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A existência de uma rede interorganizacional com muitas pessoas dispostas a colaborar na tentativa de reverter os efeitos de um mal coletivo progressivo na cidade de São José dos Campos não se sustentou. A configuração inicial de prévia disposição à cooperação, do aporte normativo, do desenho institucional, do aprendizado contínuo dos apaqueanos e da confiança entre os membros da rede não bastaram e a gestão do Presídio Humaitá pela APAC joseense (1984-2008) encerrou suas atividades.

Em retrospecto, houve algumas mudanças de curso no decorrer da co-gestão da APAC no Presídio Humaitá. Inicialmente, como já mencionado, a APAC custeou com subsídio da comunidade a reforma do prédio público, com o aval de autoridades locais. Dez anos depois, o Governador do Estado de São Paulo40 formalizou o uso do imóvel a favor da APAC, a título precário (SÃO PAULO, 1994). Este apoio da administração estadual representou um marco na

40 Com base no Decreto nº 38.486, de 24 de março de 1994, do governador Luiz Antônio Fleury Filho (SÃO PAULO, 1994).

história da APAC, que, aparentemente, estava cada vez mais sendo reconhecida como uma instituição de utilidade pública com reputação positiva entre seus pares. Supõe-se que os atores envolvidos no processo colaborativo vivenciaram repetidas oportunidades de obtenção de informações mais completas e fiáveis a respeito das características da rede interorganizacional e da busca do bem coletivo (POTEETE; OSTROM; JANSSEN, 2011 [2010]).

Todavia, em 1999, as atividades da APAC joseense foram interrompidas por denúncias de corrupção na instituição, com repercussão nacional (FOLHA, 1999; ISTO É, 1999), apuradas pelo Conselho de Magistratura de São Paulo. Na ocasião, foi identificado um Juiz de Execução Penal que cometia atos ilícitos (venda de vagas nas unidades penais), e inocentados os dirigentes e demais membros da APAC joseense, após conclusão da investigação. Percebeu- se, à época, a condição vulnerável a que estava submetida a APAC primordialmente em relação a especificidades do Sistema Normativo, do Desenho Institucional e da Confiança, consoante ao Modelo de Análise (rever Quadro 2).

Em que pese o apoio do Poder Judiciário joseense, a decisão de autoridades do governo estadual frequentemente se sobrepõe às escolhas das instâncias locais. Muito embora contasse com o apoio do magistrado e de diferentes atores de São José dos Campos, a dependência da renovação de convênios garantindo os recursos para manutenção dos serviços prisionais deixava evidente a efêmera estabilidade da APAC joseense. A influência do contexto amplo mostrou ser essencial à constituição da rede interorganizacional, como indicado por Poteete, Ostrom e Janssen (2011 [2010]). Estar à mercê de interesses de grupos políticos a cada novo mandato do representante do Governo Estadual ou da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) tornava a existência da rede prisional incerta.

A respeito das características institucionais, especialmente às relativas à fiscalização da rede interorganizacional, Tachizawa (2012), Weidenbaum (2009) e Brown et al. (2000) alertam para que se invista na transparência dos indicadores de prestação de contas, por exemplo, por serem aspectos passíveis de questionamento. O controle minucioso do uso do erário exige competência técnica da equipe gestora e respeito aos critérios e prazos de prestação de contas estabelecidos pelo ente estatal. Ottoboni (2012a) afirma com convicção que na ocasião não havia quaisquer débitos com a coisa pública. As acusações anteriores não levantaram dúvidas nesse sentido, mas quanto à idoneidade moral de atores apaqueanos acusados de descumprimento da legislação.

De difícil mensuração, o elevado nível de confiança entre os envolvidos na solução de um dilema social perdura até que, após a conquista da reputação de confiável, um indivíduo,

por exemplo, desperte a desconfiança do grupo. Em grupos privilegiados (OLSON, 1999 [1965]), a possibilidade de observação permite o conhecimento sobre a existência de admoestação ao membro descumpridor das regras e normas sociais, além do contínuo acompanhamento das atitudes do mesmo dentro da rede interorganizacional. No caso da condenação do Juiz de Execução Penal que cometia atos ilícitos, as oportunidades de comunicação pessoal com o mesmo eram restritas. Infere-se que em uma situação dilemática, em ambiente com assimetria de informação, o magistrado optou por maximizar seus ganhos individuais ilicitamente colocando em xeque a mobilização social pelo bem coletivo.

Posteriormente, sob novas condições contratuais, em 2002, após nova reforma do imóvel – custeada com recursos estatais (ESTADO DE SÃO PAULO, 2002) – e o desafio da implantação do Centro de Ressocialização Feminino, a APAC de São José dos Campos retomou suas atividades. Porém, o convênio41 reestabelecido com a APAC joseense incluía termos que destituíam antigas conquistas da instituição (OTTOBONI, 2012a). O Tribunal de Justiça de São Paulo42 restituiu o Presídio Humaitá à Secretaria de Segurança Pública e, pelo convênio, tanto

a diretoria como os cargos auxiliares passaram a ser de competência da Secretaria de Administração Penitenciária. Deste modo, a atuação da APAC limitou-se ao trabalho ressocializador, como no início das suas atividades (1972-1983), o que para os apaqueanos foi considerado um retrocesso, um impedimento à continuidade dos trabalhos.

No decorrer dos anos, sem o efetivo cumprimento do Método APAC, a rede interorganizacional estava sendo acionada judicialmente pelas dívidas que se acumulavam e não poderia mais contar com a ajuda financeira de outrora. Deste modo, segundo Ottoboni (2012a, p.70), em 2008, “[...] o Conselho Deliberativo decidiu desativar a APAC, pela somatória de medidas de hostilidade resultantes ao longo do percurso do trabalho ressocializador com as presidiárias.” Considera-se que parte dos enfrentamentos acumulados que contribuíram com o encerramento das atividades da APAC joseense era de contexto amplo (POTEETE; OSTROM; JANSSEN, 2011 [2010]), relacionados ao Sistema Normativo (rever Quadro 2). O espinhoso relacionamento entre os membros da rede interorganizacional e os atores políticos43 foi decisivo ao inviabilizar a prestação de serviços pela APAC.

41 Com base no Decreto nº 45.403, de 16 de novembro de 2000, do governador Mário Covas (SÃO PAULO, 2000b), cujo secretário da Administração Penitenciária de São Paulo era Nagashi Furukawa (1999-2006). 42 Conforme processo G-20.428/77 do Tribunal de Justiça de São Paulo (OTTOBONI, 2012a).

43 O secretário da Administração Penitenciária de São Paulo era Antônio Ferreira Pinto (2006-2009) que, posteriormente, passou à Secretaria de Estado da Segurança Pública (2009-2012).

Paralelamente, Ottoboni (2012a) teceu críticas à falta de apuro da diretoria44 da APAC quando celebrado o convênio supracitado com a Secretaria de Administração Penitenciária. O autor apontou que houve inabilidade dos voluntários por não terem identificado no plano de trabalho itens contraproducentes que obrigava a rede prisional a arcar com determinados custos enquanto oficializava a transferência do patrimônio da APAC (inclusive doações da sociedade civil) ao ente estatal. Tais questões remetem à dimensão Aprendizado (POTEETE; OSTROM; JANSSEN, 2011 [2010]) do Modelo de Análise, no tocante às normas partilhadas entre os voluntários conhecedores dos preceitos da rede interorganizacional do sistema prisional.

A nova condição contratual tornou exíguo o nível de cooperação entre atores-chave essenciais ao funcionamento da rede prisional apaqueana. Possivelmente, a equipe dirigente da unidade penal esteve diante de um impasse político-institucional e, no contexto brevemente descrito, fez a escolha que parecia mais acertada à época, evitando a imediata suspensão das atividades prisionais. Para Ottoboni (2012a), as irregularidades do convênio evidenciavam a estratégia estatal de limitar a vida útil da APAC45, posto que não havia abertura para negociação

dos condicionantes. Conclui-se que, nas condições descritas, a não assinatura do convênio significaria o encerramento imediato das atividades da APAC de São José dos Campos; a assinatura do convênio, adiou momentaneamente o funcionamento da rede interorganizacional do sistema prisional.

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Não houve pretensão de esgotar os aspectos favoráveis e impeditivos à cooperação em um único ambiente dilemático do sistema prisional. As contribuições deste estudo podem ser mais significativas ao considerar as experiências de gestores de unidades penais em diferentes contextos e graus de implantação da rede interorganizacional do sistema prisional.

Para tanto, por meio de uma pesquisa exploratória foi estabelecido um conjunto de proposições capazes de identificar em que condições a dinâmica de cooperação pode ser estimulada ou dificultada em prisões geridas por organizações não-governamentais no país. Antes da apresentação dos resultados e das proposições, o próximo capítulo evidencia o percurso metodológico adotado para esta pesquisa.

44 No período de 2001-2002 Mário Ottoboni afastou-se da presidência da APAC joseense por problemas graves de saúde (OTTOBONI, 2012a).

45 As APACs paulistas, como a de Bragança Paulista (SÃO PAULO, 2000a), Birigui (SÃO PAULO, 2009) e Jaú (SÃO PAULO, 2011), dentre outras, tiveram a cessão de direitos revista ou foram investigadas pelo Tribunal de Contas do Estado e da Justiça por suspeita de irregularidades. Decisão recente do colegiado isentou de culpa a APAC de Sumaré, uma das denunciadas (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2012).

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

“Esses dois polos, desejo de rigor e necessidade de descobrir, […] faz a análise de conteúdo oscilar entre duas tendências.” (BARDIN, 2011 [1977], p.35)

Esta seção visa esclarecer de que maneira o processo recursivo das etapas deste trabalho contribuiu para a elaboração de proposições respondendo à pergunta motivadora da pesquisa. As considerações metodológicas foram divididas em Desenho de Pesquisa, Coleta de Dados e

Tipo de Análise, mas, inicialmente, são destacadas as contribuições das primeiras pesquisas

para este estudo na Retrospectiva em Campo.