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6. O Técnico Superior de Reeducação

6.1. O trabalho social

Estando as funções dos Técnicos Superiores de Reeducação legalmente definidas, é importante perceber a efetivação prática do trabalho destes técnicos nas prisões portuguesas. Embora em Portugal não haja nenhum estudo direcionado apenas para este tema, é possível encontrar alguns autores que, no âmbito das suas investigações, tiveram em conta o papel dos técnicos, assim como a opinião dos mesmos sobre as suas tarefas.

Inês Gomes (2008) realizou, no âmbito da sua dissertação de mestrado sobre reinserção de ex-reclusos, uma breve recolha de opiniões/informações dos técnicos, a título informal, no Estabelecimento Prisional de Coimbra, onde fez a investigação em 2006, ainda como estagiária curricular. Na sua investigação, Gomes (2008, p. 42) tentou perceber o tipo de apoio que era dado pelos técnicos, aquando da saída do recluso em liberdade. Eis dois testemunhos:

(…) seria possível criar e fazer cumprir este tipo de programas. (…) sistema carcerário é pouco educativo, (…) ele sai sem retaguarda familiar (na maior parte das vezes) e sem dinheiro. A primeira coisa que fazemos é orientá-los a requerer o RSI (Rendimento Social de Inserção). (…) mas estes utentes são geralmente indivíduos isolados). (...) Pela minha experiência, o plano individual (…) passava muito pela aprendizagem de um ofício que se tornou inútil quando saíram. (Gomes, 2008, p. 42)

Eles saem de lá sem se ter conseguido planear muito bem como vai ser a reinserção, (…) da falta de protocolos com outras instituições. (…) Penso que essa será uma das principais falhas. (Gomes, 2008, p. 41).

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É possível, assim, perceber que os principais problemas apresentados assentam essencialmente num sistema carcerário pouco educativo, que tem em vista a aprendizagem de um ofício inútil no meio exterior à prisão, para além da falta de treinos que reeduquem os comportamentos dos indivíduos. Gomes, refere ainda que a falta de técnicos superiores nas cadeias, e a falta de protocolos com instituições exteriores leva à uma deficiente preparação da liberdade do recluso, sendo que o mesmo é muitas vezes colocado em liberdade sem qualquer suporte social e/ou financeiro ao seu dispor, sendo apenas aconselhado dirigir-se à Segurança Social, entidade esta que se responsabilizara totalmente pelo encaminhamento do recluso.

A par disso, Gomes tentou, também, perceber que tipo de avaliação os técnicos faziam da efetivação da política escolar e de formação profissional exercidas no contexto prisional. É referido o “(…) desfasamento existente entre o que é lecionado lá dentro e a realidade exterior. Além disso, estas atividades são em número restrito, o que não possibilita o acesso a toda a população prisional (…)”. Percebe-se assim que a formação escolar lecionada não é compatível com os programas escolares regulares. Do mesmo modo, os ofícios aprendidos nada têm a ver com as necessidades e aprendizagens no meio externo.

De uma formal geral, a percepção de que as atividades organizadas são inferiores às necessárias e não servem de igual forma toda a população reclusa parece bem presente. Além disso, denota-se uma seleção muito precisa dos reclusos para participação dos mesmos, já que é referido que apenas os bem comportados são aceites para colaborar nas formações e ou outro tipo de ocupações existentes:

Só alguns é que têm essa possibilidade. (…) são os mais bem comportados que usufruem, (…) deveriam pensar um bocadinho na ocupação e na formação dos reclusos (Gomes, 2008, p. 41). (…) apanhei ex-reclusos que quando estiveram presos aprenderam e desenvolveram competências (…) não lhes serve de nada, (…)

Segundo Gomes, a desadequação das formações às necessidades resolvia-se com um estudo que fizesse perceber as necessidades do meio exterior, de modo a formar os reclusos

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nesse sentido, preparando-os para um ofício útil, com possibilidade de uma colocação laboral que lhes permitisse reinserirem-se na sociedade mais facilmente.

Já em França, Yasmine Bouagga (2013) iniciou o desenvolvimento de uma investigação semelhante à que se pretende desenvolver a partir desta investigação, embora o seu principal ponto de partida seja as alterações “morais” a que a carreira está associada.

Bouagga explora as reconfigurações dos perfis profissionais e das identidades profissionais dos técnicos de reinserção social ao longo dos anos 2008 e 2011. Analisa as várias dinâmicas associadas à esfera penal, os desafios impostos por ela, a sobre-população prisional, os constrangimentos administrativos das prisões, a transposição do papel do assistente social para o papel de criminólogo e, para além de tudo isso, analisa ainda o atual papel de técnico superior de reeducação como mediador do sistema penitenciário e do sistema judiciário.

Na investigação de Bouagga (2013), o objetivo centra-se nos “dilemas morais” criados pelas transformações do trabalho do técnico intramuros. Para isso, a autora conduziu uma investigação entre 2008 e 2011 em dois estabelecimentos prisionais masculinos franceses. Uma das prisões foi a de Dugnes, constituída por 2000 reclusos, e a outra foi a de Broussis, que alberga cerca de 900 reclusos. Ambos os estabelecimentos prisionais estudados estavam sobrelotados, sofriam várias mudanças ao nível da equipa técnica de reinserção social, assim como se caracterizavam por uma variação significativa de reclusos, quer pelo tempo de cumprimento de pena, quer pelas constantes transferências realizadas.

Quando a investigação foi realizada, o estabelecimento prisional de Dugnes (com uma população de 20000 reclusos) era constituído por 24 “técnicos de reinserção social” (4 deles tinham mais de 10 anos de serviço prisional) e o estabelecimento prisional de Broussis (com uma população de cerca de 900 reclusos) era constituído por 9 técnicos de reinserção social (1 deles tinha mais de 10 anos de serviço, e outros 4 ainda se encontravam numa fase de

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adaptação ao sistema), sendo que cada técnico se encontrava responsável por cerca de 80 a 120 reclusos.

Tal como a própria autora refere, tais números denotam claramente o distanciamento entre os técnicos e os reclusos. Acresce que que os gabinetes dos técnicos se encontram num edifício diferente do das alas da prisão, e o encontro entre as duas partes só acontece após a realização de um pedido por escrito dos reclusos. (Bouagga, 2014)

Com base na mesma investigação, Harcout (ref. in Fassin, Bouagga, et al, 2013) refere que a falta de tempo para um acompanhamento mais próximo e individualizado leva os técnicos a uma recolha de informação de forma a caracterizar os casos, à partida, como prioritários ou não prioritários. Segundo o autor, tal forma de atuação responsabiliza em larga percentagem os técnicos pelos atos dos reclusos, ou seja, é criada a percepção de que através das entrevistas/atendimentos realizados com os reclusos é possível prever ou perceber o tipo de comportamento que os mesmos irão adotar no futuro face às várias situações. Mas como refere a autora: “we do not have a crystal ball” (Bouagga, 2014, p. 84).

Um outro aspeto de importante reflexão, abordado por Wacquant (ref. in Fassin, Bouagga, et al, 2013) é o tipo de orientação que deve ser realizada pelos TSR. Este autor refere que a maior parte dos reclusos é proveniente de zonas pobres, jovens delinquentes, emigrantes, portadores de doenças mentais, sem-abrigo, entre outros.

A falta de respostas sociais e de soluções é muitas vezes apontada pelos técnicos franceses, “of course it’s not fair, but we feel powerless: when you are confronted with a homeless guy, there’s nothing you can do for him, there are not enought social shelters outside

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Anne Théron, técnica superior no estabelecimento prisional de Dugnes, desde 1975, (ref. in Bouagga, 2014), explica que os reclusos são caracterizados segundo cinco segmentos de avaliação específicos, sendo que o que fica colocado no primeiro segmento tem todas as possibilidades de voltar a ser reinserido na sociedade, no reverso, o recluso que fica no quinto segmento não terá qualquer tipo de intervenção para a reinserção, e conclui que: “(…) so nothing will be donne for him: it is scary!”.

No entanto, em 1992, Feeley e Simon, também no contexto prisional francês, aperceberam-se de que poderia existir toda uma nova forma de acompanhar os reclusos, caracterizada por ter como principal preocupação a provisão da residência, ao invés da reinserção socioeconómica e da moralidade de comportamentos, a qual levava os técnicos a uma forma muito confusa de intervenção: “you have to be at the same time in a caring attitude, displaying empathy, concern, while you are also evaluating and controlling!” (Bouagga, 2014)

Por estranho que pareça, a verdade é que a burocracia exigida aos técnicos superiores de reeducação é referida por Feeley e Simon (ref. in Bouagga, 2014) como facilitadora da gestão das relações, isto porque justifica de alguma forma a distância que tem de ser criada, assim como as constantes avaliações do comportamento dos reclusos. Fazendo com que em situações de residência e de regresso ao estabelecimento prisional, os técnicos superiores de reeducação adotem uma postura que responsabilize o próprio indivíduo, ao invés de se poderem envolver emocionalmente com a situação.

Um outro investigador, também da mesma área de estudo e também em França, Xavier De Larminat, entre 2007 e 2008, levou a cabo um estudo tendo também como foco os técnicos superiores de reeducação. Larminat (2013), pretendia abordar dois tipos de intervenção distintos, o trabalho dos técnicos de reinserção e o trabalho realizado pelos técnicos superiores de reeducação, que nos estabelecimentos prisionais escolhidos pelo investigador funcionam paralelamente. Para tal, realizou a investigação em dois estabelecimentos prisionais diferentes, o de Beauchcamp que se fazia constituir por 10 profissionais de reinserção, e o de Durbai que compunha um grupo de 27 técnicos. Durante seis meses, com uma frequência de três vezes por

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semana, o investigador realizou observação direta em cada um dos serviços, tendo ainda realizado 25 entrevistas a 25 técnicos diferentes. Estas tinham como principal objetivo conhecer a trajetória da carreira, assim como recolher informação acerca do ponto de vista dos técnicos sobre o próprio trabalho e práticas aplicadas.

Através da investigação de Larminat, foi possível perceber que embora os técnicos de reeducação admitam a falta de grau académico para desempenharem determinadas funções especificas provenientes de áreas de estudo que não são diretamente as dos técnicos, na realidade acabam por desempenhá-las. Isto acontece porque o trabalho do TSR é multifacetado, já que enfrenta desafios de várias áreas do conhecimento, como é o caso da sociologia, psicologia, criminologia e até da ciência política, áreas que adquirem cada vez mais importância, quando colocadas a par da reinserção social e do trabalho individualizado a realizar com o recluso (Larminat, 2013).

Os técnicos de reinserção social desta investigação referem que são precisos cerca de seis meses para que uma relação de confiança seja construída no sentido de uma intervenção individualizada adequada, o que inclui contactos com a rede de suporte do recluso (relações familiares, relações interpessoais, relações laborais, relações de amizade).

Mas, tal como os técnicos superiores do estudo de Durnain e Beauchcamp referem, o tipo de intervenção é definido muitas vezes pelas opções que a própria administração da prisão permite que sejam utilizadas. Em 2000 foi admitido pelas prisões francesas um projeto denominado “project sentence-serving”, este projeto dissociou-se do termo “utente”, dando lugar ao novo termo de “cliente”, já que o mesmo, por si só, reconhece efetivamente direitos aos reclusos, passando a existir uma revisão periódica do tipo de diagnóstico e intervenção a ser aplicada.

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Mas nem sempre tal forma de atuação é possível para os técnicos de Beauchcamp, que referem que “we do diffential follow up simply because there are too many cases” (Larminat, 2013, p. 3). Assim sendo, os diagnósticos acabam por funcionar como avaliadores do risco da estabilidade/instabilidade do estabelecimento prisional, ao invés de instrumentos para um plano de intervenção para a reinserção social personalizada.

Através destes três estudos distintos foi possível perceber as principais dificuldades que os técnicos superiores de reeducação/reinserção social noutros estabelecimentos prisionais fora do país referem aquando da sua intervenção juntos dos reclusos.

De modo geral, as opiniões dos técnicos nas três investigações anteriormente apresentadas são transversais. Todas elas de alguma forma referem que o tipo de intervenção utilizada não vai ao encontro das necessidades específicas da população reclusa, que as atividades organizadas não os preparam devidamente para a liberdade, nem chegam a atingir os objetivos de capacitação intelectual da forma pretendida, que as ocupações laborais não vão ao encontro das necessidades laborais em meio externo, que nas atividades organizadas apenas participa uma minoria da população reclusa e os que participam são seletivamente convidados a colaborar nas mesmas, que o trabalho dos técnicos também depende muito dos objetivos da Direção do Estabelecimento Prisional, assim como da intervenção personalizada do, técnicos. Ou seja, que apesar dos princípios de intervenção serem os mesmos no acompanhamento do recluso, as intervenções, na prática, são realizadas conforme a disponibilidade do técnico e a urgência dos problemas relativos a cada recluso. Por último, é possível ainda perceber que os reclusos, quando saem em liberdade, muitas vezes saem pouco orientados e sem uma retaguarda segura para a vida em liberdade.

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