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recursos cinematográficos como forma de expressar o tempo presente fundindo-se com a memória ou com o sonho, ou seja, o passado (virtual) e o presente (atual) coexistindo no mesmo plano.

Em O espelho, ainda no começo do filme, observamos a habilidade da câmera em expressar diferentes zonas do tempo em um só plano. O plano-sequência que analisaremos começa focando duas crianças que se levantam rapidamente de uma mesa e correm (Fig. 19) A câmera segue sorrateiramente deslizando pelo interior da casa (dacha), tentando acompanhá-las, ao mesmo tempo em que vai captando o movimento de objetos - a garrafa de leite vazia que cai da mesa e faz um som de cristal oco – e sonoridades – o cão que late lá fora, o relógio que faz tic-tac. A câmera segue com o plano-sequência até o momento em que fixa através de um espelho antigo algo brilhante no exterior da dacha. Trata-se de um incêndio que está acontecendo num palheiro localizado no exterior (Fig. 20). A câmera mostra esse incêndio em plano de fundo, enquanto à porta da entrada da dacha, um menino observa o incêndio em plano médio. Podemos nos perguntar: seria esse menino Alexei? Conforme a

248TARKOVSKI, A. Esculpir o tempo. p. 76.

249TARKOVSKI, A. Esculpir o tempo. p. 76. 250TARKOVSKI, A. Esculpir o tempo. p 78.

câmera vai se movimentando para o lado, uma outra criança surge, também diante da porta e parece observar o incêndio. A câmera, nesse momento, faz uma pausa e nos mostra através do espelho o incêndio ao fundo e as duas crianças paradas na porta. Seriam Alexei e sua irmã? (Fig. 21)

Quando a câmera começa a se mover novamente, ainda no mesmo plano-sequência, observamos um terceiro garoto de cabelos escuros e mais velho do que o que estava na porta, surgir da escuridão e se dirigir para fora da casa, onde o incêndio ainda acontece. Seria Alexei numa idade mais avançada? (Fig. 22)

Fig. 19 Fig. 20

Fig. 21 Fig. 22

Observamos então como o mesmo personagem, Alexei, aparece no mesmo plano, todavia em duas temporalidades diferentes: primeiro, quando aparentava ser mais novo, por volta dos 4 anos de idade e logo depois, quando aparentava ser mais velho, por volta dos 11 anos. Nessa cena Tarkovski recorre ao plano-sequência na tentativa de unificar essas duas temporalidades de Alexei. Mas porque faz isso, já que Alexei em idades diferentes jamais

poderia existir fisicamente no mesmo período? Tarkovski faz isso na tentativa de apresentar imageticamente as confusões da memória de Alexei.

Essa ideia fica clara numa cena posterior, quando a câmera percorre seu apartamento enquanto ele conversa com a mãe ao telefone. Através de um plano-sequência a câmera situa o plano, dessa vez, no presente. Isso se confirma no momento em que ao adentrar a casa, a câmera nos mostra objetos, como por exemplo, o pôster de Andrei Rublev e o quadro com a fotografia da mãe, em sua idade mais avançada (na década de 1970), pregados na parede da sala. (Fig. 23, 24)

Fig. 23 Fig. 24

Ao conversar com sua mãe, Alexei tenta resgatar o passado, tenta de alguma forma lembrar. Ele pergunta a sua mãe: “Quando o meu pai nos abandonou?” e depois “E o incêndio? Lembra-se? Quando queimou o palheiro?”. Sua mãe responde a mesma coisa para as duas perguntas: “1935”. Alexei, ao falar com sua mãe lembrava-se de ser abandonado pelo pai, lembrava-se também do incêndio, porém, não conseguia situar no tempo os dois acontecimentos, não conseguia datar. Por isso, na cena que analisei anteriormente, o plano- sequência nos mostra Alexei em duas temporalidades diferentes.

Como vimos em um capítulo anterior, tradicionalmente no cinema às memórias são representadas através de flashbacks, todavia, no cinema de Tarkovski isso não acontece. As memórias são visualizações confusas de fragmentos que não se sabe se de fato aconteceram ou se fazem parte apenas da imaginação do personagem. Nesse sentido, os dois Alexei que aparecem no mesmo plano podem ser pensados como a incerteza do personagem no presente em situar aquele período do passado. A memória do protagonista/narrador Alexei, como observamos a partir do diálogo com sua mãe, se apresenta de forma confusa. Ele consegue

lembrar dos acontecimentos, (“Meu pai me abandonou”, “O palheiro pegou fogo” ) mas não consegue datar.

Ainda no mesmo plano-sequência da conversa ao telefone com a mãe, Alexei ainda fica sabendo que Lisa morreu. A priori, Alexei não se lembra de Lisa. Sua mãe então diz que se trata de Lisa, sua amiga dos tempos da tipografia. No plano seguinte observamos o que seria a apresentação da memória de Alexei através da cena em que sua mãe corre até a tipografia para verificar um possível erro que achava que tinha cometido. Essa cena representa a reação de Alexei diante da notícia da morte de Lisa, ou seja, são suas lembranças. Não sabemos se elas aconteceram de fato como a cena nos mostra. A única certeza que temos é que elas são atualizações da memória de Alexei que foram ativadas a partir do momento que tentou lembrar algo sobre sua mãe, sobre Lisa e sobre a tipografia.

Há uma outra cena, também em O espelho, em que Tarkovski faz uso do plano- sequência na tentativa de representar imageticamente diferentes temporalidades. Trata-se da cena final, onde a câmera acompanha Alexei, sua mãe e sua irmã andando através do bosque, em volta da dacha. Todavia, a mãe de Alexei, nessa cena, aparece idosa, enquanto Alexei ainda é uma criança. Assim como a cena que analisamos anteriormente, Tarkovski mais uma vez, no mesmo plano, registra temporalidades diferentes. A mãe idosa (mãe dos anos 70) que, todavia, queria que seu filho fosse uma criança novamente, conforme Natalya, esposa de Alexei menciona numa cena, e, Alexei que sugere, ele mesmo, que apenas é feliz quando relembra sua infância. No mesmo plano, ao fundo, ainda vemos a mãe de Alexei, porém em uma versão bem mais jovem, observando tudo de longe, como se olhasse do passado para o futuro, como se respondesse a pergunta feita na cena anterior pelo seu marido: “O que você quer mais, um menino ou uma menina?” (Fig. 25, 26).

Essa mistura de temporalidades no mesmo plano possibilitada pelo plano-sequência sugere imageticamente que não há uma estrutura linear entre passado e presente, mas uma coexistência. Através dessa cena Tarkovski nos mostra que passado, presente e futuro não são entidades separadas. A mãe idosa é a mesma mãe jovem que ainda não é mãe mas que todavia quer ser. Alexei enquanto criança ainda é o mesmo Alexei que sonha e relembra a casa em que morou. Como Fellini disse e Deleuze citou em Imagem-tempo, “somos construídos como memória, somos a um só tempo a infância, a adolescência, a velhice e a maturidade”251. O passado é contemporâneo do presente que adentra e informa o futuro, como diria Bergson:

Veremos que ele (nosso espírito) se ocupa daquilo que existe, mas tendo em vista principalmente o que vai existir. A atenção é uma espera, e não há consciência sem uma certa atenção à vida. O futuro está ali; ele nos chama, ou melhor, nos puxa para si: essa tração ininterrupta, que nos faz avançar no caminho do tempo, é também a causa de agirmos continuamente. Toda ação é uma invasão do futuro252.

Sabe-se que ao evitar-se o corte constante da montagem a imagem dura mais. Os planos longos são bem característicos do cinema de Andrei Tarkovski justamente por isso. O

espelho, por exemplo, tem cerca de 200 tomadas “um número bastante reduzido quando se pensa que filmes da mesma metragem costumam ter cerca de quinhentos, o número é pequeno devido ao tamanho das tomadas”253, ou seja, devido à quantidade de planos-sequência.

Com certeza, havia razões práticas para minimizar o número de tomadas, por exemplo, para economizar rolos de filme. No entanto, o efeito pretendido dos preparativos meticulosos de Tarkovski e a preferência por um único plano era criar um espaço concreto e uma matriz narrativa em que o fluxo estocástico de tempo pode interferir de uma só vez de forma aleatória e significativa254.

251DELEUZE, G. Imagem-tempo. p. 122. 252BERGSON, H. Energia espiritual. p. 5. 253TARKOVSKI, A. Esculpir o tempo. p. 138.

254BIRD, R. Andrei Tarkovski – Elements of cinema. p. 171: “To be sure, there were practical reasons to

minimize the number of takes, for instance to economize on valuable film-stock. However, the intended effect of Tarkovski´s meticulous preparations and preference for a single take was to create a concrete spatial and narrative matrix within which the stochastic flow of time could interfere at once randomly and meaningfully”.

Através desses exemplos, podemos dizer que o cinema de Tarkovski mergulha mais no tempo do que percorre o espaço. O plano-sequência e a profundidade de campo sendo a forma de expressão da duração, do tempo real não-cronológico bergsoniano. Sendo a própria expressão de um presente que não para de passar em correlação com um passado que não para de ser. Quando o tempo deixa de ser controlado pela montagem, ele perde as coordenadas que o definiam, os limites que o reprimiam e o enquadravam numa representação apenas indireta. No cinema de Tarkovski como no cinema das imagens-tempo, de que Deleuze fala, o tempo “sai dos eixos”. Como vimos, essa vai ser a principal diferença em relação ao cinema controlado pela montagem, cinema das imagens-movimento: o tempo não mais deriva do movimento, mas o movimento é que deriva do tempo.

3.6. “Um convite a lembrar”: Nostalgia e Cidadão Kane

A profundidade de campo, assim como o plano-sequência possibilita uma continuidade da duração. Já vimos que o ponto em comum entre esses dois recursos é o privilégio dado ao plano em detrimento da montagem, enquanto a diferença entre uma e outra é que o plano-sequência, apoiado na capacidade de mobilidade da câmera – travellings255, pans256, pedestal257, tilts258, etc. – parece percorrer o plano, enquanto a profundidade de campo, devido a sua capacidade inerente ao aparelho, vai ser capaz de “mergulhar” no plano, possibilitando a permanência de diversos planos diferentes em um só. Quanto maior a profundidade de campo, maior é a possibilidade de concentrar informações num único plano.

A profundidade de campo terá uma importância dramática. Cineastas como Jean Renoir, por exemplo, vão utilizar essa capacidade da câmera de “mergulhar” no plano de maneira sistemática, a fim de determinar efeitos que irão gerar implicações estéticas a seu modo. Ismail Xavier diz que a profundidade de campo traz uma carga semântica. Segundo ele, a oposição nitidez/não nitidez marca uma série de objetos co-presentes numa imagem. “Se todos estão em foco tenho uma imagem diferente da que eu teria se apenas um ou alguns estivessem”259.

255Na terminologia do cinema, travelling é todo movimento de câmera no espaço.

256Pans ou movimento em panorâmica é quando a câmera gira em torno do seu próprio eixo, para a esquerda ou

para a direita.

257É uma espécie de travelling vertical, quando a câmera se move para cima ou para baixo, sem alterar seu eixo. 258É uma técnica cinematográfica onde a câmera gira em um plano vertical, para cima e para baixo, em seu

próprio eixo.

Em Imagem-tempo, Deleuze analisa Cidadão Kane de Orson Welles para nos mostrar de que forma o uso da profundidade de campo por esse cineasta expressa uma entrada no plano em busca de explorar uma região do passado. Deleuze usa o termo “lençóis de passado” para descrever essas grandes regiões por explorar. Em Welles então, a partir da analise deleuziana, iremos observar como a profundidade de campo possibilita a coexistência da memória virtual com a imagem atual.

Em Cidadão Kane, quando Kane já está morto, a cada momento, a cada testemunha interrogada, podemos “mergulhar” numa região do passado da vida de Kane, como se déssemos um salto para algum momento de sua vida. Nesse sentido, “cada uma das testemunhas interrogadas valerá por um corte da vida de Kane, um circulo ou um lençol de passado virtual, um contínuo”260.

Em vez da junção de dois ou três planos através da montagem, um plano único com várias “camadas”. Em Welles, os diferentes planos coexistem um com o outro – primeiro plano, plano médio, plano de fundo – e interagem entre si. Cada um representando uma zona que coexiste com todas as outras. Há uma cena em Cidadão Kane que nos ajuda a visualizar melhor essa coexistência de “camadas” no mesmo plano. Trata-se da cena do suicídio de Susan, onde podemos observar três “secções” no plano, três “camadas”. Kane, pequenininho, entrando violentamente pela porta ao fundo (plano de fundo). Susan agonizando à sombra (plano médio). O enorme copo em cima da mesa (primeiro plano). Nessa cena podemos ver, através do plano em profundidade, essas três situações em uma só, sem ser preciso que a montagem as fragmente para que entendamos melhor. (Fig. 27)

Fig. 27

260DELEUZE, G. Imagem-tempo. p. 129.

Se o cinema tradicional fosse realizar essa cena, provavelmente o plano em que Kane entra pela porta estaria separado do plano em que Susan agoniza. O plano de Kane seria mostrado primeiro, depois o de Susan e depois o do copo. A montagem assumiria a função de organizar e dar sentido a essas imagens.

Como vimos anteriormente, tanto a profundidade de campo, como o plano-sequência foram teorizados por Bazin como recursos que permitiam expressar a realidade em sua ambiguidade. Segundo Bazin, a profundidade de campo era capaz de restituir uma qualidade fundamental da imagem, ou seja, sua continuidade, além de valorizar sutilmente o acontecimento. Bazin vai dizer que a profundidade de campo “reintroduz a ambiguidade na estrutura da imagem, se não como uma necessidade, pelo menos como uma possibilidade”261.

Com Welles, pela primeira vez, a profundidade de campo, segundo Deleuze, passa a formar diretamente uma região do tempo. Welles foi capaz de ver a conquista do contínuo não apenas espacial, mas também temporal.

Queremos dizer que a profundidade de campo cria certo tipo de imagem-tempo direta, que se pode definir pela memória, pelas regiões virtuais do passado, pelos aspectos de cada região. Seria menos uma função de realidade que uma função de memorização, de temporalização: não exatamente uma lembrança, mas “um convite a se lembrar...”262.

Nesse sentido, a profundidade de campo, segundo Deleuze, teria em Welles, pela primeira vez, relação direta com a memória, nos mostrando ora a evocação em ato, ora os lençóis virtuais. A profundidade de campo também vai ter relação direta com a memória nos filmes de Tarkovski. Um exemplo em que tal recurso é usado para formar uma região de tempo está em seu filme Nostalgia. Todavia há uma diferença entre o uso da profundidade de campo em Welles e Tarkovski.

Gorchakov, personagem de Nostalgia está ligado ao passado por diversos “fios”: suas raízes, sua cultura, o lugar onde nasceu, sua família e amigos. Quando Tarkovski faz uso da profundidade de campo em Nostalgia é na tentativa de expressar a memória desse personagem, adentrar nelas.

Em Cidadão Kane, o uso da profundidade de campo expressa a memória não de Kane, pois o mesmo já se encontra morto quando o filme começa , mas a memória das pessoas que

261BAZIN, A. “A evolução da linguagem cinematográfica”. In: O cinema – Ensaios. p. 77. 262DELEUZE, G. Imagem-tempo. p. 134.

conviveram com ele. O passado de Kane é apresentado então através da memória dos outros, enquanto o passado de Gorchakov é apresentado através de sua própria memória.

Gorchakov não é convidado a lembrar, não há um esforço por parte de outros personagens na tentativa de resgatar o seu passado na Rússia, como acontece com a maioria dos amigos de Kane, que são constantemente questionados sobre o que seria Rosebud. O passado de Gorchakov não é essencial pra desvendar algo, como costuma ser nos filmes de Welles:

Em Cidadão Kane: por exemplo uma plongée se dirige sobre Susan, alcoólatra e perdida no salão do cabaré, para forçá-la a evocar. Ou então, em Soberba, toda uma cena fixa em profundidade é justificada porque o garoto quer, sem demonstrar, forçar a tia a se recordar de uma lembrança essencial para ele. E também em O processo, o contra-plongée do início marca o ponto de partida dos espaços do herói, procurando, a todo custo, aquilo de que a justiça pode acusá-lo263.

As lembranças de Gorchakov o perseguem a todo instante, surgem de modo involuntário. (A intérprete italiana que o faz lembrar de sua mulher, a casa de Domenico que o faz lembrar da Rússia) O seu próprio estado mental, o seu sofrimento é decorrente justamente do fato de estar sobrecarregado de memórias de sua vida na Rússia, da qual sente falta sempre. Suas lembranças o deixam num estado de alienação no qual não consegue se adequar ao presente, sua vida na Itália.

Um bom exemplo de como a profundidade de campo é utilizada por Tarkovski em

Nostalgia, para expressar as lembranças de Gorchakov, ocorre depois da cena em que a intérprete italiana de Gorchakov vai à capela. No plano seguinte - depois de observarmos a câmera fixar a imagem da Madonna Del Parto de Piero della Francesca - vemos Gorchakov olhar diretamente para a câmera. Depois olha para cima e uma pena cai do céu. O plano seguinte é um plano-sequência. A câmera mostra a pena na lama sendo apanhada por Gorchakov e depois de um momento foca novamente o protagonista, que agora olha para trás. Ao fundo observamos uma casa fora de foco que aos poucos se torna nítida conforme a câmera vai se movimentando para a direita. Nesse momento, quando a câmera consegue focar todas as “camadas” do plano, observamos uma casa (dacha) em plano de fundo, enquanto há pessoas olhando na direção de Gorchakov em plano médio. A imagem da casa em plano de

fundo estabelece então um diálogo espaço-temporal com Gorchakov que aparece em primeiro plano.

Como vimos em um ponto anterior, a casa nos filmes de Tarkovski representa o lugar das memórias, o lugar que liga os personagens à infância, ao passado. É por isso que ela costuma aparecer na maioria dos sonhos, lembranças que seus personagens têm. A casa (dacha) que aparece em plano de fundo nessa sequência em Nostalgia, juntamente com as pessoas que aparecem em plano médio, vão representar um “lençol de passado” ao qual Gorchakov, mesmo sem querer, é constantemente levado a entrar em contato. A profundidade de campo em Nostalgia leva o personagem a lembrar, a entrar em contato, a coexistir com esse lugar sobrecarregado de memórias que constitui um elo entre ele, onde se encontra no momento, e o passado, ao qual, em primeiro plano, olha de longe em profundidade.