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3 NARRAR COMO EVENTO HUMANO E MIDIÁTICO

3.3 O SUCESSO COMERCIAL DA SERIALIZAÇÃO TELEVISIVA

Assim como qualquer mídia, a televisão está em movimento perpétuo, muda suas formas e com elas cria novos códigos, novos modelos de consumo e novas relações entre consumidores e produtores. A serialização, ainda que inventada muito antes da mídia televisiva, transformou a produção de narrativas de ficção para televisão, criando competição em torno da venda de espaços com melhor roteiro. Em resposta, vimos emergir a complexidade televisiva, isto é, a proposta deliberada de estabelecer um produto televisivo fora dos padrões dessa mídia – para o qual contribuíram a migração de celebridades do cinema, o desenvolvimento de uma audiência jovem e culta e o uso da memória para criar novos conflitos e inserir temas polêmicos no enredo e da hibridização de formatos narrativos (VIRINO, 2005).

A proposta surgida na década de 1980 e estabelecida durante a década de 1990 logo se tornaria o ideal narrativo dos formatos do prime time, seguindo o slogan da HBO “não é televisão”. De acordo com Jost (2012), subjacente ao slogan está não somente uma proposta comercial, mas um novo desenvolvimento estético que busca elevar as séries ao estatuto de obra. Nesse sentido, Jost (2012, p.24) defende que as séries são menos televisivas que os telejornais e reality shows – uma vez que também as consumimos fora do fluxo incessante da televisão com streaming ou DVDs.

Para compreender o sucesso dessas propostas narrativas, observamos que o princípio industrial básico da serialidade é fazer com que os milhões de telespectadores sintonizados em dado canal a ele retornem, após os intervalos e em semanas seguintes para consumo dos formatos propostos. Desse modo, Newman (2006) e Jost (2012) observam existir uma sobreposição de objetivos estéticos e econômicos voltados para a atenção do consumidor, embora adotem abordagens divergentes desses fatores.

Esteticamente, Newman (2006, p.17) defende que o sucesso da quality TV depende da segmentação das séries nos níveis micro (as “batidas” ou cenas); médio (arcos episódicos) e macro (as temporadas). As “batidas” são unidades mínimas que

constituem todos os formatos narrativos televisivos da contemporaneidade. Um episódio pode ter entre vinte e quarenta “batidas”, com média de vinte e cinco batidas por episódio. Por serem segmentos muito curtos, as batidas fazem com que roteiristas e produtores se voltem para obras diretas e eficientes em seu propósito narrativo, de modo que cada uma dessas unidades mínimas é responsável por uma informação narrativa. Portanto, através das “batidas” não há redundância nem digressão do enredo.

Um aspecto fundamental para as narrativas complexas e que constituem o aspecto mais redundante da batida é a repetição de conteúdo. Porque não podemos assistir a tudo na grade de programação e nossa memória não registra todas as informações que recebemos do mundo ou da televisão, formatos televisivos são estratégicos em como retomam conhecimentos desenvolvidos em eventos já passados na narrativa. Além disso, esses programas não são transmitidos somente para o público já fidelizado, o que gera o interesse comercial de tornar a narrativa facilmente compreendida por telespectadores esporádicos, atentos apenas parcialmente à televisão ou, ainda, que perdem parte do episódio.

Nesse sentido, vale retomar a distinção feita por Chatman (1978) sobre a história e o discurso das narrativas. Para o autor, toda narrativa se divide em história (os eventos, os locais e as personagens) e discurso (o modo como os eventos são contados), ou seja, em “o que” e “como”. No caso das narrativas televisivas não é incomum que o “como” se inicie na metade da história ou, em caso de narrativas investigativas, em momento posterior ao crime com uso de flashback para encadeamentos lógicos. Assim, um mesmo evento pode ser revisitado de diferentes maneiras por episódio.

Além disso, nem todos os eventos de uma narrativa são centrais para o enredo, por isso, Chatman (1978, p.53) os divide em núcleos (pontos de ramificação na narrativa que forçam um movimento em um de dois ou mais caminhos possíveis) ou satélites (voltados para as personagens, o cenário ou ações incidentais que não ajudam na progressão do enredo). É possível que cenas núcleo em termos de episódio sejam classificadas como satélites para o arco narrativo mais amplo, porém, dificilmente uma cena satélite será núcleo2.

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Levando em consideração as funções dos eventos para a narrativa, Sarah Kozloff (apud PORTER et al, 2002, p.5) delineou seis funções para as cenas satélites e doze, para cenas satélites:

Saber o propósito das cenas dentro da narrativa é importante para compreender os padrões das narrativas televisivas, mas, em particular, para explorar os principais componentes utilizados para construir o texto da narrativa. Reconhecendo o potencial ideológico da narrativa na apresentação de valores para os telespectadores, a articulação de discursos no texto televisivo justifica a relevância da compreensão dos fatores de nível micro até agora descritos.

A unidade de intermédio entre a batida e a temporada é o episódio. Como dissemos anteriormente, a complexidade narrativa tem por base graus de hibridismo entre conclusões episódicas e narrativas abertas. O equilíbrio entre essas propostas é necessário para aplacar a curiosidade do telespectador com relação a alguns conflitos ao mesmo tempo em que suscita novos questionamentos a serem respondidos em futuros episódios. De acordo com Newman (2006, p. 20), a conclusão episódica é um produto do contexto industrial que satisfaz a curiosidade dos telespectadores casuais, mas também permite aos regulares criar suas expectativas ou mesmo analisar a resolução desencadeada para os conflitos em questão. A unidade episódica favorece, então, o telespectador bem como o produtor e a emissora.

As temporadas, por fim, são macrodivisões da narrativa que tendem a apresentar diferenças da rede aberta para os canais a cabo. A necessidade comercial faz com que as temporadas sejam divididas em pelo menos cinco segmentos de transmissão: as estreias em setembro/outubro (lançamento de uma série ou começo de uma temporada), a transmissão em novembro, uma reprise de fim de ano, transmissão em fevereiro, nova reprise e transmissão de abril/maio ou finais de temporadas. Assim, The Walking Dead, por exemplo, é transmitida de outubro a novembro, entra em hiato (para reprise) até fevereiro, e, ao retornar, finaliza a temporada.

Em séries de menor audiência, cada pausa no fluxo da transmissão abre a possibilidade de mudança estética, direcionamento narrativo e aprofundamento das personagens, ou seja, as produtoras e emissoras usam cada segmento de transmissão como um "termômetro" para as escolhas feitas em seus produtos e

• Cenas núcleos: perturbação, obstáculo, complicação, confronto, crise e resolução;

• Cenas satélites: exposição, pergunta dramática, introdução de nova personagem, ação, revelação de plano, afirmação de relacionamento, esclarecimento, continuação de conflito, tema, prenúncio e ambientação.

reorientam a construção da narrativa em função dos resultados de cada etapa. Por isso, ocorrem a eliminação de personagens secundários ou a mudança de visual das personagens entre um intervalo e outro. Como consequência, as séries desenvolvem narrativas fortes para serem interrompidas no ápice e manterem os telespectadores interessados apesar do hiato das reprises (NEWMAN, 2006).

O desenvolvimento de personagens é, na verdade, a característica definidora das séries contemporâneas, pois exige tempo narrativo e a atenção de um público regular capaz de mapear a progressão da vida das personagens. Para tal acompanhamento, há uma continuidade de determinados eventos através dos episódios que se baseia menos na memória das personagens sobre os fatos, em favor da memória do telespectador. O dispositivo que melhor realiza essa função é o arco, ou seja, a jornada de uma personagem do ponto A para E, através de B, C e D.

Esse termo tem incrível utilidade para descrever os enredos das séries do prime time: embora cada episódio, período de transmissão, temporada e série tenha tua forma e unidade, a história de cada personagem pode ser individualizada, espacializada como um arco sobreposto a todos esses elementos bem como aos arcos de todas as outras personagens (NEWMAN, 2006, p.23).

Tomando com exemplo Devious Maids, série com cinco mulheres protagonistas, vemos que a narrativa se constroi a partir do entrelaçamento mais ou menos dependente da história de cada mulher. Ainda, porque as protagonistas são empregadas, suas histórias dependem, também, dos acontecimentos envolvendo os patrões. Por outro lado, essas histórias só se tornam relevantes à medida que promovem o arco central da série: a investigação de um assassinato. A narrativa complexa, portanto, constitui-se como uma cadeia de eventos narrativos que alternam a relevância dos eventos para o telespectador.

Para além desses aspectos estruturais, Jost (2012, p.28) irá observar aspectos que constituem as narrativas enquanto relato de eventos. Para o autor, a dispersão de eventos da realidade e a persistência de temas como corrupção, crises de identidade são fundamentais para o sucesso das séries, uma vez que apelam ao conhecimento compartilhado e ao repertório de conflitos psicológicos que podemos encontrar durante a vida. Por outro lado, não é a relação direta com a realidade que sustenta exclusivamente as séries americanas em sua popularidade global, mas a

midiatização da realidade. A midiatização é o processo de conhecer “realidades” de outro modo inacessíveis para o telespectador através das imagens propostas pela televisão.

Para Jost (2012, p.31), a televisão se torna, assim, um reservatório semiótico que concilia aspirações contraditórias:

o desejo de explorar o novo continente, de ir rumo ao desconhecido, de descobrir o estrangeiro e, ao mesmo tempo, de encontrar nesses mundos construídos a familiaridade reconfortante de uma atualidade que também a nossa, as contradições humanas que conhecemos e, enfim, os heróis que, como o telespectador, chegam à verdade mais pela imagem do que pelo contato direto. (JOST, 2012, p.32).

As séries de televisão enquanto artefatos da cultura de consumo dos séculos XX e XXI possuem características próprias que apelam a públicos consumidores específicos, estudados de perto por produtores, roteiristas e patrocinadores. Esses profissionais olham os interesses de grupos empresariais e os sintonizam com o contexto sociocultural da audiência, fazendo com que a seleção de conhecimentos e representações nos formatos televisivos gerem (mais) lucro. Tais grupos fazem em seus produtos investimentos ideológicos e por meio deles reproduzem representações sociais específicas. Porque os discursos na televisão se manifestam por diferentes semioses, através dediferentes recursos, as representações que projetam não podem ser lidas exclusivamente pelo modo verbal. É no capítulo seguinte que discutimos estudos de multimodalidade e, mais especificamente, questões de análise de formatos audiovisuais.

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