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O trânsito entre a narrativa e a análise do Brasil, em Perdigão Malheiro

PARTE I H ISTÓRIA N ARRATIVA

3.5 O trânsito entre a narrativa e a análise do Brasil, em Perdigão Malheiro

Publicado em 1850, o Indice Chronologico dos Factos Mais Notaveis da

Historia do Brasil, de Agostinho Marques Perdigão Malheiro, diz procurar

oferecer ao seu leitor uma “noticia do estado do Brazil em differentes épocas, para assim ir o leitor seguindo a marcha progressiva ou regressiva do paiz nos differentes tempos”. Dizia Perdigão Malheiro que, para “indagar a razão da existencia do facto, suas causas, sua ligação com os que o precederam, bem como suas consequencias; mas tambem classifical-o competentemente em relação ao tempo e ao lugar”, teria recorrido ao indispensável auxílio de “duas irmãs gemeas e inseparaveis da Historia”, a Geografia e a Cronologia, sem as quais o conhecimento abstrato dos fatos históricos, afirmava, teria sido inútil e

pouco seguro para caminhar na investigação das verdades históricas.49 Perdigão Malheiro explica que seu “methodo” de organização do livro divide as etapas da trajetória em séculos, nas quais os “fatos notáveis”, quase sempre “notáveis” por critérios políticos, são destacados de dentro de reinados e regências que governaram o Brasil. A exceção é o século XIX, pois, segundo Perdigão Malheiro, o número de fatos notáveis contidos nesse período exigiu uma divisão mais complexa, em “épocas historicas", que são explicadas do seguinte modo:

Comprehendendo os quatro ultimos mappas a historia desde 1800 a 1848, o 1.º começa em 1800 e termina em meiados de 1822; o 2.º começa em 7 de Setembro de 1822 (época gloriosa da proclamação da Independencia, em virtude da qual o Brasil se constituio Imperio livre sob o governo de seu magnanimo fundador o Senhor D. Pedro I), e termina em 7 de Abril de 1831 (época em que teve lugar a abdicação, findando d'este modo o governo do primeiro Imperador); o 3.º começa no mesmo dia 7 de Abril (época em que pela abdicação ficou o Brasil sob o governo de uma regencia em nome do segundo Imperador), e termina em 23 de Julho de 1840 (época em que pela proclamação da maioridade do mesmo Senhor cessou a Regencia); o 4.º, finalmente, começa em 23 de Julho de 1840 (época em que começou o governo do segundo Imperador o Senhor D. Pedro II), e termina em 31 de Dezembro de 1848.50

Por se tratar estruturalmente de um índice cronológico de fatos, essa obra de Perdigão Malheiro não estabelece a construção de uma narrativa histórica sustentada na concatenação lógico-temporal-causal de acontecimentos. Entretanto, ela oferece os acontecimentos/fatos em relação ao tempo/cronologia. Com isso, os “fatos notáveis”, além de denunciarem um mecanismo de seleção do que é historicamente relevante, frequentemente aparecem acompanhados de comentários de Perdigão Malheiro que permitem um acesso à dimensão axiológica da compreensão histórica presente na obra, por meio de uma fala adjetivada, reveladora de julgamentos e valores estruturantes para o pensar historicamente à época de Malheiro. Isto é observado, por exemplo, quando a obra assinala que o Marques de Pombal, “para fazer todo o bem possível ao Brasil”, cria escolas regulares nas diversas

49 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Indice Chronologico dos Factos Mais Notaveis da Historia do Brasil desde seu Descobrimento em 1500 até 1849. Rio de Janeiro:

Typographia de Francisco de Paula Brito, 1850, p. II-IV.

capitanias em 1774, “attendendo ao ponto essencial da civilisação e moralisação dos póvos, a illustração”51; ou em 1822, quando os campos do

Ypiranga em São Paulo ouviram o grito de independência do então príncipe D.

Pedro que inaugurou a existência política do Brasil como nação livre e emancipada, a qual “em pouco mais de 20 annos tem caminhado com passos gigantescos na estrada da civilisação, apezar das graves commoções intestinas que constantemente o perseguem retardando o seu progresso estupendo”.52

Para além da mera cronologia, a compreensão histórica sobre o Brasil compartilhada na obra de Perdigão Malheiro também oferece ao leitor, no apêndice, um “Succinto Esboço do Estado do Brasil ao Findar o Anno de 1849”, organizado na forma de pareceres sobre variados aspectos que seu autor considerou importantes sobre o país, a saber: Situação, posição astronômica e extensão; Limites; Linha divisória, Riqueza Natural; População; Religião; Divisão administrativa; Divisão eclesiástica; Organização política; Organização do Poder Judicial; Tranquilidade pública; Moral; Instrução pública; Ilustração; Indústria; Relações externas e Necessidades do país.53 Os pareceres que compõem o “esboço” sobre o Brasil, além de concentrarem 19 das 24 ocorrências no livro dos conceitos civilização, progresso e desenvolvimento, e de suas variantes como civilizado, progredir, desenvolvido, etc., apresentam indícios de um discurso historiográfico sobre o país que transita entre a narrativa e a análise.

Não é aleatório que, nesse contexto, ao refletir sobre a população do Brasil, Perdigão Malheiro lamente a falta de uma estatística sobre a população do Império. Estima, contudo, que o país à época deveria ter aproximadamente de 7 a 8 milhões de habitantes, dos quais 3 milhões escravos: “Eis em nossa organisação social hum elemento retrogrado na civilisação, assim como de discordia e desordens”.54 Ele alerta que a instituição da escravidão inegavelmente exercia uma influência nefasta sobre a educação dos povos, pois, conforme entende, o poder quase absoluto do senhor sobre o escravo cria o hábito de costumes senhoriais que se revelariam de modo indigno nas

51 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., 1850, p. 65. 52 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., 1850, p. 87-88. 53 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., 1850, p. 143-176. 54 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., 1850, p. 147.

relações familiares e sociais, e o martírio afligido pelo senhor ao escravo “faz- lhe perder ou pelo menos muito arrefecer os sentimentos nobres e generosos, a compaixão do proximo, e até o principio do justo e injusto: barbariza-o”.55 Além disso, o episódio do Haiti é evocado para introduzir o que, para ele, se apresenta como outro problema determinante, a diversidade de raças:

A historia de todos os povos e de todos os tempos ahi está para o demonstrar: basta lêr huma pagina da historia do hoje Imperio do Haiti. Si a escravidão em hum paiz he elemento opposto á civilisação; o he tambem de discordia e desordens temiveis. He a mina sempre prompta a fazer horrivel explosão e tudo despedaçar, logo que se offereça occasião favoravel. Mas não pára aqui. Hum outro elemento de discordia ainda existe entre nós. É a diversidade de raças. A nossa população compõe-se de brancos, negros, indios, mestiços e mulatos. E quem ignora a odiosidade que tem todos á raça branca, por se acharem em posição inferior na ordem social, por força dos prejuizos e preconceitos da sociedade?56

A diversidade racial da população resultante da escravidão, assim, seria um catalisador para a explosão da discórdia e da desordem. Em sua visão analítica respaldada em um pensamento histórico, a causa do problema presente e ameaçador para o futuro estaria no passado, na colonização, no erro dos colonos antepassados que introduziram a mão-de-obra compulsória de africanos ao invés de ter civilizado os indígenas que ocupavam o território:

Ah! si não fôra o erro fatal dos nossos antepassados, primeiros colonisadores do Brazil, hoje teriamos muito maior população, toda composta de gente valente, laboriosa e livre. Si acariciassem os Indigenas, si lhes fossem ensinando a lingua e chamando-os paulatinamente á vida civilisada e ao gremio da nossa Religião e sociedade, elles não se terião exterminado nem fugido. [...] Cumpre agora remediar de algum modo os passados erros, empregando todos os meios de colonisar o paiz com braços laboriosos e livres, preparando-lhe assim um futuro risonho e prospero.57

Lamentava também Perdigão Malheiro que a perturbação da tranquilidade pública impunha barreiras ao progresso e à prosperidade do Brasil. Quanto a isto, mirava no exemplo da guerra civil que então ocorria em

55 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., 1850, p. 147-148. 56 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., 1850, p. 148. 57 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., 1850, p. 148-149.

Pernambuco, o que ficou registrado na historiografia como o episódio da Insurreição (e também Revolta e/ou Revolução) Praieira:

tem o Brazil sido victima destas desastrosas commoções, que não fazem senão retardar o seu progresso, e enfraquecel-o cada vez mais. Tal he o triste e misero estado a que se acha reduzida nossa bella patria, digna de melhor sorte, e com todos os elementos e condições de hum porvir grandioso e brilhante!58

Tratar-se-ia de um erro fatal cuja causa seria uma falsa ideia de oposição; Perdigão Malheiro afirma que a “opposição he boa e até indispensavel” porque suscita a discussão e o debate que obrigam exames mais profundos que resultam em uma chegada mais segura ao conhecimento da verdade, condição indispensável para o progresso do Brasil:

A opposição he a legal discussão dos principios e medidas governativas; he a analyse justa e razoavel desses principios e medidas para se chegar ao conhecimento de que são ou não são capazes de conseguirem o seu fim, qual he a felicidade e prosperidade do paiz. [...] A historia de todos os povos, e mesmo a nossa, ahi está para confirmar e provar o que deixamos dito.59

Perdigão Malheiro levanta ainda outros fatores que considera determinantes para o Brasil:

Compreende que a “instrucção publica, ou antes a educação de hum povo he a solida base de sua felicidade e prosperidade”, e por isso se preocupa com seus “gravissimos defeitos”, entre os quais, a qualificação dos professores: “que educação póde receber hum menino ou hum mancebo que tem por professor hum estupido, ignorante, ou hum bebado, immoral, vicioso, incivil?”. Para ser um agente da instrução pública, dizia, desde as primeiras letras até os estudos superiores para a civilização, o progresso e o desenvolvimento, exige- se do professor “muitas qualidades reunidas, que nem todos possuem: não he bastante ter grande instrucção, he preciso ter bons sentimentos moraes e religiosos; saber exprimir-se com methodo e clareza; não basta ter talento, he preciso não ter preguiça de estudar para ir sempre acompanhando o progresso da sciencia”. Assim, “tal he o misero estado da instrucção publica entre nós,

58 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., 1850, p. 154. 59 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., 1850, p. 155-157.

estado que exige radical reforma”, recomenda que deveria haver em todas as Províncias do Império

hum collegio de bellas-lettras, aonde a par de huma instrucção litteraria e scientifica proporcionada ás necessidades e ao tempo, a par de huma moral sã, de hum verdadeiro e santo temor de Deos, o desenvolvimento do corpo por todos os jogos gymnasticos completasse a educação. Finalmente huma unica Universidade onde se viesse estudar o direito, a medicina, a theologia, a arte da guerra, a navegação...60

Além de criticar o estado das coisas, Perdigão Malheiro sentencia elogiosamente que os pontos positivos da inteligência do país herdados do passado colonial devem-se aos jesuítas, pois, em sua comprensão, teriam sido eles “os primeiros que fundarão escolas, onde se ia beber a illustração e a sciencia” e que “verdadeiramente cuidarão nas letras e em illuminar o povo dando-lhe a devida instrucção”. Enquanto que os colonos estiveram inevitavelmente ocupados com repetidas invasões estrangeiras e com guerras com os indígenas, dizia, “os Padres da Companhia não cessavão de andar em missões civilisadoras ensinando as letras, e prégando a Religião e Moral de Christo”. Por isso, atesta, “a Historia não deixará de tecer elogios a Nobrega, Anchietta, Antonio Vieira e tantos outros que com perigo imminente da propria vida se abalançarão a tão ardua empreza”. No entanto, estaria localizado no passado mais recente o momento mais importante da história do Brasil: “a época porém de que data o progresso realmente maravilhoso do Brazil neste ponto he a da Independencia”, a qual é interpretada como o aparecimento da “luz brilhante e [d]os astros que ornão hoje o horizonte e céo politico, scientifico, litterario e artistico do Imperio”, a qual, exclamava, “em pouco mais de 20 annos de existencia que progresso estupendo tem feito as letras Brazileiras!”. Malheiro acredita conhecer a fórmula para o sucesso do país, cujo ingredientes seriam: “além do amor nato dos Brazileiros ás sciencias, letras e artes”, o meio para avançar a este “fim tão maravilhoso”, conforme entende, “se descobrem introduzidos pela moderna civilisação”; em suas palavras, o meio para o sucesso é “a liberdade de pensamento, a abolição da censura, a liberdade de imprensa, o estabelecimento de typographias em todas as Provincias

concorrendo dest'arte para propagar os conhecimentos e excitar a cultivar o espírito”, e também “a illustração que recebemos dos paizes civilisados com a leitura das suas melhores obras e lições dos grandes mestres”:

Accresce que, não satisfeitos os Brazileiros com o estudo e trabalho isolado, sempre reconhecerão que o concurso de muitos he o verdadeiro meio de prosperar: assim fundarão-se sociedades scientificas e litterarias não só no tempo do Marquez de Lavradio no Rio de Janeiro, como muito antes na Bahia. E hoje que numero prodigioso existe! Associações para o estudo da Historia e Geographia, para o da Philosophia, para o do Direito, para o da Medicina, etc., etc., existem por toda a parte: e bem assim muitos periodicos litterarios e scientificos, que demonstrão o desejo de estudar e de propagar o mais possivel no paiz os conhecimentos humanos em todos os ramos.61

Quanto ao estado da indústria no Brasil, Malheiro afirma ter havido algum progresso em todos os seus ramos, o agrícola, o fabril e o comercial. Todavia, reconhece que “longe está ainda do auge a que desejamos que se eleve”62:

Na perspectiva de Perdigão Malheiro, o desenvolvimento da lavoura, “essa alma de nossa existencia” que “foi sempre a predilecta”, porém, correria risco de morte devido ao dilema da mão-de-obra: “Si he hum mal para o paiz e huma offensa á humanidade e aos direitos e dignidade do homem a escravidão, e si a nossa lavoura não pode progredir nem mesmo existir sem braços affeitos aos rudes trabalhos que ella importa, como substituir os braços escravos por braços livres?”.63 Para desfazer tais amarras que impediriam o progresso e o desenvolvimento do Brasil, Malheiros sugere uma reforma social a ser preparada por três meios: “1.º, ir destruindo a pouco e pouco a escravidão no

61 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., 1850, p. 163-167. 62 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., 1850, p. 167.

63 O foco do dilema aqui não é, entretanto, a dignidade dos escravos africanos ou sua inc lusão no mercado com o fim então hipotético da escravidão, mas as condições ideais para que imigrantes possam suprir a demanda de mão-de-obra. Por isso, Malheiro alerta que o estrangeiro que chega ao Brasil “acha mil modos de vida mais commodos do que os asperos e rudes trabalhos de nossa lavoura” e que prefere, “mesmo quando se entregue á agricultura, viver sobre si, independente, ainda que pobre”, além do fato que “o elemento da escravidão obsta a que trabalhadores brancos livres, sobretudo estrangeiros, se sujeitem a trabalhar a par de escravos”, afinal, os estrangeiros imigrados no Brasil “julgão descer da dignidade de homem hombreando no serviço com tal gente”. Assim, conclui que “á vista destes obstaculos por ora quasi invenciveis, julgamos que tempo virá em que seja possivel a tão desejada substituição; mas que não será em tão breves annos” (MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., 1850, p. 168).

paiz; 2.º, promover quanto antes em grande escala a colonisação, sobretudo de povos que se entreguem de preferencia á lavoura”.64

Segundo Malheiro, a indústria fabril “tambem tem-se desenvolvido grandemente”, notadamente graças ao emprego de máquinas e do vapor, que seriam, dizia, “huma vantagem incalculavel no progresso industrial, sobretudo em hum paiz mesquinho de braços como o nosso”. Em 1849, o diagnóstico de Malheiro, embora encontrasse algum desenvolvimento no comércio, apontava, contudo, que a infra-estrutura de transporte interno seria uma desvantagem para este setor:

A industria commercial tambem tem progredido maravilhosamente, sobretudo depois que se abrirão os portos a todas as Nações do mundo. O estrangeiro traz-nos tudo quanto necessitamos, desde generos alimentares, tecidos de lã, seda e algodão até objectos de luxo; e leva-nos o algodão em rama, o assucar, a aguardente, fumo, café, madeiras, plantas medicinaes e outros objectos. Mas he de lastimar que o commercio externo ainda seja feito absolutamente por vasos estrangeiros, e que o nosso pavilhão não tremule nos portos das outras Nações, conduzindo nós mesmos os proprios generos. O commercio de cabotagem, porêm, he feito exclusivamente por barcos brasileiros; e tem florecido, sobretudo com a introducção dos barcos de vapor. O mesmo não diremos do commercio terrestre, porque as enormes difficuldades a vencer, a falta de boas estradas, as longas viagens e perigos que correm os generos retardão o seu desenvolvimento.65

A despeito de apontar sem constrangimento para problemas que estariam limitando a civilização, o progresso e o desenvolvimento do Brasil, no balanço final, Malheiro mantém uma alta expectativa para o futuro do país, pois acredita que a Providência fará cessar “todos os motivos e elementos que ora retardão seu progresso estupendo” e irá promovê-lo a um “futuro grandioso e brilhante”.66

Até aqui parece coerente inferir que, além de fazer um levantamento de elementos para a composição de uma narrativa histórica, o “índice cronológico de fatos notáveis da história do Brasil” de Perdigão Malheiro estrutura também

64 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., 1850, p. 167-169. 65 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., 1850, p. 169-170.

66 “Feliz a geração que vir o Brazil povoado de centenas de milhões de homens, porêm livres todos; semeiado de ricas e populosas cidades; florecente pelo commercio, agricultura, industria, sciencias, letras e artes; com bellas estradas de ferro que transportem de huns a outros pontos com a rapidez do raio os immensos thesouros ainda pouco conhecidos e apreciados de nossas Provincias” (MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., 1850, p. 175-176).

uma abordagem analítica da história do Brasil, evidente sobretudo no “esboço do estado do país”, cuja propósito é diagnosticar entraves ao deslanche da civilização no país.

Dezesseis anos após publicado seu índice cronológico, tal linha de raciocínio persiste indisfarçável nos volumes da obra que Malheiro publicou em 1866 e 1867: A Escravidão no Brasil, Ensaio Historico-Juridico-Social. O primeiro volume “jurídico” possui uma inusitada dedicatória, na qual Malheiro diz ao Brasil que o país tem “o direito de exigir de seus filhos todo o concurso que cada um possa dar para o melhoramento, progresso e felicidade da Nação”. O resultado da análise de Malheiro é que a escravidão é um peso que necessariamente deve ser superado. Parte importante do argumento de seu “ensaio histórico-jurídico-social” é que a escravidão é nociva à civilização, ao progresso e ao desenvolvimento. Por exemplo, argumenta que o Direito e a Jurisprudência comumente decidem pela liberdade, o que considera sensato, mas que inoportunamente existem também “subtilezas” na lei do direito à propriedade ofensivas à humanidade, “contrária ás idéas christãs, da civilisação moderna”, e que, assim sendo, o “bem publico emfim que aconselha e exige que as manimissões se facilitem e multipliquem em ordem e vista de se ir extinguindo o gravissimo e barbaro mal da escravidão”.67

O segundo volume é dedicado a historiar a escravidão dos índios, um assunto necessário porque, justifica Malheiro, a "catechese e civilização" dos indígenas “se prendia e se prende immediatamente á colonização e civilização do Brasil", e, portanto, mantinha relação com os temas "da povoação, desenvolvimento e progresso do paiz”.68 Para isso, explicava Malheiro que o segundo volume teria sido organizado do seguinte modo: contém uma "historia dos Jesuitas", que seria “intimamente ligada, identificada com a dos Indios”, e também “uma parte social”, na qual “são aventadas algumas idéas sobre a

67 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A Escravidão no Brasil. Ensaio histórico- jurídico-social. Parte 1ª. (Jurídica). Direito sobre os Escravos e Libertos. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1866, p. 80.

68 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Introducção. In: __. A Escravidão no Brasil. Ensaio histórico-jurídico-social. Parte 2ª. (Índios). Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1867.

catechese e civilização dos indigenas”.69 Em primeira pessoa, assim justifica a obra:

Estes meus trabalhos são apenas um protesto que do fundo do meu gabinete e na minha obscuridade desejo fazer a bem de nossa civilização actual, das idéas e sentimentos do povo Brasileiro. A liberdade dos Indios é desde 1831 garantida pelas leis de um modo permanente e inconcusso; foi a victória das idéas liberaes, da civilização e humanidade. Resta sómente a dos Africanos e seus descendentes, que ainda gemem nos grilhões do cativeiro. Mas tudo se dispõe para esse outro grande tiumpho, porque está na consciencia de todos a justiça, a conveniencia, a necessidade da sua abolição; apenas se diverge quanto ao modo e tempo.70

Ao considerar o papel civilizatório dos Jesuítas, Malheiro recorre à história para afirmar que a aptidão à domesticação dos índios possui registros. Argumenta que, conforme poderia ser observado nos relatos dos primeiros descobridores e povoadores, bem como por meio “dos historiographos mais antigos das cousas do Brasil, dos Jesuitas e outros", justificava, "em maxima parte confirmadas pelos estudos posteriores e até contemporaneos, assim como por illustrados viajantes que tem percorrido diversas partes do Imperio", dizia, “alguma cousa

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