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Tarkovski considera que um dos papéis mais importante do diretor de um filme é saber lidar da melhor forma possível com a grande quantidade de pessoas que trabalham nele. Apenas desse modo, a ideia central, o todo coeso do filme, segundo Tarkovski, não seria esvaziado, deformado ou destruído durante a realização. Nesse sentido, o ator, o camera-man, o compositor, o cenógrafo devem trabalhar em sintonia com o trabalho do diretor, pois, como ele diria: “O objetivo de um filme; bem como sua realização, devem ser em ultima instância da responsabilidade do diretor-autor; de outro modo, ele perderá o controle das filmagens”269.

No que se refere ao roteiro - quando não é o próprio diretor que o escreve – um escritor pode assumir esse papel, desde que realize um trabalho de colaboração com o diretor do filme. Literatura e cinema, para Tarkovski, são coisas bem diversas e não podem ser confundidas. “Um escritor tem de escrever, e uma pessoa que pensa por meio de imagens cinematográficas deve dirigir filmes”270.

Deleuze elabora uma tese bem próxima dessa de Tarkovski quando sustenta, em seu texto “Qu'est-ce que l'acte de création?”, que as ideias estão empenhadas em seus próprios modos de expressão. Assim sendo, não posso simplesmente dizer que tenho uma ideia em geral, mas que tenho uma ideia em função das técnicas que conheço em tal ou tal domínio, seja no âmbito da filosofia, do cinema, ou da literatura etc. Ele diz:

Ter uma ideia em cinema não é a mesma coisa que ter uma ideia em outro assunto. Contudo há ideias em cinema que também poderiam valer em outras disciplinas, que poderiam ser excelentes em romances, por exemplo. Mas elas não teriam, absolutamente, os mesmos ares. Além disso, existem ideias no cinema que só podem ser cinematográficas. Não importa. Mesmo quando se trata de ideias em cinema que poderiam valer em romances, elas já estão empenhadas num processo

269TARKOVSKI, A. Esculpir o tempo. p. 150. 270TARKOVSKI, A. Esculpir o tempo. p. 150.

cinematográfico que faz com que elas estejam predestinadas271.

Um bom escritor ao escrever um ótimo roteiro não garante a qualidade da obra. Até porque, segundo Tarkovski, muita coisa que não existia no roteiro cinematográfico pode acabar surgindo espontaneamente durante as filmagens, como por exemplo, “a vida característica do lugar onde se desenvolve a ação, a atmosfera do set (...) o estado de espírito dos atores”272. Tudo isso pode sugerir novas estratégias, surpreendentes e inesperadas para o filme. O diretor só ignoraria tais coisas se estivesse preso demais ao roteiro. A ex-mulher do protagonista/narrador em O espelho, por exemplo, não existia no roteiro, nem no projeto inicial, mas foi incluída no filme devido às circunstâncias que se apresentaram apenas depois do início das filmagens.

Nesse sentido, para Tarkovski, o roteiro “é uma estrutura frágil, viva e em constante mutação”273. Um filme não pode se prender ao que foi predeterminado, pois ele só está pronto no momento em que se termina de trabalhar com ele. Enquanto não há fim, o filme segue em constante transformação, assim como a vida, que vai absorvendo e descartando coisas ao longo do tempo. O roteiro não é uma estrutura fixa que vai resultar no filme, ele é apenas a base a partir da qual tem início a exploração de imagens que vão compor o futuro filme.

Da mesma forma, o trabalho do diretor realizado com o ator não é algo fechado, mas vai se construindo ao longo do filme. Para Tarkovski, apresentar o projeto do início ao fim para o ator seria um erro e acabaria se tornando um obstáculo para ele, ou seja, na medida em que o roteiro é entregue e o ator tem um tempo para preparar seu papel como um todo, ele acaba perdendo algo que Tarkovski considera essencial no seu trabalho: a capacidade de atuar espontaneamente e sem premeditação.

O ator, para Tarkovski, deve viver os momentos como teria vivido se fosse sua própria vida que estivesse transcorrendo, ou seja, sem saber o que vem pela frente. O ator que

271DELEUZE, G. “Qu’est-ce que l’acte de Création?”. In: Deux Régimes de Fous. Textes et Entretiens 1975- 1995: 291-302. Paris: Minuit, 2003. p. 295: « (...) avoir une idée em cinéma, ce n´est pas la même chose qu´avoir une idée ailleurs. Il y a pourtant dês idées en cinéma qui pourraient valoir aussi dans d´autres disciplines, qui pourraient être excellentes en roman, par exemple. Mais elles n´auraient pas du tout la même allure. Et puis il y a des idées en cinéma qui ne peuvent être que cinématographiques. Il n´empêche. Même quand il s´agit d´idées en cinéma qui pourraient valoir en roman, elles sont déjà engagées dans un processus cinématographique que fait qu´elles sont déjà vouées avance ».

272TARKOVSKI, A. Esculpir o tempo. p. 151. 273TARKOVSKI, A. Esculpir o tempo. p. 157.

pressupõe como o filme tem de ser “está negando exatamente o princípio criador da imagem cinematográfica”274.

Por exemplo: na cena de O espelho em que a protagonista espera pelo marido, o pai dos seus filhos, sentada na cerca e fumando um cigarro, achei melhor que Margarita Terekhova não conhecesse o enredo, que não soubesse se o marido realmente voltaria. A história foi mantida em segredo para que a atriz não reagisse a ela em algum nível inconsciente da sua mente, mas, sim, para que vivesse aquele momento exatamente como minha mãe, seu protótipo, o vivera no passado, sem saber o que seria feito da sua vida. Não há duvida de que o comportamento da atriz teria sido diferente caso ela soubesse como seria a sua relação futura com o marido; não apenas diferente, mas também falsificado pelo conhecimento que ela teria da continuidade da história275.