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2. Fundamentação Teórica

2.3 O trabalho como fenômeno psicossocial

O conceito de trabalho é dinâmico, histórico e social, e ter uma frase ou parágrafo que sintetize o significado do construto não tem sido simples até o presente momento. Nessa direção, algumas iniciativas partiram da Organização Internacional do Trabalho (OIT), responsável pela aplicação de normas, convenções e recomendações sobre o trabalho para os países membros do Sistema das Nações Unidas. A OIT, voltada para a institucionalização do trabalho, após quarenta anos de atuação, apresentou a “Declaração de Filadélfia”, texto com princípios e objetivos sobre o tema, considerado referência para

a “Carta das Nações Unidas” e quatro anos depois incluído na “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. A Declaração preconizava que...

(...) o trabalho deve ser fonte de dignidade, que o trabalho não é uma mercadoria, que a pobreza, em qualquer lugar, é uma ameaça à prosperidade de todos e que todos os seres humanos têm o direito de perseguir o seu bem estar material em condições de liberdade e dignidade, segurança econômica e igualdade de oportunidades. (http://www.oitbrasil.org.br).

A inexistência de texto identificado como definição para trabalho no sítio da OIT, nos leva a considerar a citação acima como um dos parâmetros para o trabalho. Contudo, a definição clássica veio de Marx. O pensador ao propor uma nova sociedade, incorporou as influências da concepção dialética herdada de Hegel, a teoria do valor-trabalho advinda de Adam-Smith e Ricardo, a denúncia de Engels sobre a vida miserável dos trabalhadores do capitalismo europeu e o apelo dos socialistas utópicos por uma nova ordem social.

Tais influências somaram-se ao reconhecimento do momento histórico que estava sendo vivenciado sob a bandeira das lutas de classes. Todo esse legado trouxe clarificação às suas ideias ao ponto de se propor um novo tratamento para questões sociais como o significado do ser, da consciência social, da produção social, da organização sociocultural, da ideologia e revolução. Com base nesse pressuposto, Marx asseverou que o homem e seu trabalho são indissociáveis, posto ser ele um ser prático e social, que produz a si mesmo a partir da sua práxis (processo de transformação material da realidade pela atividade originada da interação homem e natureza), na qual a atividade só começa a fazer sentido quando o homem a altera com sua conduta. Assim, o trabalho passou a

consistir nas transformações ocorridas com objetivo de suprir as necessidades humanas, sendo ele – o trabalho -, fruto da relação dialética entre homem e natureza onde ambos se transformam (Netto, 2006; Tolfo, Coutinho, Baasch & Cugnier, 2011).

Para Schwartz (1996), o trabalho não é apenas a produção de coisas, mas é usar a si próprio para, através do trabalho, se autoconstruir. O trabalho é o palco dos dramas interiores que remetem às escolhas que trazem confrontos da pessoa com ela mesma. No trabalho são criadas novas situações, que nenhuma razão anterior poderia ter previsto, por isso o trabalho é considerado realidade enigmática, difícil de ser categorizado, disciplinado, avaliado. Difícil até mesmo ter uma definição clara para trabalho, ou melhor: “impossível”, nas palavras do autor (p. 149).

Por sua vez, Leão (2012) reconhece que, mesmo com abordagens distintas, Enriquez, Dejours e Clot, teóricos da psicologia da ação, compartilham a compreensão sobre o “trabalho como atividade do sujeito, complexa e intersubjetiva, que mobiliza dinâmicas coletivas de criação de normas e formas particulares de agir, irredutíveis às prescrições” (p. 301).

Retorna-se, portanto, à palavra-chave para trabalho: práxis, pois resulta de uma atividade na qual o trabalhador dedica seu corpo e mente e, nesse esforço, a partir da realização da sua obra, consegue extrair significado (Bendassoli & Borges-Andrade, 2011). Sob esse ângulo o significado do trabalho ganha configuração de libertação, diferentemente daquela imposta pelo trabalho alienado, pois a carga afetiva nele investida causa a identidade entre autor e obra, criador e criatura, favorecendo uma representação positiva pela autonomia e construção de si.

Bendassoli e Borges-Andrade (2011) corroboram concepções do Meaning of Work International Research Team (MOW) ao considerar o trabalho como um constructo

multideterminado e produto sociocultural dinâmico; não apenas o resultado das experiências pessoais em relação a ele, mas também o resultado das influências dos demais contextos sociais, econômicos, culturais, psicossociais, políticos e tecnológicos em um período específico. Para os autores, no modelo heurístico do MOW para trabalho está expresso o seu significado com base em três dimensões, quer sejam: centralidade (grau de importância do trabalho na vida do indivíduo em dado momento); normas sociais do trabalho (o que é esperado do trabalho e o que se supõe ser correto oferecer e receber em troca, que derivam do contrato social do trabalho e implica na compreensão sobre trocas entre sujeito e organização ou sujeito e sociedade); valores do trabalho (resultados valorizados e metas do trabalho que norteiam e atualizam a postura do indivíduo no trabalho).

Para Tolfo, Coutinho, Baasch e Cugnier (2011), os estudos sobre sentidos e significados do trabalho passaram a ter maior produção na década de 1970, sob as lentes de diferentes correntes epistemológicas, fato que vem causando divergências motivadas pelas distintas visões de mundo dos pesquisadores e pela influência do cognitivismo. Nessa direção, os autores destacam dois grupos: os empírico-descritivos, com forte influência fenomenológica, e o grupo em transição, de influência existencialista.

A esse respeito, Bendassoli e Borges-Andrade (2011) reconhecem o importante legado deixado pelo MOW com o pressuposto de que o significado do trabalho é uma atitude; sendo a atitude um constructo do campo da psicologia social. De acordo com a perspectiva teórica proposta por Martin Fishbein e Icek Ajzen, teóricos, que entre os anos 1970 e 1980 estudaram o papel desempenhado pelas atitudes sobre as ações comportamentais, a atitude traz intrinsecamente as seguintes dimensões: cognitiva (crenças, conhecimentos, ideias, pensamentos, representação e informações relacionadas

a um objeto ou fenômeno), afetiva (valorações, emoções, motivações, sentimentos e necessidade) e comportamental, a ação em si (Álvaro & Garrido, 2006).

Ademais, Rodrigues, Assmar e Jablonski (2002) asseveram que as atitudes são oriundas do processo de socialização, resultam da aprendizagem e são decorrentes dos traços individuais da personalidade ou de fatores determinantes sociais expressos por meio dos componentes cognitivos, afetivos e comportamentais. No âmbito do componente cognitivo, que engloba crenças, preconceitos e conhecimentos, o trabalho ou a representação deste, relaciona-se com atitudes relativas a esse objeto. O componente afetivo, por seu turno, revela as características nítidas das atitudes sociais, com implicações de sentimentos favoráveis ou desfavoráveis e, por fim, o componente comportamental, gerado em decorrência da interação entre os anteriores, que prevê a ação do indivíduo na intenção de adotar determinado comportamento. É esse conjunto de componentes que está por trás das atitudes que traduzem e explicitam as diferentes visões, concepções, representações sobre o trabalho que cada indivíduo apresenta e que por vezes resultam em conflitos interiores, bem como em conflitos no ambiente de trabalho.

Ao reconhecer a impossibilidade de se poder prescrever ou decretar sentido ao trabalho, Lhuilier (2013) traça o claro limite entre sentido e significado, circunscrevendo a grande diferença entre eles. Estende, porém a abrangência do sentido ao afirmar que ele é “sempre construído num duplo movimento de investimento de desejos inconscientes e de validações sociais.” (p. 486).

Além disso, o trabalho - como ação, atividade - adquire sentido quando há reconhecimento para o seu resultado, primeiro pelo próprio trabalhador quando esse trabalho corresponde aos seus valores e ideais; depois quando é reconhecido pelos outros. Nessa situação ocorre a boa “utilização de si”, termo eleito por Lhuilier (2013), mais bem abordado no próximo parágrafo, com a identidade se estabelecendo pelo processo de

criação, com a criatura manifestando sua singularidade, impondo a sua marca nas suas práticas de trabalho.

A concepção marxista do trabalho está relacionada com a dualidade da “utilização de si” por Lhuilier (2013). Para a autora é pela atividade que o palco do trabalho se revela, podendo apresentar uma das facetas: ou o trabalho sonhado, desejado, ou o trabalho prescrito, num encontro único do sujeito consigo mesmo, com o outro e com o trabalho real, experienciado. Na autorrelação, o sujeito se depara com seus recursos potenciais, limitações, motivações, desejos conscientes e inconscientes que se configuram como fantasmas circunscritos ao seu empenho no trabalho. A contribuição do trabalho na construção – ou desconstrução – do sujeito passa pela utilização que ele permite que os outros façam de si e o que ele próprio utiliza de si. Essa dualidade da “utilização de si” encontra ressonância na história pessoal e no contexto social podendo adquirir significado positivo quando a contribuição dada com o seu trabalho é essencial para a vida comum e oferece acesso à realização pessoal na esfera social.

É nesse sentido que encontra eco em Marx, quando esse trabalho está associado à criatividade, à liberdade, pois é pela atividade que o homem, ao transformar a natureza, também transforma a sua natureza. Contudo, a versão oposta, quando essa utilização de si não encontra sentido na identificação com as atividades, ou não é valorizada pela contribuição dada, pelo retorno recebido em termos de identificação e reconhecimento, então o trabalho passa a apresentar uma versão negativa, um castigo, a maldição do pecado original, como identificado pela autora ao complementar que o trabalho sai da dimensão emancipadora e evidencia apenas seu caráter de necessidade, de constrangimento.

O trabalho ainda é uma atividade central na vida das pessoas, importante para o processo de identidade e para a construção de si mesmo. Como descrito anteriormente, o

trabalho pode assumir um significado positivo ou negativo, sendo esse significado dinâmico, que se modifica diante de novas situações, de novos contextos históricos, sociais, culturais e econômicos. Desse modo, sendo o trabalho uma esfera muito importante na vida, torna-se válido refletir sobre sua contribuição para a qualidade de vida das pessoas.