamento em direção aos setores populares” (p.181). Esse processo é favorecido pelo impulso do movimento popular, em plena ascensão durante este período. O outro fator “foi a crise de 1964 e suas conseqüências para dentro da Igreja” (p. 181). Todos os acontecimentos posteriores ao golpe militar foram de decisiva importância para a tomada de consciência de setores da Igreja e a organização dos setores populares.

A questão dos direitos humanos foi outro elemento que impulsionou a Igreja no sentido da tomada de posição em favor dos denominados na época por “empobrecidos”. Na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil — CNBB —, ao longo da década de 1970, constituiu-se um bloco de bispos inclusive da mais alta hierarquia, classificados politicamente de “progressistas” por não se conformarem com o regime e com o desrespeito aos direitos humanos40. Alguns deles, como o Cardeal Paulo Evaristo Arns, Cardeal Aloísio Lorscheider, o bispo Cláudio Humes acessaram as prisões, denunciaram torturas praticadas com presos políticos, apoiaram movimentos grevistas, estiveram em defesa de desempregados e se empenharam pelo retorno ao Estado de direito. Alguns outros radicalizaram suas ações junto aos índios, trabalhadores rurais

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Em 1975 participei do I° Encontro Intereclesial realizado em Vitória, Espírito Santo. Saímos de Lages, numa Kombi Wolkswagen, em nove pessoas, levando na bagagem algum alimento e desejo de participar. Durante os dias de encontro fomos acolhidos por famílias pobres habitantes das periferias de Vitória. O encontro revelava o contexto da época: a efervescência das CEBs denunciando o regime e discutindo formas de engajamento na organização popular para garantia dos direitos sociais, econômicos e políticos.

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A partir do conflito de posições ou controvérsias entre os bispos na CNBB, a mídia nacional, quando fazia referência ao fato, classificava de Igreja progressista e Igreja conservadora. Neste texto mantenho esse tratamento: Igreja progressista para indicar o setor da Igreja que age na perspectiva das mudanças na sociedade, preocupada com o engajamento social e político dos católicos. Comprometida com os setores populares. E, Igreja conservadora para indicar o setor alinhado às diretrizes de Roma e às elites do poder político e/ou econômico.

sem terra, posseiros, como Dom Tomaz Balduino e o caso emblemático do bispo Pedro Casaldáliga. Em Santa Catarina, neste período, passou a ser referência da “Igreja progressista” Dom José Gomes. Além de presidente nacional do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, foi presidente nacional e estadual da Comissão Pastoral da Terra, de organizações em defesa dos povos indígenas e do campesinato brasileiro.

Para finalizar, recolho um testemunho emblemático revelador de como sujeitos vinculados à Igreja se movem na direção dos pobres e como as CEBs emergem e recebem impulso:

Minha vinda para o Acre, o contato direto, especialmente nas nascentes Comunidades Eclesiais de Base, com o povo simples, pobre, injustiçado; a ajuda insubstituível de padres amigos e muito sensíveis e extremamente evangélicos; a confiança em mim depositada pelas vítimas dos problemas de terra que começaram, em 1973, a se agudizar41. Neste campo, fatos bem concretos levaram-me a tomar uma posição: ou assumia a causa dos pobres ou negava minha missão e mesmo minha própria fé. Nunca esqueço da frase de um velho com mais de 80 anos: ‘Se eu tivesse sua idade, já estaria lá’. Referia-se a um lugar de conflito que eu, esperando pelas promessas do secretário de segurança da época, estava demorando demais para visitar”. [Entrevista de Dom Moacir Grecci concedida a Helena Salen] apud TEIXEIRA (1988, p. 184).

O catolicismo das Comunidades Eclesiais de Base entra em cena na década de 1960. Com se viu, não caiu do céu. É corolário de diferentes fontes e afluentes: do contexto histórico, sócio-cultural e eclesial brasileiro nas vertentes do catolicismo popular e romano; das experiências e movimentos que grassaram especialmente pelo nordeste e depois se amplificaram pelo país, nos anos de 1940 a 1960; o golpe de 1964 com suas trágicas conseqüências estimulam o movimento de setores importantes da Igreja na direção das classes populares e o movimento destas na direção da Igreja. Nesse sentido as CEBs se originam de um contexto social dramático e que estes setores da Igreja classificaram como de “empobrecimento”, numa referência às condições de vida da maioria da população latino-americana.

Em síntese, do ponto de vista da conjuntura interna, aquela situação foi decisiva na retomada da organização popular em defesa dos direitos básicos de vida por parte dos segmentos sociais populares. A repressão política e o desrespeito aos direitos humanos estimularam profundo comprometimento da maior parte dos segmentos da Igreja Católica progressista colocando-se com o espaço físico, de expressão, vivência da fé articulada com a política e de elaboração de um projeto que se opunha ao projeto

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Note-se que a Comissão Pastoral da Terra no Brasil se organiza em 1975 em Goiânia. Entre outros, encontrava-se D. Moacir Grecci.

hegemônico da época. Por último, na conjuntura externa, a influência de um contexto de Igreja mais amplo, impulsionado e orientado pela doutrina e Diretrizes Pastorais do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, levou a Igreja a um processo de renovação no país.