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2. O RITMO

3.1 O RITMO NO SINCRETISMO

3.1.2 O sistema sonoro na imagem

A imagem incorpora um sentido musical e a música, em contrapartida, constrói imagens. […] Ninguém estaria em condições de explicitar o que “quer dizer” exatamente determinada peça de Schumann; contudo, ninguém contestará que, a seu modo, ela nos fala. (LANDOWSKI, 2004, p. 102).

No mundo estético, pode-se identificar conjuntos de representações, constituídos por subconjuntos de códigos agregáveis, que produzem sentido por meio dos sons. Todo produto de música é um conjunto intrincado, inclusive os tidos como primitivos, de culturas antigas, ainda hoje encontrados entre povos ditos não civilizados. Entre esses conjuntos, há códigos só musicais e outros associando o musical outros tipos de sonoridades que, graças às novas tecnologias digitais, permitem produzir e organizar novos códigos experimentais, cujo sincretismo no passado era limitado ao conjunto formado pelas sonoridades dos instrumentos musicais e da voz.

O típico da codificação da música, para Ramalho e Oliveira (1998), é o tempo. Ela propaga sons pelo ar sem ocupar um espaço visual. O ambiente musical é uma sonoridade, invisível e presente na atmosfera. No teatro e na dança, predominam seres que se movem; no meio musical reinam as sonoridades, que sobem ou descem, prolongam-se ou se abreviam, intensificam-se ou se debilitam, fluindo no ambiente.

As produções musicais são marcadas pelo transitório: a presentificação sonora se esparge na atmosfera, atinge o ouvinte, e seu movimento esvai em si mesmo. Na execução real da música, tudo é novo quando ouvido – no compositor, no condutor, nos executantes, na audiência. A reação da plateia, por pouca que for, influirá no que se ouve ou vê. Já as gravações de música, embora repitam de forma bastante próxima a execução original, diferem da audiência musical real devido a aspectos de ressonância e interface entre executantes e ouvintes, ambos num mesmo tempo e espaço, que influi na interpretação.

Segundo Barthes (1986) existem dois tipos de música: a que se escuta, e a que se executa. A primeira é receptiva – a música que se ouve. A última é "muscular", ativa, a música que se toca. Cada uma delas tem sua própria história, sua sociologia, sua estética. É da música que se ouve irei tratar aqui através da abordagem de Ramalho e Oliveira (1998). Aproprio-me de algumas ideias organizadas por esta estudiosa a respeito da música porque tratam-se de resultados de um trabalho anterior com objetivos e objeto semelhantes, já que ambos buscam apresentar e compreender a música em junção com outra linguagem. Portanto, naquela situação de pesquisa, análoga a deste estudo, encontra-se a organização

de princípios destinados à análise da linguagem sonora, visando a sua leitura no sincretismo um de texto semiótico, a qual pretendo aqui dar continuidade.

De acordo com Moraes (1983), coexistem três categorias no ato de ouvir: o corporal, o emocional e o intelectual, sendo que este último prevalece sobre os anteriores por abranger as outras duas dimensões ao agir, integrando-os em um todo de sentido. Não é mero procedimento: exige educação para decodificar os elementos musicais e dominá-los. Para Martins (apud RAMALHO E OLIVEIRA, 1998), essa pedagogia deve ser gradual, sendo que a música passa a interessar mais ao ouvinte e ao executante quando eles compreendem seu ritmo, tonalidades, fluência de melodia e estrutura de harmonia. Ramalho e Oliveira (1998) postula que estas abordagens permitem inferir uma similaridade para com as posições aqui assumidas em relação à leitura da imagem musical, que se configura em:

ouvir os elementos constitutivos, percebendo as articulações existentes entre eles, dentro da estrutura maior, que é o todo. São os elementos que, organizados no texto musical, através de combinações ou dos procedimentos sintáticos, geram significados. (RAMALHO E OLIVEIRA, 1998, p. 125).

Para a autora (1998), o sistema da música é montado por estruturas, cujo conjunto origina uma forma alcançável por um estudo analítico, mediante semelhanças com o sistema da visão, sob o aspecto de imagens. Dessa maneira, o produto musical, intocável e não visível quando ouvido, e por isso tido como possível abstrato, adquire concretude.

Souriau (apud RAMALHO E OLIVEIRA, 1998) atesta: a forma da música, a maneira de estruturar o que ela exprime, organizando partes morfológicas e liames sintáticos, é o alvo a ser percebido. Visto essa ação ser individual, é na função de quem ouve ou lê os códigos da música que reside o problema. Interpretando criativamente o texto musical, quem ouve ou lê é o agente que dá figuração à música ouvida, tornando a criar, muito particularmente, o discurso musical.

Sobre este tema específico cabe neste momento citar os estudos do canadense Murray Schafer (1991), cujo método musical instiga o iniciante a encontrar relacionamentos válidos na procura do âmago daquilo que chama de “paisagem sonora”. As propostas de Schafer, à primeira vista singelas, alcançam o todo complexo típico da realidade musical ao exercitar e debater continuamente tal

metodologia de ensino/aprendizagem, impregnada de audiências e criação de sonoridades pelos discentes.

Nos trabalhos desse canadense, as análises focam semelhanças entre partes constituintes e certas condutas ou princípios combinatórios da figura da música, confrontados com partes do mesmo teor de figuras visíveis. Para um ensino adequado – por se tratar de experiência pedagógica –, seguidamente colhem-se partes, que são debatidas, tornadas exemplos e submetidas a teste nessa exercitação. Analisado o sentido de barulho e de ausência de som, o autor identifica o som. Consciente do intrincado do tema, via inferências e atento ao conhecimento dos discentes, Schafer inicia pelo conceito de som (o não silêncio), que se “expande numa linha horizontal de altitude constante (frequência)” (SCHAFER, 1991, p. 74). Para reprodução gráfica, estabelece que “um só som é bidimensional. É como uma linha branca se movimentando de modo regular através de um espaço negro, silencioso” (SCHAFER, 1991, p. 74). O fato para o compositor se deve a que o não ruído – o silêncio – é negro, pois segundo a Ótica, o branco reúne todas as cores. Em seguida, Schafer trata da composição das partes do som, isto é, as partes da morfologia da figura musical.

Timbre, para o compositor, dá à massa sonora um colorido tonal. Eis seu exemplo do que é típico dele: uma nota igual executada por três instrumentos desiguais produzirá três sons desiguais. Postula que “o timbre traz a cor da individualidade à música. Sem ele tudo é uniforme e invariavelmente cinza, como a palidez de um moribundo” (SCHAFER, 1991, p. 76).

Segundo Schafer (1991), às sete notas musicais corresponderiam as sete cores do espectro do sol, descoberto por Newton, via espectrômetro que exibe as sete cores componentes da luz branca. Disso vem a razão de os estudiosos da música refletirem sobre massas sonoras confrontando-as com o colorido ou inversamente. A harmonia entre cores equivaleria à dos timbres entre sonoridades. Porém, pede atenção para as semelhanças entre colorido e massa sonora, pois – conforme exame de especialistas no tema – as correspondentes posições a respeito oscilam da ciência à poesia. No grande rol dessas posições, por vezes falta fazer coincidirem as inter-relações fixadas, possível indutor de confusões. Sintetizando: o timbre consiste num quê típico e próprio de se apresentar a sonoridade; percebê-lo revela a habilidade de reconhecer a origem que o produz – ou instrumento, voz, som natural ou fonte eletrônica.

A intensidade, conforme Schafer (1991), é o que dá à música a ideia de profundidade. Essa terceira dimensão, ilusória como a perspectiva, vem das oposições entre intenso (forte) e menos intenso (suave). O autor relembra que, ao compor a Sonata piano e forte, Giovanni Gabrieli experimentou antes tal dimensão em ilustrações. Afirma Schafer (1991) que, inconscientemente, se capta um som menos intenso como vindo atrás de outro intenso, e este também pode ser interpretado como carga de enorme peso, e por isso sente-se uma atração de queda gravitacional. Ao subir uma melodia intensa, produzem-se sobrecargas momentâneas. E é suave a subida de um lineamento melódico menos tenso.

A altura é outro aspecto da música para Schafer (1991), que, mais elevada, fica mais aguda, e em nível menos elevada, mais grave. Com variadas alturas, uma sequência cria um traçado, chamado melodia; mas uma sequência monótona pode também compô-la, apesar disso, pois o ritmo pode gerar a melodia. Cita como exemplo o Samba de uma Nota Só, da Bossa Nova.

Outra qualidade do som proposta por Schafer (1991) é sua duração. Como timbre, intensidade e altura, este ocorre na massa sonora, seja ela instrumental ou vocal, seja natural ou produzida eletronicamente. Dura pouco o ruído de uma gota de torneira ou de chuva caindo num plano, mas é longo o apitar de uma sirene em indústria ou a campainha de estabelecimento de ensino. Como a música existe num período temporal, seus elementos têm durações diversificadas.

Postula Ramalho e Oliveira (1998) que, independente dos incontáveis códigos sonoros, e talvez até por serem tão diferentes, de música erudita ao popular “samba- enredo, seus componentes morfológicos, suas partes constitutivas, terão sempre timbre, intensidade, altura e duração. E que a sintaxe deste sistema está no seu modo de se relacionar ao mesmo tempo todos estes aspectos. No entanto, certos modos desse agir precisarão – para o efeito desejado – considerar o que é típico de determinado aspecto da música e que deve predominar. Propõe então que Isso se faça através da melodia, pondo-a em foco mediante a altura, pois tratar de melodia evoca logo sua altura. Na construção das linhas melódicas, nas variações de sua altura, operam-se então os timbres, intensidades e durações.

Adotando metodologia idêntica dispensada ao sistema visual, Ramalho e Oliveira (1998) propõe ressaltar então as regras combinatórias mais usuais empregadas na organização do texto musical de modo a produzir sentido. Tais regras são de uso corrente, ou, como as chama Boulez (apud RAMALHO E

OLIVEIRA, 1998) “alguns princípios gerais de organização”. Para esse especialista, não há como arrolar todas essas regras, pois cada produto criativo as admite tão numerosas, inconfundíveis e pessoais quantos os seus autores. São regras pelas quais essas obras trazem uma figura estética marcante, individual, por serem criações feitas só uma vez, fruto do emprego de códigos próprios, sua substância principal. Tal acontece porque cada obra deve primar por originalidade, inovação e questionamento de regras vigentes, e propor uma combinação de elementos muito personalista visando à estesia, o que a torna arte. Esses parâmetros são a máxima regra artística; sem eles, é fazer o mesmo, apenas por vezes de forma mascarada.

Para evidenciar tais regras, endossam-se a seguir os postulados de Schafer (1991) por tornarem visíveis imagens artísticas invisíveis e terem metodologia apropriada aos processos de ensino e aprendizagem.

Começa-se pelo silêncio, atividade a cujos resultados músicos e musicólogos às vezes não dão atenção; então, é possível contrastá-lo com altura, intensidade, timbre e duração da massa sonora, por ser ele a negação do som. Schafer, porém, não desconhece que experimentos de John Cage concluíram pela inexistência do silêncio. Até num recinto hermético ao som, pode-se ouvir o bater cardíaco. Schafer comenta que Cage, denominando sua obra Silence, classificou o emprego dessa palavra como irônico. Para Cage, sua substância mítica perdeu credibilidade. Na música tradicional, daqui para frente apontar para silêncio é apontar para a ausência de sons musicais tradicionais.

O contraste pode ser lido como norma combinatória, pois pode confrontar a existência ou não de massa sonora tradicional, diferenciar sonoridades intensas de outras mais débeis para certos resultados. Mas o contraste entre intensidades não é norma absoluta só para este parâmetro. Ele vale para timbres desiguais, para alturas sonoras elevadas e baixas, para durações sonoras extensas e breves. Em suma, o contraste é recurso para tratar o som sob esses parâmetros e confrontar presença e ausência de sons.

Outra regra combinatória proposta por Schafer é a harmonia, pois pode se relacionar com altura, intensidade, timbre e duração na horizontal, ao associar sons sucessivos, e na vertical, ao combinar sons produzidos concomitantemente.

A melodia resulta de normas combinatórias numa sequência de sons, principalmente de alturas diversificadas. Sons altos e baixos traçam ondulações, movendo o som por entre diferentes frequências. Ao examinar tal sucessão sonora,

é possível notar traçados que sobem, descem, ou ficam horizontais, no caso de sons da mesma altura. É o que tem levado à expressão comum “linha melódica”.

Schafer chega então ao ritmo, que para ele assemelha-se ao andar no deslocamento e constitui norma para combinar sons com sua duração. A regularidade sonora quanto ao tempo impõe a cadência de determinado ritmo. Como as passadas, agrupa os sons em conjuntos. À semelhança do ambiente real e virtual, há igualmente o ritmo real e virtual: o dos relógios é real, o da captação dos sons em sucessão temporal é virtual. Este último – um tempo intelectual.

O ritmo – norma de articulação de elementos musicais sobretudo em duração – nem por isso deixa de atuar ante os parâmetros de timbre, intensidade, altura e melodia, e todas as articulações possíveis entre eles ao mesmo tempo. Tudo isso revela uma parte do intrincado conjunto que é um sistema sonoro, na visão de Ramalho e Oliveira (1998).

Ao analisar o que chama de “esboço de uma semiótica do sentido musical” em um texto de Barthes sobre uma partitura de Schumann, Landowski (2004, p. 103) reconhece que este autor também buscou descrever a maneira como a composição em questão faz sentido através de suas dependências para com sua forma, concluindo que

na ausência de unidades de uma gramática da significação (ou “do sentido” – Barthes emprega indiferentemente um ou outro termo, ao menos no artigo citado), são as configurações plásticas e as oscilações rítmicas que condicionam estesicamente a emergência do sentido. E, um método – uma “semântica do corpo musical” – é delineado para descrever os dispositivos, a “estrutura paradigmática” do texto com seus acentos e ataques. (LANDOWSKI, 2004, p. 103).

Pietroforte (2014) atribui esta estrutura ao ritmo quando o coloca como “uma forma de condução musical que se dá por meio de uma relação formal entre acentos tônicos e átonos. […] uma forma de atacar, com energia, uma extensão sonora” (PIETROFORTE, 2014, p. 108). Ou ainda, como uma forma musical caracterizada por tonicidades que se realizam como duração, isto é durante um tempo, interferindo no sistema como uma marcação e gerando efeitos de sentido de aceleração e desaceleração. Exemplifica sua proposição através da canção “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim e Vinícius de Morais, onde classifica a primeira parte como acelerada

e a segunda como desacelerada, revelando um contraste rítmico causado não pela batida ou andamento, mas pela forma de subdividi-los.

Na primeira parte há mais acentos tônicos que na segunda parte, de modo que, no desenrolar da canção, há uma desaceleração da primeira. Desse modo, definir ritmo em termos de tonicidade, além de explicar os efeitos de batida e andamento, também explica os efeitos de sentido que resultam em aceleração e desaceleração. (PIETROFORTE, 2014, p. 108).

O ritmo e melodia parecem se configurar como sendo o esqueleto, como a macro-estrutura básica, enquanto timbre, intensidade, altura e duração os elementos constitutivos que se articulam entre procedimentos sintáticos, onde se verifica cada papel na produção de significados entre o plano da expressão e o plano do conteúdo, tanto da música quanto o de outros sistemas e subsistemas característicos dos textos sincréticos. Pietroforte (2014) propõe em suas considerações, “ainda que provisórias” (p. 119) sobre a categoria de tonicidade que as mesmas poderiam “estabelecer um estatuto semiótico para o ritmo” e “determinar seus efeitos de sentido, tanto no plano da expressão quanto no plano do conteúdo” (p. 120), podendo levar à definição de um nível narrativo em um possível percurso gerativo do sentido da expressão. “Portanto, ao que tudo indica, a narratividade, independentemente do plano em que se realiza, pode ser definida em termos de ritmo” (PIETROFORTE, 2014, p. 108).

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