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A segunda tese sobre o movimento: a representação do movimento feita pelos antigos e

1.4. A imagem e o movimento

1.4.3. A segunda tese sobre o movimento: a representação do movimento feita pelos antigos e

A segunda tese de Bergson sobre o movimento diz respeito a duas ilusões diferentes do movimento que Bergson trabalha em A evolução criadora: a representação do movimento feita pelos antigos e a representação do movimento feita pelos modernos.

Para os antigos, o movimento se explica como algo que existe em função de formas, modelos, pontos de referência perfeitos. “Ideias que são, elas próprias, eternas e imóveis”66. Os gregos tinham condenado o devir e subtraído a lei do tempo. As ideias, para eles, eram o todo da realidade inteligível e representavam o equilíbrio teórico do ser. Nessa conjuntura, o devir equivalia ao não-ser platônico. Logo, a duração, considerada destrutiva, seria anulada e as coisas reconduzidas às ideias, ou seja, aos puros conceitos que não duravam, mas que, do contrário, sintetizavam toda a realidade.

O procedimento da filosofia antiga ignorava o movimento real e apenas trabalhava com um momento do tempo, com um ponto. Como o devir chocava os hábitos do pensamento e se inseria mal nos quadros da linguagem, os gregos o declararam ilusório, falso. A filosofia

64MACHADO, A. Pré-cinemas e Pós-cinemas. p. 109. 65MACHADO, A. Pré-cinemas e Pós-cinemas. p. 111. 66DELEUZE, G. Imagem-movimento. p. 12.

antiga, diz Bergson em A Evolução Criadora, “parte da forma, vê nela a essência mesma da realidade (...) a duração e o devir não seriam mais que a degradação”67.

Tão importante para Bergson, a duração era vista pelos gregos apenas como a degradação da Ideia. Vale lembrar que Platão atribuía a plenitude do ser ao mundo das ideias eternas e imóveis. Nesse sentido, se para Bergson a forma era apenas uma transição, para Platão ela era a essência mesma da realidade68.

A outra maneira de abordar o movimento é a da ciência moderna. A diferença entre a representação do movimento dos antigos e a representação do movimento dos modernos era que, enquanto os antigos consideravam apenas os instantes privilegiados, os modernos consideravam todo e qualquer momento. Para os modernos, todos os instantes se equivaliam e nenhum deles tinha o direito de se instituir como instante representativo ou dominador dos outros. “Mesmo que o movimento fosse recomposto, ele não era mais recomposto a partir de elementos transcendentais (poses), mas a partir de elementos materiais imanentes (cortes)”69.

Os modernos, ao introduzirem o tempo como variável independente, conseguiam recompor o movimento não mais a partir do estático, mas a partir de instantes relativos onde todos os momentos da trajetória eram importantes.

No entanto, apesar da diferença em relação aos antigos, a ciência moderna opera também de acordo com o mecanismo cinematográfico do pensamento, visto que capta vistas da realidade como se fossem fotografias instantâneas, mas não a realidade mesma. Bergson diz: “É o mesmo mecanismo cinematográfico nos dois casos, mas, no segundo, atinge uma precisão que não pode ter no primeiro”70.

Na ciência moderna, não se trata de uma pose, de um instante privilegiado, como na ciência antiga, mas de um instante qualquer em relação a instantes quaisquer. Uma foto instantânea que isola qualquer momento que seja e põe todos no mesmo plano. “É assim que o galope de um cavalo se espalha (...) num número tão grande quanto se queira de atitudes sucessivas, em vez de se contrair numa atitude única, que brilharia num instante privilegiado e iluminaria todo um período”71.

67BERGSON, H. A Evolução criadora . p. 344.

68Bergson confirma que as formas e as ideias, tanto para Platão como para Aristóteles, correspondem apenas a

momentos estáticos sem duração, momentos que foram fixados pela linguagem. Ele diz: “Na física de Aristóteles, é pelos conceitos do alto e do baixo, de deslocamento espontâneo e de deslocamento forçado, de lugar próprio e de lugar alheio, que se define o movimento de um corpo lançado no espaço ou caindo em queda livre”. In: BERGSON, H. A Evolução criadora. p. 357.

69DELEUZE, G. Imagem-movimento. p. 12. 70BERGSON, H. A Evolução criadora. p. 359. 71BERGSON, H. A Evolução criadora. p. 359.

Como Deleuze sugere em Imagem-movimento, o cinema está inserido na concepção moderna visto que reconstitui o movimento não através de poses que se transformam em outras poses, mas através de instantes quaisquer, instantes equidistantes que dão impressão de continuidade.

Embora Bergson não reconheça no cinema um aliado de seu projeto filosófico, nem considere o modo como a ciência moderna aborda o movimento, Deleuze em Imagem-

movimento sustenta que a ciência moderna, por reportar o movimento a momentos quaisquer, e o cinema por estar inserido nessa concepção, tornam-se capazes de pensar a produção do novo. Ele diz:

Quando reportamos o movimento a momentos quaisquer, devemos nos tornar capazes de pensar a produção do novo, isto é, do notável e do singular em qualquer um desses momentos: trata-se de uma conversão total da filosofia; e é o que Bergson se propõe finalmente fazer: dar a ciência a metafísica que lhe corresponde e que lhe está faltando como uma metade falta à outra metade. Mas é possível se deter nesse caminho? É possível negar que as artes também tenham de fazer tal conversão? E que o cinema seja um fator essencial a esse respeito, e que ele tenha inclusive um papel no nascimento e na formação deste novo pensamento, deste novo modo de pensar?72

Assim como Bergson sustenta que a ciência moderna tem necessidade de uma nova filosofia, uma filosofia que seguisse o fluxo do real, Deleuze sugere que ela (a filosofia) tem a necessidade de uma nova arte que realize também o que Bergson espera da filosofia. Como Cíntia Vieira irá dizer: “o cinema deixaria de ser apenas um meio de dar visibilidade a uma antiga e ilusória maneira de conceber o movimento, para se tornar um fator importante na elaboração de um novo modo de pensá-lo, aliando-se às revoluções em curso na ciência, nas demais artes e na filosofia”73.

O cinema, nesse sentido, confirmaria o que Bergson queria para a filosofia, ou seja, seria a arte aliada na formação de um novo pensamento e, consequentemente, faria exatamente o que se esperava que a filosofia fizesse: pensar o movimento real e o tempo de modo independente do espaço.

72DELEUZE, G. Imagem-movimento. p. 16.

73VIEIRA, C. “Imagem, matéria e movimento: equivalências bergsonianas para uma ético-poética deleuziana”.

Desse modo, o cinema, não seria apenas um mero reprodutor de ilusão, como pensava Bergson, ao defender que as imagens do cinema são simplesmente ordenadas por uma sucessão de cortes imóveis. Ao contrário, o que Deleuze nos mostra é a capacidade do cinema, das imagens-movimento, de lidar com o próprio fluxo do real. Tornando-se assim aliado do próprio pensamento bergsoniano que antes criticava-o. Tarkovski também parecia compreender essa capacidade que o cinema tinha de lidar com a duração quando diz que “nenhuma outra arte pode comparar-se ao cinema quanto à força, a precisão e à inteireza com que ele transmite a consciência dos fatos e das estruturas estéticas existentes e em mutação no tempo”74.

1.4.4. A terceira tese sobre o movimento: o movimento como corte móvel da