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O ensino odontológico: ainda sob a influência do tecnicismo e mecanicismo flexnerianos A compreensão das raízes da formação superior em odontologia passa pelo

entendimento do que foram o relatório Flexner — publicado em 1910, pela Fundação Carnegie, dos Estados Unidos, e que definiu o paradigma da medicina científica (MENDES; MARCOS, 1984) — e o relatório Gies — publicado pela mesma fundação e que aborda a educação dental nos Estados Unidos e Canadá, com o objetivo de sistematizar o ensino e a prática odontológica, que buscavam uma autonomia frente à medicina (MEDEIROS, 2004).

As recomendações de Abraham Flexner no relatório que levou o seu nome tiveram amplo impacto na formação médica em quase todo continente americano. Podemos dizer que o Relatório Flexner veio legitimar a medicina científica como a única verdadeira, combatendo as práticas médicas alternativas e a proliferação das escolas médicas sem vínculos universitários e sem pré-requisitos para as matrículas. Mas, se conseguiu combater o charlatanismo, a nova concepção médica baseada na ciência cartesiana também levou à desvalorização do humanismo no contexto da prática. Fundamentado em um paradigma biologicista e mecanicista para a interpretação dos fenômenos vitais, acabou estimulando o culto, não à saúde mas à doença, e a devoção à tecnologia (SCHERER; MARINO; RAMOS, 2005).

Os mesmos pressupostos do relatório Flexner se encontram no relatório Gies, estabelecendo-se os referenciais da odontologia científica, que se caracteriza por: 1) mecanicismo — a analogia do corpo humano com a máquina: como a máquina é formada por partes e peças, o homem é visto e estudado segundo sistemas e órgãos; 2) biologicismo — que pressupõe o reconhecimento crescente da natureza, das causas e das consequências biológicas das doenças; 3) individualismo — expresso pela eleição do indivíduo como objeto e pela exclusão dos fatores sociais da vida do indivíduo; 4) especialização crescente — em razão do

boom de conhecimentos, técnicas e materiais, o que, por sua vez, faz que exista uma busca

pelo domínio profundo de conhecimentos em determinada área específica; 5) exclusão de práticas alternativas — pois são consideradas mais ―válidas‖ as que demandam alta tecnologia, equipamentos sofisticados, materiais onerosos etc., em detrimento daquelas

alternativas vistas, a princípio, como ―ineficazes‖; 6) tecnificação do ato odontológico — quando o grau de densidade tecnológica passou a ser o parâmetro de qualidade, com incorporação de tecnologia para a prestação da assistência; 7) ênfase na odontologia curativa — pela valorização do processo patológico em si, ou seja, pela atuação à luz dos sinais de doença, em vez de seus determinantes; 8) gestão tecnocrática — na medida em que a aplicação desta odontologia flexneriana aos serviços coletivos leva a uma situação de monopolização de conhecimentos, em que poucos profissionais estabelecem programas, objetivos e metas a ser seguidos sem a participação de todos os envolvidos (VALENÇA, 1998). Hegemonicamente, esses referenciais têm norteado o ensino odontológico e os modelos assistenciais em saúde bucal no Brasil.

Maltagliati e Goldenberg (2007, p. 7) informam que, por meio do relatório dental ―Education in United States and Canadá‖ (GIES, 1926), defendeu-se a constituição de um curso independente que se inscrevia num movimento ―[...] contra a ignorância, a comercialização [do ensino] e o charlatanismo‖. O relatório acentuava, portanto, a relação entre a medicina e a odontologia, bem como o compromisso de ambas com a saúde pública, preconizando a formação fundamentada na ciência, com adequado treinamento. Incluindo o ensino das áreas básicas, o curso de Odontologia comportaria três anos de treinamento e um ano — opcional — de especialização, o que daria condições para o desenvolvimento tecnológico e científico da prática profissional.

Entretanto, segundo Moysés (2004), foram diversos os (des)caminhos médico- odontológicos desde a normatização do seu ensino pelos relatórios Flexner e Gies. A concepção mecanicista, com redução da doença à dimensão biológica, levou à maior ênfase no processo curativo-reparador, o que gerou uma prática de alto custo, baixa cobertura, com pouco impacto epidemiológico e desigualdades no acesso. Sobre a formação tradicional do dentista brasileiro, esse autor menciona seu viés mais importante, implicado com o racionalismo dominante nas universidades brasileiras:

Este viés poderia ser qualificado com o seguinte epíteto: o ―erro‖ de Descartes. Ou seja, o paradigma cartesiano disjuntivo, aplicado ao pensamento e a ação, com a separação do todo em partes e as demais dissociações decorrentes: sujeito/objeto, alma/corpo, espírito/matéria, qualidade/quantidade, sentimento/razão, existência/essência, liberdade/determinismo. Este paradigma, aplicado aos currículos e disciplinas do meio biomédico, após as sucessivas reformas de natureza flexneriana/giesiana, levou à ênfase ao domínio cognitivo e instrumental, com algumas das seguintes conseqüências: mecanicismo, biologicismo, assistência individual, especialização precoce, tecnificação do ato médico-odontológico, ênfase em Medicina/Odontologia curativa. (MOYSÉS, 2004, p. 34–5).

Mesmo levando em consideração toda essa gama de aspectos, Lucietto (2005) destaca a necessidade de reconhecer que muitos dos elementos da odontologia ―flexneriana‖ podem contribuir para melhorar os processos de trabalho dos cirurgiões-dentistas. De fato, a incorporação dos avanços em ciência e em tecnologia no processo de formação acadêmica desses profissionais tem permitido que os egressos dos cursos brasileiros ofereçam atendimentos com qualidade técnica muito boa, condizente com os que são oferecidos nos países ditos de ―primeiro mundo‖. Além disso, tendo em vista as transformações da sociedade contemporânea, em que conhecimentos são produzidos e disseminados cada vez mais rapidamente, o trabalho dos especialistas, por exemplo, torna-se indispensável ao tratamento adequado de muitos pacientes que apresentam necessidades especificas e que, por isso, requerem profissionais dotados de conhecimentos e de habilidades técnicas mais apuradas. Outro tanto de equipamentos e materiais permite até melhorar o desempenho clínico, propiciando diagnósticos e tratamentos cada vez mais precisos.

Esses aspectos, indiscutivelmente, agregaram valor à assistência odontológica; porém, precisamos refletir: uma vez que esta odontologia está acessível a apenas uma parte da população brasileira, outras abordagens, menos atreladas às técnicas, aos materiais e aos equipamentos sofisticados, poderiam contribuir muito para enfrentar os principais problemas de saúde (bucal) da população. Segundo Matos (2006) — que também reconhece a inegável contribuição da evolução tecnológica e científica para o campo biomédico —, todas essas conquistas não apagam o debate que tem início neste novo milênio sob o imperativo da ética e da qualidade de vida. Isso porque, para muitas doenças, gerais e bucais, que afetam as populações, o instrumental científico-tecnológico por si só não basta para responder à alta complexidade que as envolve. Assim, é preciso enfrentar o desafio de pensar a saúde na ótica do desenvolvimento e da condição humana, ressalta Matos (2006) que, com outros autores, afirma existir evidências indicando que a saúde está muito mais relacionada com o modo de viver das pessoas do que com os fatores biológicos e genéticos.

Ao pensar o processo saúde–doença nessa perspectiva mais ampla, Benetton (2002) afirma:

Sombras e virtudes, posturas corporais e hábitos, crenças, medos e culpas vão esculpindo o ser humano conforme o regime dos ventos. A doença pode ser vista dentro deste referencial. É possível estabelecer relações profundas entre enfermidades e curvas existenciais, entre o adoecer específico de um ser e sua biografia particular — tudo se expressa mutuamente [...]. Podemos considerar que, por trás de uma doença crônica, há um script de vida crônico expresso na síndrome em questão [...]. Também é possível somatizar saúde. (BENETTON, 2002, p. 144).

Cotta et al. (2007) também destacam a relevância das condições de desenvolvimento sobre o estado de saúde das pessoas. Para esses autores, as desigualdades sociais e a pobreza são fenômenos multidimensionais e dinâmicos que não se restringem aos aspectos socioeconômicos com que são normalmente identificados. Os responsáveis pela formação dos profissionais de saúde precisam, portanto, estar atentos à forma como esses âmbitos podem interferir na saúde dos indivíduos e das populações. É preciso aliar as competências dos trabalhadores de saúde às necessidades das diversas coletividades, considerando que o estado de saúde dos indivíduos resulta das trajetórias de desenvolvimento pessoal ao longo do tempo, conformadas pela biografia de cada um referida ao contexto social, econômico, político e tecnológico das sociedades nas quais tais trajetórias se desenvolveram.

Cabe salientar que os mesmos processos que determinaram a estrutura da sociedade são os que geram as desigualdades sociais e produzem os perfis epidemiológicos de saúde e doença. Pode-se afirmar que a saúde deve ser considerada como fenômeno produzido socialmente e que algumas formas de organização social ―são mais sadias‖ que outras (BARATA, 2006). Ainda assim, contraditoriamente, o médico e o dentista, dentre outros, têm sido preparados, basicamente, para tratar um paciente que não é considerado homem, mas apenas um corpo humano ou um conjunto de sistemas e órgãos, dentro da lógica flexneriana/cartesiana. A propósito, Sá (2001) faz uma reflexão sobre a crescente banalização da dor e do sofrimento alheio no setor de saúde, destacando práticas que acabam por facilitar os fenômenos de desvalorização da vida, tais como: a) fragmentação do relacionamento entre profissional e paciente — as tarefas são divididas em etapas a ser executadas por diferentes profissionais, evitando o contato com o paciente como ser integral; b) despersonalização ou negação das diferenças individuais — os pacientes são referidos não por seus nomes, mas pelo nome da doença ou órgão doente; c) obscuridade intencional na distribuição das responsabilidades — a organização não define, com clareza suficiente, quem é responsável pelo que e por quem; d) resistência a mudanças.

Acreditamos que muitas dessas práticas começam a ser desenvolvidas e sedimentadas ainda na formação do profissional. Nesse sentido, Valença (1998) observa como tem sido comum ouvir, nos corredores das faculdades e nas conversas informais entre alunos e entre professores, expressões do tipo: ―hoje apareceu um canal complicado‖, ―a reconstrução daquele dente destruído [cariado] ficou muito boa‖; fala-se como se não existisse um ser, um ―sujeito dono‖ de tais dentes ou de tais estruturas simplesmente ―anatômicas‖. E essa dicotomia — entre o ser humano e o seu corpo doente — parece dar maior importância às disciplinas profissionais, pois é delas que o cirurgião-dentista precisa ter domínio e

conhecimento para ser visto, tanto pela sociedade quanto pela maioria da própria classe odontológica, como um ―bom profissional‖.

Em seu cotidiano, entretanto, o cirurgião-dentista se defronta com um homem que tem um corpo que sofre e reage fisiologicamente a toda uma gama de influências concretas, do tipo emocional, cultural e moral, como salienta Pessoti (1996). Logo, os profissionais da saúde deveriam ser preparados para lidar com a complexidade e a totalidade, procurando estar sempre atentos à realidade e perceber as carências da população sob seu cuidado, o que demanda conhecer as características demográficas, epidemiológicas, culturais, socioeconômicas e políticas. Segundo Cotta et al. (2007), para cuidar bem é preciso conhecer, é preciso ver a comunidade de dentro; do contrário, as ações não passam de esquemas aprendidos na academia e reproduzidos de modo completamente acrítico e desvinculado das necessidades das pessoas. Para cuidar do indivíduo como um todo, isto é, de um sujeito inserido num contexto socioeconômico e cultural, na medida em que se reconhece que a saúde tem um conceito mais amplo que apenas ausência de doença, a crescente especialização dos profissionais da saúde se configura como um problema, ponderam Cotta et al. (2007). Isso porque, embora necessária, essa especialização não deve reduzir a saúde a seu aspecto negativo — inexistência de condições mórbidas —, desvinculando-a de seu contexto, como afirmam esses autores. É preciso romper a equivocada invencibilidade da assistência médica, passando-se a defender que a inclusão da arte da alteridade, isto é, o deslocamento do eu em direção ao outro, na formação em saúde, pode ser o caminho para alcançar a integralidade da atenção e, por conseguinte, superar as práticas tradicionais em saúde (STOTS; ARAUJO, 2004).

Todavia, na educação odontológica, a abordagem social dos problemas de saúde não causa grande entusiasmo nem tem prestígio entre os estudantes. O mesmo pode ser verificado entre os professores, diz Botazzo (2003). O que se observa é o desenvolvimento de conteúdos ligados fortemente aos ambulatórios da escola, ou seja, voltados às clínicas odontológicas. Nas palavras desse autor, mesmo que há muito se ouçam ―[...] os reclamos dos que pensam faltar ao cirurgião-dentista um pouco de sensibilidade social [...] o ambulatório [ainda] é o lugar onde certo tecnicismo é produzido e reproduzido‖; e só essa sensibilidade poderia retirar a ―[...] frieza dos procedimentos restauradores a que aparentemente o exercício da profissão o obrigaria [ao cirurgião-dentista]‖ (BOTAZZO, 2003, p. 17).

A formação odontológica tem sido definida por relações externas ao processo pedagógico. Conforme Lucietto (2005), o processo educacional e as práticas profissionais se estruturam com base em dado marco conceitual, fazendo-se necessário localizar sistemas de

ideias, valores e prescrições não explicitadas formalmente, mas que afetam educadores e educandos. Além do modelo de prática odontológica, outros elementos importantes que permeiam a formação profissional do cirurgião-dentista seriam: a estrutura social e econômica do país, as relações internas do processo de formação de profissionais de saúde, a ideologia dominante ao nível profissional e a estrutura do poder internacional. A formação do cirurgião- dentista é influenciada, então, por interesses nacionais e internacionais, como os da indústria de equipamentos odontológicos, materiais e medicamentos, bem como da ideologia profissional, que se encontra centrada na prática privada e por especialidades (VALENÇA, 1998).

Nas palavras de Figueiredo, Brito e Botazzo (2003, p. 754):

A ciência na área de saúde é quase sempre voltada para a testagem de hipóteses, testagem de novos produtos, de novas técnicas, cedendo muito facilmente, tanto no meio acadêmico quanto na prática cotidiana, à pressão das grandes indústrias de fármacos, materiais e equipamentos odontológicos.

Paula e Bezerra (2003) e Secco e Pereira (2004), também, destacam a força da influência dessas indústrias sobre a estrutura educacional de um curso de Odontologia e sua relação direta com as demandas do mercado, a prática profissional e, por consequência, a prática docente e o ensino de odontologia. Aliás, como observa Narvai (1994), o mercado passou a influenciar a prática e a educação odontológica desde a metade do século XX, quando o movimento do capital produziu e consolidou uma odontologia de mercado, caracterizada pela produção e pelo consumo privados de bens e serviços sob regulação do mercado. A falta de uma formação mais politizada na área — que considerasse os desafios da realidade brasileira e problematizasse o imaginário profissional — reproduz-se nos cursos de Odontologia, dificultando a participação nas políticas de atendimento público em termos de saúde bucal. Segundo Secco e Pereira (2004), esse espaço deveria ser ocupado pela saúde coletiva nas faculdades.

O fato é que, faz algum tempo, o modelo de ensino vigente tem sido seriamente criticado como ineficiente, ineficaz, iatrogênico e sem equidade por autores como Padilha (1998). A prevalência da técnica, da atenção individual e da ideologia liberal da profissão põe em dúvida a existência da real preocupação com a formação integral do aluno, não só para o mercado, mas também para a sociedade, como um cidadão que tem a responsabilidade social de promover saúde. E a formação ética, que deveria integrar, como conteúdo transversal, os programas dos cursos para gerar um profissional ―socialmente sensível‖ desejado pela profissão se torna mera abstração (PADILHA, 1998).

Para Weyne (1999), o ensino nas faculdades pode ser caracterizado como segmentado, havendo uma tendência a se produzir ―especialistas‖, pois os alunos são preparados para lidar com questões estritamente bucais e cirúrgico-restauradoras, quando se necessitaria do uso de novos conhecimentos científicos em condições multidisciplinares e transprofissionais. A maior parte das faculdades se mostra hesitante e resistente a promover mudanças curriculares para incorporar novos saberes e referenciais, o que — afirma Weyne (1999, p. 22) — ―[...] significa que ainda teremos que esperar um pouco mais, até que os futuros dentistas estejam em condições de oferecer um atendimento clínico sob a égide do paradigma de promoção de saúde‖.

A odontologia ainda se vê como profissão de caráter privado, ainda se baseia num passado recente de lucro fácil, ainda insiste em negar a realidade atual do ―mercado odontológico‖ e ainda se caracteriza pelo ―protesismo dentário‖ como preferência hegemônica pela substituição das estruturas anatômicas afetadas através de técnicas e materiais sofisticados (BOTAZZO, 2003). Silveira (2004, p. 53) acrescenta

―[...] os processos iatrogênicos, encontrando justificativa na visão fragmentada da falha dos especialistas da prevenção, como se todo dentista não tivesse antes que dominar o conjunto de saberes capazes de evitar ou diminuir a necessidade de procedimentos de alta complexidade e custo para o usuário‖.

A formação segundo um modelo de educação tradicional dificulta aos alunos a aquisição de subsídios que lhes permitam compreender os atos de saúde como estratégias de transformação da realidade.

Parece estar claro que o ensino odontológico carece de transformações. A abordagem individual e curativa deve dar lugar a uma perspectiva de educação embasada em amplas ações preventivas e promotoras de saúde, em uma dimensão social, com compromisso humanístico e ético, em um paradigma multiprofisional, multi e interdisciplinar e em atenção às demandas da sociedade. E, conforme poderemos verificar no próximo tópico, as propostas curriculares para a formação profissional de um cirurgião-dentista não apenas tecnicamente competente, mas também comprometido com os aspectos sociais, éticos e humanísticos do atendimento, são diversas. E não necessariamente recentes.