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O Retorno do Cavaleiro das Trevas

No documento Rodolfo Grande Neto - José Miguel Arias Neto (páginas 105-108)

Capítulo III Construções Narrativas

3.2 O Retorno do Cavaleiro das Trevas

Quando Frank Miller assumiu a missão de criar sua versão própria do Batman, o autor optou pelo título The Dark Knight Returns (O Retorno do Cavaleiro das Trevas); esse suposto retorno não se refere apenas à volta que se estabelece dentro do roteiro, quando o Batman volta a atuar depois de anos afastado do “cargo”, mas também um retorno propriamente dito ao Batman dos primeiros anos, caracterizado a partir do trabalho de Bob Kane e Bill Finger. Um Batman sombrio, violento e que está em total discordância com a lei vigente. Contudo, não se trata de um Batman que é uma cópia ou meramente um resgate daquele Batman anterior, ainda que seja possível identificar algumas linhas de continuidade, principalmente, a partir do fato de que o autor decide escrever um Batman com quase sessenta anos, como se aquele Batman dos anos 1930 tivesse voltando a ativa em plena década de 1980.

Enquanto o Batman de Jerry Robinson sorria para as aventuras de um adolescente fantasiado, o Batman da série de TV dançava ao som dos Beach Boys e o Batman de Neal Adams trabalhava cooperando diretamente com a polícia de Gotham como um herói sombrio, o Batman de Frank Miller se coloca do lado oposto ao da lei, sendo um justiceiro implacável acima do bem e do mal, pronto para ser ele mesmo juiz, júri e executor embora, é sempre válido lembrar, o Batman não mate – mesmo o de Frank Miller.

O Batman construído por Frank Miller versa bastante sobre o mundo sombrio e flerta diretamente com o medo advindo das trevas, com aquilo que não se pode ver ou que está além do racional. O Cavaleiro das Trevas é um personagem coerente com o terror crescente no Ocidente: o medo da ameaça nuclear, a incerteza dos novos tempos, a ameaça ao estilo de vida americano pelo terror comunista. Tal processo é analisado pelo historiador Eric Hobsbawm:

106 O aumento da violência em geral faz parte do processo de barbarização que tomou força no mundo desde a Primeira Guerra Mundial e que focalizei em outros trabalhos. Seu progresso é particularmente notável nos países com Estados fortes e estáveis e instituições políticas liberais (em teoria), em que o discurso público e as instituições políticas distinguem apenas dois valores absolutos mutuamente excludentes – a “violência” e a “não violência”. Essa foi uma outra forma de estabelecer a legitimidade do monopólio da força coercitiva por parte do Estado nacional, que acompanhou o desarmamento da população civil nos países desenvolvidos do século XIX, com exceção dos Estados Unidos, que, por conseguinte, toleraram um grau maior de violência na prática, embora não em teoria. Desde o final da década de 1960 os Estados perderam em parte esse monopólio de poder e de recursos e perderam também algo mais do sentido de legitimidade que faz com que os cidadãos respeitem a lei. Isso basta para explicar em grande parte o aumento da violência.233 O aumento da violência está constantemente relacionado ao crescimento das sensações de medo, de incerteza e das inseguranças sociais; e, pode ter como causa, o enfraquecimento das instituições tradicionais, do sistema de modo de produção ou mesmo do esfacelamento de um ideal teleológico que vislumbre, ainda que de maneira tacanha, um tipo de futuro. O Batman de 1980 é, por essa via, um emblema dessa sociedade que lida diretamente com o medo e com violência que ameaçam sua propriedade fundamental, o direito de existir.

Em entrevista, Frank Miller discorre sobre o papel de seu Batman para a história dos quadrinhos e como ele se encaixa em um momento de produção específico:

Se formos para a História por um momento, o que fez os super-heróis impotentes foi a censura, com o medo de grupos pressionando, a indústria adotando o código de autocensura. O código insiste em um mundo em que os quadrinhos passam em um mundo benevolente onde a autoridade está certa, policiais não aceitam suborno, nossos políticos eleitos sempre servem nossos interesses, e pais são sempre boas pessoas. Eles não cometem erros. O mundo em que vivemos não se assemelha ao mundo dos censores. Eu simplesmente coloquei Batman, essa força sobrenatural, em um mundo mais parecido com o que eu conheço. E o mundo que eu conheço é aterrorizante. Eu não acho que o Cavaleiro das Trevas seja pessimista, porque o bonzinho vence.234

O trabalho de Frank Miller não pode ser encarado como um tratado filosófico, mas como o manifesto em defesa de um estilo de vida, significativo das angústias e necessidade de uma parcela da população que é constantemente encharcada com o discurso neoliberal vigente da época. Não se tratava, é verdade, de uma crítica isolada, já que o debate e a crítica à sociedade americana do final do século XX encontram ecos em

233 HOBSBAWM, Eric J. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras,

2007, p 125.

234 SHARRETT, Christopher. Batman and the Twilight of the Idols: An Interview with Frank Miller,

Christopher Sharrett. In: Pearson, Roberta E., and William Uricchio. Many More Lives of the Batman. New York: Routledge, 2015. p. 37.

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obras como Watchmen de Alan Moore,235 que questiona o medo nuclear durante a Guerra

Fria ou trabalhos cinematográficos como Rambo – Programado Para Matar,estrelado por Sylvester Stallone e dirigido por Ted Kotcheff.

O filósofo norte-americano Douglas Kellner, ao descrever Rambo, faz uma análise que, por analogia pode ser estendida ao Batman de Frank Miller:

[...] Rambo é um antiburocrata inconformista que se opõe ao Estado; é o novo ativista individualista (Berman, 1984: 145). Portanto, Rambo é um herói da economia de oferta, figura do empreendedor individualista, que mostra até que ponto a ideologia reaganista é capaz de assimilar emblemas contraculturais, mais ou menos como o fascismo conseguia fazer uma "síntese cultural" de ideologias nacionalistas, primitivistas, socialistas e racistas (Bloch, 1991 [1935]).236

O Batman de O Cavaleiro das Trevas não era um cavaleiro ligado às demandas sociais, como o Arqueiro Verde da dupla Adams/O’Neil, mas um liberal, com pitadas do

objetivismo da filósofa libertária Ayn Rand237 e de uma boa dose de self-made man ao

mesmo estilo de seu idealizador, Frank Miller.238 O Batman caracterizado por Miller

desacreditava ou ignorava as instituições e mais, não aceitava intervenções naquilo que ele considerava seu território – no caso, toda a Gotham City. Para isso, ele não poupa o uso da violência e da intimidação para conseguir seu objetivo, a saber: evitar a decadência de Gotham City pelo afastamento dos elementos que, do seu ponto de vista, poluíam aquele espaço. Essa relação do espaço urbano que precisa ser limpo a partir do combate a criminalidade é um argumento recorrentemente utilizado para justificar o emprego de medidas de autoritarismo e violência contra a população. Como observado no primeiro capítulo da dissertação, as experiências de Frank Miller com a criminalidade em Nova York causaram certa revolta no autor e isso acaba aparecendo em várias de suas obras como em Sin City – A Cidade do Pecado, por exemplo.

Nos próximos tópicos a análise de edição por edição da revista The Dark Knight Returns (desenvolvida, originalmente, em quatro edições), pretende demonstrar como a

235 Cf. Márcio dos Santos. Representações políticas da Guerra Fria: as histórias em quadrinhos de Alan

Moore na década de 1980. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências. Belo Horizonte, 2011.

236Kellner, Op. Cit., p. 90-91.

237 O Objetivismo foi uma doutrina criada pela filósofa Ayn Rand baseada no Laissez-Faire, politicamente

o Objetivismo influenciou as bases do neoliberalismo. Para o Objetivismo, o ser humano é dotado de razão e deve observar o mundo a partir da lógica.

238 Como já trabalhado anteriormente, as questões pessoais da vida de Frank Miller acabaram influenciando

diretamente suas produções se não na construção de obras auto biográficas, ao menos, na forma tal autor enxergava a sociedade.

108 a história apresenta mobiliza elementos variados e se constrói como um manifesto político e ideológico do pensamento liberal,nos anos 1980.

No documento Rodolfo Grande Neto - José Miguel Arias Neto (páginas 105-108)

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