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Diante dessas considerações iniciais, passaremos para as indagações sobre o tempo na peça teatral Esperando Godot, de Samuel Beckett, em seguida faremos a reflexão sobre as implicações do tempo e da espera no contexto de descaso do governo norte-americano de prover a reconstrução de Nova Orleans após a chegada do furacão Katrina, enfim analisaremos a montagem concebida por Paul Chan e encenada pelo The Classical Theather of Harlem em Nova Orleans, dois anos após o evento, em 2007.

Como pontua Esslin (1961), em seu livro intitulado The theatre of the absurd, Esperando Godot foi publicada em 1952 e encenada pela primeira vez em 1953, no pequeno Théâtre de Babylone, antiga sala em Paris, no boulevard Raspail, sétimo arrondissement. A montagem foi dirigida por Roger Blin, que também interpretou o personagem Pozzo. A peça, em dois atos, traz dois personagens, Vladimir e Estragon, que esperam Godot. O cenário é uma estrada no campo. Há apenas uma árvore seca.

Enquanto Vladimir e Estragon esperam Godot, surgem outros dois personagens: Pozzo e Lucky. Pozzo conduz Lucky, que tem uma corda amarrada no seu pescoço e carrega uma mala. Há também um quinto personagem, chamado Menino, que aparece uma vez no primeiro e outra vez no segundo ato. Nas duas ocasiões, Menino age como um mensageiro de Godot, avisando que não virá hoje, mas virá amanhã com certeza.

O segundo ato é uma espécie de duplicação do primeiro: Vladimir e Estragon seguem esperando Godot, a árvore que estava seca aparece com algumas folhas, Pozzo reaparece cego e Lucky não fala nada. Menino traz o recado, vai embora e a espera continua até que a cortina se feche.

Raymond Williams (2002) identifica a estrutura da peça a partir de dois conjuntos: os vagabundos (Vladimir e Estragon) e os viajantes (Pozzo e Lucky). Para ele, essa oposição polar é utilizada a fim de demonstrar uma condição humana absoluta em um mundo quase estático e com limites muito estreitos para ações humanas. Como nos dois atos os vagabundos apenas esperam, enquanto os viajantes seguem após encontrá-los, Vladimir e Estragon representam a esfera da resignação e da espera, enquanto Pozzo e Lucky representam o mundo do esforço e da ação, do poder e da exploração pela via da dominação e dependência.

Dessa forma, Esslin (1961) entende que Esperando Godot não conta uma história, mas explora uma situação estática: a de dois vagabundos esperando em uma estrada de campo. A peça tornou-se um grande sucesso do teatro pós-guerra, tendo 400 apresentações no Théâtre de Babylone, traduzida para mais de 20 idiomas e encenada em diversos países, como Brasil, México, Estados Unidos, Israel, Japão etc.

Alguns estudiosos enquadram a obra de Beckett dentro da categoria elaborada por Esslin de Teatro do Absurdo. Berthold (2008) entende que o teatro no pós-guerra mostra “necessariamente um quadro tragicômico da vida, numa época em que não mais podemos evitar a questão sobre ‘o que estamos fazendo na Terra e como podemos suportar o peso

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esmagador do mundo das coisas’” (BERTHOLD, 2008, p. 522). Assim, para ela, o palco torna-se este espaço sem referências identificáveis, como o planalto desolado e sua última árvore seca onde Vladimir e Estragon esperam. Desse modo, a autora percebe como o tempo histórico em que a peça foi escrita era propício para o surgimento de certos textos que questionavam o absurdo da existência após a experiência traumática da guerra. Esta desesperança presente em Esperando Godot é reforçada a cada diálogo, então, podemos considerar que o presente linguístico é, para Vladimir e Stragon, insustentável. A dupla vive um presente alongado e entediante, que ora se projeta para um acontecimento futuro, que jamais se concretiza, ora remete a um passado incerto, esfumaçado e apagado. Essa espera insuportável fica evidente quando Vladimir olha para o céu e pergunta: “Será que a noite não cairá jamais?” Em outra situação, após um longo silêncio, Estragon comenta: “Nada acontece, ninguém vem, ninguém vai, é terrível”.

Nessa obra, o momento axial que definiria a condição estativa do tempo elaborada por Benveniste, e que, portanto, traria uma nova direção às coisas, está localizado no futuro. Mas como esse futuro não ocorre segundo as expectativas, também não há uma condição diretiva para estabelecer um “antes.../depois...”, e o presente dilata-se enquanto o futuro é apenas um frustrante porvir de um Godot que nunca chega.

Na tentativa de compreender os possíveis sentidos de Godot, deste ser que nunca vem, Esslin busca uma etimologia. A sugestão mais recorrente é a de que Godot seria uma espécie de diminutivo da palavra God (deus, em inglês) em uma analogia a Pierre-Pierrot ou Charles-Charlot (a forma como o personagem Carlitos de Chaplin é conhecida na França). Em outra perspectiva, ele cita o entendimento de Eric Bentley a partir de uma referência literária, este referente seria outro personagem também muito falado e nunca visto de Balzac, na comédia Le Faiseus/Mercadet, há um personagem chamado Godeau. Esslin demonstra que há outros paralelos entre Beckett e Balzac, sobretudo porque, em ambas as peças, a chegada de Godot/Godeau é esperada como um evento milagroso para a situação em que se encontram os personagens.

Presos como estão ao seu angustiante espaço de espera, Vladimir e Estragon parecem confrontar o paradoxo de todos os tempos; isto é, que o único tempo que sentimos possuir uma existência real verificável, o presente, o ‘aqui e agora’, na verdade jamais pode meramente ‘ser’, porque seu ‘agora’ só pode ser apreendido nas frações de segundo que lhe antecedem ou sucedem. Jamais é de fato o tempo presente, mas sempre a sua representação antecipada ou rememorada – ou seja, um não presente. Da mesma forma, Vladimir e Estragon, presos ao ‘ainda não’ ou ao intervalo da espera, equilibrando-se entre o passado que já não habitam e o futuro que não pode começar até que Godot chegue, jamais conseguem estar de todo no agora. (CONNOR, 2017, p. 167)

O artista plástico Paul Chan, em sua primeira visita a Nova Orleans, logo percebeu o correspondente daquela angustiante espera na situação vivenciada pela população local, impedida de desfrutar o futuro até que as providências em relação à catástrofe fossem tomadas. Assim como Vladimir e Estragon encontram-se aprisionados por não poderem sair de onde estão, de forma análoga, a população dos arredores de Nova Orleans encontrava-se, na ocasião, também impedida de seguir.

VLADIMIR: Não temos nada a fazer aqui. ESTRAGON: Nem fora daqui.

VLADIMIR: Deixe disso, Gogô, não fale assim. Amanhã vai ser outro dia. ESTRAGON: De que jeito?

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VLADIMIR: Você não ouviu o moleque? ESTRAGON: Não.

VLADIMIR: Disse que Godot virá amanhã, com toda a certeza. (Pausa) O que me diz disso?

ESTRAGON: Então é só esperar aqui. (BECKETT, 2017, p. 69)

A montagem dirigida pelo artista sino-americano Paul Chan fez parte de um projeto maior intitulado Waiting for Godot in New Orleans: a play in two acts, a Project in three parts (2007), concebida durante a primeira visita do artista à cidade devastada pelo furacão Katrina, em 2006, pouco mais de um ano após o evento. Nessa ocasião em que Chan visitou a cidade devastada, ele percebeu ali, onde um colega seu enxergou um filme ficção científica, algo mais próximo ao cenário da peça, tantas vezes vista, de Samuel Beckett.