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3 NARRAR COMO EVENTO HUMANO E MIDIÁTICO

3.1 TELEVISÃO E FORMATOS NARRATIVOS

Quando falamos de narrativa televisiva, somos tentados a usar “narrativa audiovisual” como seu similar. Etimologicamente, “audiovisual” designa qualquer obra constituída por imagens e sons em película, remetendo ao começo da tecnologia cinematográfica no final do século XIX – quando é consolidada sua própria linguagem através do potencial diegético essencialmente narrativo e ficcional. A televisão, todavia, não somente expandiu, diversificou e consolidou a experiência audiovisual, ela o fez no conforto do lar de seus consumidores. Se hoje

já não mais sentamos ao redor de uma fogueira, ou na calçada de casa, com os membros mais próximos de nossa comunidade para trocarmos histórias, se já não dependemos de serões literários para discutirmos ficção, é porque nos situamos em um novo espaço criado pela mídia televisiva.

Os formatos narrativos surgidos com a televisão, em seu modelo tradicional, vinculado a uma grade de programação e transmissão, hoje estão adaptados à realidade digitial. Seus formatos persistem através do diálogo entre velhas e novas mídias e na atualização de práticas narrativas, as quais vêem a possibilidade de se reinventar na mudança de dispositivos de acesso e de interação com o outro.

Isso é apenas prova de que o fascínio midiático da televisão não arrefeceu. Na verdade, mesmo com o acesso cada vez mais popular em telas não televisivas, as tecnologias de alta definição de imagem têm se provado capazes de atrair cada vez mais pessoas para o próprio dispositivo:

A nova tecnologia tem atraído telespectadores para a televisão por maior intervalo de tempo. De acordo com a Nielsen Company, a qual mede a audiência, lares com HDTV assistem cerca de 3% a mais da programação do horário nobre – correspondente a 7 e 11p.m., quando a maior parte da audiência está disponível – que sua contraparte de resolução padrão. Esse mesmo relatório alega que a experiência cinemática da HDTV tem trazido as famílias de volta para a sala de estar, em frente à larga tela da televisão e se afastado da cozinha e do quarto, onde os indivíduos tendem a assistir à televisão sozinhos e em telas menores. (STELTER, 2010; tradução nossa)

Todavia, nem sempre essa foi a realidade do dispositivo. A televisão como grande dispositivo doméstico, de difícil acesso econômico e com restrições tecnológicas típicas das décadas de 1930-40, possuía fortes vínculos com o rádio, e, a princípio, fazia uso incipiente do aspecto “adicional” da imagem. Apenas nas décadas de 1950 e 1960 surgem formatos já adaptados aos recursos de som e imagem para a televisão e cuja gravação em fita ou filme garantiria a possibilidade de edição e fidelização de audiência.

A natureza doméstica do consumo televisivo motiva Dunn (2005, p. 128) a argumentar que a televisão enquanto mídia está mais sintonizada aos interesses da audiência, pois o público não se desloca para consumir o produto ofertado. Fairclough (1995, p.38), por sua vez, argumenta que à medida que um produto público é levado ao ambiente privado para consumo, ele passa a mediar esses domínios, desenvolvendo estilos comunicativos que se ajustam aos valores da vida

privada e formas de levar o público a contribuir com o processo de produção dos que é consumido.

De fato, o consumo televisivo foi moldado em função da suspensão da atenção do telespectador inserido em seu ambiente doméstico - algo que não mudou com a era digital. Nesse sentido, lembramos as três configurações que orientam a produção e a recepção de televisão apontadas por Fechine (2001): as configurações ao vivo/ gravadas, as configurações interpelativas/não-interpelativas e as configurações interativas/não-interativas.

As configurações ao vivo/gravadas dizem respeito à natureza da produção, transmissão e recepção sob a ilusão da simultaneidade com acontecimento – advento caracterizador dessa mídia. Mesmo quando, na história dessa mídia, a programação passou a ser gravada, ela incorpora traços da transmissão ao vivo:

Em geral, os programas são pré-gravados não para possibilitar uma edição posterior ou maior controle dos resultados, mas por comodidade técnica ou mesmo por razões econômicas e institucionais. No entanto, mesmo esses programas pré-gravados são produzidos e editados nas mesmas circunstâncias que os programas ao vivo (portanto, em tempo presente). (MACHADO, 2000, p.126).

A configuração da televisão em função da transmissão ao vivo, na verdade, é responsável por muitas das críticas dirigidas a essa mídia. Para autores como Bourdieu (1996), a velocidade da televisão impede o pensamento, o qual depende de um afastamento temporal, certa distância que permite considerações críticas. A essas críticas, Machado (2000, p.128) argumenta que a compreensão negativa da transmissão ao vivo tem por base postulados platônicos que não somente ignoram as reações populares voltadas para conteúdos televisionados, como ignoram que a transmissão ao vivo pode dificultar a manipulação da informação.

As configurações interpelativas/não interpelativas instalam o espectador no texto televisual, construindo-lhe uma posição de subjetividade, a ele se remetendo, ao passo que as não interpelativas procuram elidir tanto o produtor quanto o receptor, como uma produção histórica, ou atemporal. E as configurações interativas/não-interativas, por sua vez, referem- se à possibilidade/impossibilidade de intervenções do espectador na transmissão enquanto ela ocorre, por meio do telefone, e-mail e redes sociais como o Twitter.

Na televisão da era digital, o que observamos é que, à exceção de formatos narrativos ficcionais (cuja produção exclui a figura do telespectador tanto do universo diegético quanto da transmissão), mesmo os telejornais têm buscado inserir seus telespectadores na constituição dos blocos, seja por pesquisa realizada via internet ou telefone, seja pela contribuição dos telespectadores para relatos sobre a meteorologia ou, ainda, na comunicação com as personas dos programas através de redes sociais. Logo, as configurações televisivas atuais são mais interpelativas e interativas, justamente pela possibilidade de desdobramento da programação para outras mídias.

Essa aproximação entre produção televisiva e telespectador aponta para um aspecto fundamental na constituição dessa mídia: a relação entre realidade e ficção. Como Barbosa (2007, p.5) alega, isso ocorre já no próprio fluxo da programação onde não se delimitam espaços para o ficcional ou para o informativo e emissões ficcionais se embaralham com aquelas que dependem de convenções de reprodução do "real". Assim, cria-se a impressão que os formatos da televisão, que têm por base a referencialidade, partem de fatos históricos como matéria prima para uma possível "reprodução da verdade".

Com isso, fica implícito para o telespectador comum que na captura do mundo através de um enfoque, há necessidade de se fazer escolha, o que nunca é um ato inocente, destituído de intenções (FREIRE; SOARES, 2013, p.78). Essa seletividade se relaciona intrinsecamente com representações de objetos do mundo e com os investimentos ideológicos de quem as produz: um telejornal pode, por exemplo, a partir da escolha do tema e das palavras que usa, se referir de modo mais ou menos positivo a algo, o que pode influenciar como os telespectadores se relacionam com eventos e seus participantes. Daí, um estudo sobre representações sociais reproduzidas em séries televisivas não poder ver tais narrativas como um retrato objetivo do real, mas uma seleção e reconstrução de conhecimentos que orientam as percepções de seus telespectadores, o que diz respeito à própria natureza da representação social como uma construção sociocognitiva acerca de um objeto do mundo (MOSCOVICI, 2009).

A combinação de estruturas do real e da ficção é explorada por Jost (2007) através das instâncias de composição do conteúdo televisivo: os mundos real, fictício e lúdico. Para o autor, os programas de televisão do mundo real têm por base os referentes da realidade, ou seja, o telespectador é capaz de reconhecer

naquilo que assiste aspectos do mundo real. Isso não significa que o mundo real é uma entidade perfeitamente identificável ou idêntica para todos, apenas que há o impulso de se determinar se as imagens são sobre o mundo em que se vive em detrimento de realidades alternativas.

O mundo fictício, por sua vez, é determinado por um grupo de parâmetros coerentes entre si que envolve graus de imaginação e a presença de atores a partir da suspensão da incredulidade do indivíduo. Essa concepção de Jost (2007, p.63) é cautelosa justamente pela frequente fusão de parâmetros do mundo real com elementos da ficção. O mundo lúdico, por sua vez, é o intermédio entre o mundo da ficção (com suas regras próprias) e do real, ligando o jogador ao mundo do jogo de diversas formas: alguns têm mais vínculo com o real, outros são mais fictícios e outros visam o jogo pelo jogo.

No diálogo entre os mundos constituidores dos formatos televisivos, as narrativas facilmente atravessam os parâmetros do real e do fictício, importando aspectos de ambos e dando origens a obras com maior ou menor referência ao mundo real. A essas ficções, Jost (2007, p.116) chama de “parasitas do real”, e observa como para a construção desse realismo narrativo, as narrativas fazem uso de “portas de acesso” - a atualidade, a universalidade e a linguagem televisiva. De acordo com o autor, referências às evoluções sociológicas contemporâneas ajudam a constituir esse realismo, principalmente se este é ligado a uma abordagem de sentimentos e conflitos comuns às sociedades humanas.

Essa permeabilidade do fictício no real inerente à natureza narrativa da televisão permite aos telespectadores usar os parâmetros de análise de uma "pessoa real" para criar laços com personagens, levando Lippman (2008) a alertar que a mídia, em seu papel de coconstrutora da realidade, deve ser analisada criticamente e a ficção entendida menos como mentira ou historieta. Uma vez que as ficções televisivas são reapresentações da realidade erguidas a partir parâmetros estéticos, mercadológicos e culturais específicos, o senso crítico se torna essencial, principalmente na apreciação do papel das mídias televisivas como disseminadoras de valores e crenças.

Essa criticidade se encontra definida nos trabalhos de Giddens (1991) sob o nome de reflexividade, isto é, a capacidade da sociedade usar os conhecimentos que produz para refletir sobre ela mesma. Para consumidores de produtos televisivos, a apreciação crítica de motes narrativos, personagens representados e

investimento de produção dará origem a uma técnica narrativa específica, como veremos adiante.

Para que uma proposta de ficção se concretize como narrativa televisiva, há necessidade de se articular não somente os eventos de um enredo em uma sequência lógica para os espectadores. Existem códigos típicos da linguagem televisiva a serem considerados, tais como a temporalidade, os usos do audiovisual e, principalmente, a configuração dessas narrativas em função da ecologia de transmissão televisiva. Essa lógica de transmissão é caracterizada por um fluxo ininterrupto de imagens (aparentemente em tempo real) composto de segmentos, isto é, de um grupo de sons e imagens de curta duração que precisa ser acompanhado de outros grupos similares (ELLIS, 1992).

Em virtude da segmentação do fluxo televisivo, surgem os formatos narrativos seriados, ou seja, soap operas, telenovelas, séries, minisséries, e seriados. Porque tratamos de representações sociais que são transmitidas por uma série, a seguir traçamos a história desses formatos, no intuito de mostrar ao leitor como as propostas da televisão estão em sintonia com um contexto cultural de consumo midiático que não abre mão de sua relação com o real. Além disso, não deixamos de pontuar que esses formatos surgem com estratégias próprias para captar a audiência, intrínsecas ao desenvolvimento da narrativa.

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