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3 NARRAR COMO EVENTO HUMANO E MIDIÁTICO

3.2 A SERIALIZAÇÃO DE NARRATIVAS NA TV

Partindo do princípio que as narrativas são (re)presentações da realidade a partir um dado ponto de vista, as unidades de significado que estruturam experiências e narrativas, por sua vez, são a atualização moderna de um ato performático socialmente situado. Por isso, o estudo das narrativas midiáticas pode contribuir para a compreensão dos fenômenos sociais, a partir de produtos movidos economicamente e politicamente e cuja existência está intimamente relacionada ao uso da língua (SPITULNIK, 1993, p.293).

Além disso, seriados, minisséries e telenovelas também abrem espaço para que representações sociais sejam reproduzidas no corpo da narrativa, por meio de diferentes discursos da emissora e que dialogam com conhecimentos compartilhados na realidade social. Assim, cabe entender como tais formatos se distinguem em função da possibilidade de oferecerem representações da vida

cotidiana, como formas de conhecimento e legitimação social (PUERTAS, 2005, p.10).

De modo geral, as narrativas seriadas para televisão surgiram entre as décadas de 1950 e 1970 e tiveram como aspecto determinante a inserção em uma grade de programação baseada em índices de audiência. Dessa maneira, o valor de mercado para cada horário foi definidor para a grade de programação, fazendo com que as escolhas das emissoras refletissem estratégias para garantir o lucro de cada horário:

Por exemplo, ao colocar programas mais populares no horário de maior visibilidade ou quando o programa de um concorrente é fraco, ou esconder programas mais fracos em horários de menor visibilidade na programação, uma emissora pode aumentar o número de pessoas que sintonizam em seus canais (CASEY et al, 2002, p.204).

Como consequência, o horário de consumo influenciou a duração atribuída aos formatos narrativos. Desde a década de 1970, convencionou-se tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra e na Alemanha que as narrativas seriadas se dividiriam em formatos de 22 ou 43-47 minutos. Uma vez que se desenvolveram como narrativas de efeito rápido e menor custo de produção, as comédias foram alocadas em blocos de programação mais curtos, ao passo que os dramas recebem maior espaço na grade de programação (THOMPSON, 2003, apud ALLRATH; GYMNICH, 2005).

Além de condicionar a duração dos programas, a grade de programação também proporcionou a fragmentação das narrativas em capítulos e episódios (semanais ou diários) e em blocos atravessados por intervalos comerciais. Essas interrupções programadas foram orientadas pela natureza doméstica do consumo televisivo e pela possibilidade de distrações extramidiáticas do telespectador. Para que os telespectadores retornassem ao programa, as narrativas passaram a apresentar o gancho de tensão (uma pausa entre o conflito e sua solução).

Os intervalos comerciais instalados entre conflitos e sua resolução permitiriam ao espectador, então, a distração necessária e típica da televisão:

Se os intervalos que fragmentam um programa de televisão fossem suprimidos e os vários capítulos diários fossem colocados em continuidade na mesma sequência, o interesse

do programa provavelmente cairia de imediato, uma vez que ele foi concebido para ser decodificado em partes e simultaneamente com outros programas. (MACHADO, 2000, p.88)

Em outra perspectiva, Hagedorn (1995, p.24) justifica a adoção de narrativas seriadas pelos meios de comunicação de massa justamente por estas atraírem e fidelizarem sua audiência, desenvolvendo um público disponível e predisposto a consumir outros textos que aquela mídia em particular fornece naquele horário. O autor defende que a prática da serialização não é exclusiva da contemporaneidade, mas se tornou popular com a combinação da economia de mercado, da tecnologia da comunicação e do reconhecimento das narrativas como produtos comercializáveis. Nesse processo, passam a ser produtos, também, as representações televisionadas que cativam o público através do sútil jogo de identificação e projeção de pessoas, bens e atitudes.

As primeiras narrativas seriadas surgiram para televisão ainda no final da década de 1940, mas apenas na década seguinte, com personagens e cenários fixos, conquistaram o telespectador. Ao final da década de 1950, surgem os primeiros dramas diurnos (soap operas), com personagens constantes em um arco melodramático contínuo caracterizado por complexas relações dramáticas (PALLOTTINI, 2012). Assim chamadas pelos críticos da época que desprezavam o conteúdo melodramático dos enredos, as soap operas são comumente citadas como as primeiras narrativas seriadas para televisão. Entretato, elas já foram uma inovação na serialização, densa rede de relacionamentos e ausência de desfecho (ALLEN, 1995; MITTEL, 2006).

Vale salientar que, na origem da produção televisiva, o potencial ideológico da televisão já foi subestimado para as narrativas diárias, vistas como pouco capazes de difundir ideologias ou crenças. Na perspectiva de Allen (1995), as soap operas tendiam a cancelar personagens ou eclipsar tramas que não recebiam grande apoio do público, buscando o “politicamente aceitável”. Tal posicionamento, todavia, negligencia que são marcas de investimento ideológico o “para quem” esse conteúdo é definido como aceitável, bem como a própria compreensão de “aceitável”.

Por isso, enfatizamos que, desde a manipulação dos recursos audiovisuais até a presença efetiva de atitudes, valores e comportamentos na narrativa são

motivos difusores de discursos e ideologias os quais são realizados nas representações difundidas por essas mídias. Quando vemos personagens de determinado grupo étnico ou posição social com maior mobilidade de relações na trama ou quando determinados assuntos são abordados por personagens com um grupo específico de características, tais escolhas estão ideologicamente fundamentadas.

No final da década de 1970 e durante a década de 1980, um novo formato narrativo começa a surgir com experimentações narrativas em soap operas. Programas como Dallas (1978), por exemplo, buscavam harmonizar aspectos da narrativa serializada e o ritmo narrativo diário e dramaticamente complexo dos programas diurnos (MITTEL, 2006, p.32). Somente com o lançamento de Twin Peaks (1990) essas inovações gerariam uma nova proposta de narrativa serializada. Prezando pela seleção de elenco de qualidade, investindo em produção e com conteúdo dramático em diferentes graus, essa nova forma de serialização mantém o fluxo contínuo da narrativa retendo alguma historicidade ao mesmo tempo em que cria unidades narrativas finalizadas a cada episódio. Com esse protótipo, extingue-se a figura de um personagem central, em favor de formações narrativas policêntricas (NDALIANIS, 2005, p.97) como exemplificam The X-Files (1993), Ally McBeal (1997), Buffy the Vampire Slayer (1997) e The Sopranos (1999). Ainda, baseadas em quantidades limitadas de episódios semanais por temporadas (até 24 episódios na TV aberta e até 13 episódios na TV a cabo, distribuídos em até duas temporadas anuais), as novas narrativas do horário nobre enfatizam as ações das personagens e suas consequências tanto para dramas quanto comédias (Friends, 1995; How I met your mother, 2005). Consideradas por Martínez (2012, p.273) as apoteoses da narrativa, essas séries se dedicam menos ao que aconteceu e se voltam para “como” as coisas ocorreram para sustentar a trama.

Nessa mudança de paradigma, há mais espaço para o aprofundamento das personagens a partir da performatividade, isto é, elas se definem para o telespectador através das ações que realizam episódio a episódio e durante toda a temporada. Com isso, as representações sociais reproduzidas pela televisão fogem à superficialidade de um recorte único: para que o público consumidor as entenda em sua complexidade, o instante deve permitir a relação com a narrativa que a partir dele se constrói. Ou seja, com a continuidade da audiência.

O diálogo entre mídias e o desenvolvimento de narrativas alternativas (pelo fandom) fez com que as emissoras passassem a investir nos spin-offs, subvertendo ainda mais as normas seriais e as convenções episódicas. Daí Kozloff (apud Allrath et al., 2005, p.6) argumentar em favor de uma nova forma de organizar tais formatos, baseada não em binários, mas em um continuum:

Figura 3 Continuum de narrativas televisivas.

Fonte: Allrath et al. (2005).

As mudanças estéticas dos formatos televisivos, ressalvamos, estão diretamente relacionadas à constante atualização tecnológica típica da televisão enquanto mídia, bem como a mudanças demográficas e culturais. Como Ndalianis (2005) argumenta, a relação entre economia e estética fica evidente nas propriedades formais do entretenimento gerando novas estéticas e novos padrões formais. Para Chavez (2015), a complexidade narrativa típica do “quality TV" é o elemento central das mudanças que testemunhamos desde 1990 em séries e seriados. Dessa maneira, não é somente o mundo da ficção que atrai os telespectadores para as séries contemporâneas, mas a estética operacional e sua demanda por certo nível de análise formal, dissecação das técnicas audiovisuais e de narração propriamente ditas.

O sucesso das narrativas da televisão norte-americana pressupõe um equilíbrio esponjoso entre arte e indústria resultando em telespectadores mais complexos que consumidores de universos ficcionais e em produtos cujos circuitos de produção e estruturas narrativas são mais complexos que os formatos

tradicionais. Por isso, nossa próxima discussão se volta para a estética narrativa das séries contemporâneas enquanto estratégias de atração de consumidores.

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