• Nenhum resultado encontrado

Vista-se da pessoa que quer ser

Capítulo 4 – Criar o caminho

1.1 Omnipresença do Medo

Ilustração II.3 – Compilação de títulos de jornais que diariamente modelam o nosso pensar e o nosso sentir.

Quando todos os dias nos vemos imersos em notícias dos horrores que, pelo mundo, o homem inflige ao homem; quando, todos os dias, nos confrontamos com situações de violência, mesmo que simbólica, nas nossas relações de

homem↔mulher adulto↔adolescente↔criança chefe↔subordinado↔colegas professores↔alunos↔colegas↔famílias serviços↔utente-cliente-beneficiário-consumidor Estado↔contribuinte-cidadãos...;

quando, todos os dias, nos vemos aflitos ao antever as consequências de notícias como aquelas cujos títulos aqui reproduzi (ilustração II.3); quando, todos os dias, em tantas áreas (na educação, inclusive), encontramos quem sempre esteja interessado ou seja só capaz de, secamente, descortinar e revelar as nossas falhas, mais do que

interessado ou capaz de reconhecer, estimular e divulgar o nosso valor; quando, todos os dias, vemos quem (qual vampiro de energia), julgue ser essa a única (e estranha) forma de resolver problemas e de encontrar o alimento de que, em si mesmo, carece, que herança nos está a ser transmitida e que herança estamos nós a transmitir? Somos e criamos filhos de quem, ou do quê?

São muitos os autores que nos dizem que vivemos numa cultura baseada no medo (Jeffers, 1991; Livsey & Palmer, 1999; Albisetti, 2003; Moffit, 2003a; Gil, 2005). E este medo, não sendo mais visto como uma activação emocional (isto é, pontual), em função

de um sinal de perigo, mas sendo antes um PERMANENTE ESTADO DE ALERTA (Machado,

2004:77), permite, pela sua manipulação, a obtenção de vantagens aos mais diversos níveis – desde o nível dos círculos restritos da vida privada, até ao nível da legitimação, controlo e reprodução de uma qualquer estrutura social, política e económica por alguns desejada (Machado, 2004:165).

“É melhor ser amado que temido ou o inverso? Respondo que seria preferível ser ambas as coisas, mas, como é muito difícil conciliá-las, parece-me muito mais seguro ser temido do que amado, se só se puder ser uma delas. (…) Os homens hesitam menos em prejudicar um homem que se torna amado do que outro que se torna temido, pois o amor mantém-se por um laço de obrigações que, em virtude de os homens serem maus, se quebra quando surge ocasião de melhor proveito. Mas o medo mantém-se por um temor do castigo que nunca nos abandona” (Maquiavel, 1976:89-90).

Sendo visto por muitos como o manual prático do déspota, mas sendo vivido, por muitos outros, como uma difícil realidade com que é preciso gerir o quotidiano, “O

Príncipe”, de Maquiavel, apesar dos quase cinco séculos de distância com que foi escrito, parece continuar a ser fonte de inspiração – tanto para detentores do poder político, como para a manutenção do poder, e dos poderes, em torno das classes e posições dominantes. Não foi, por isso, por acaso que escolhi aqui colocar este excerto. De uma forma muito directa, Maquiavel explica por que é melhor ser temido do que amado e como o medo de ser prejudicado pelos homens (que se considera serem maus), se disfarça na autoridade de um castigo infligido, ou na possibilidade e ameaça

de o vir a infligir. Ou, dito de uma outra maneira, como Maquiavel explica como medo gera medo.

Contudo, usá-lo aqui não significa que me pretenda circunscrever a uma reflexão de cariz estritamente político e social, tal como não significa que o procure usar para colocar só dentro da ordem das coisas públicas os eventuais beneficiários das vantagens da manipulação do medo. Muito embora acredite que os poderes mundiais, políticos e económicos (de muitos tipos e quadrantes), têm interesse em manter o ser humano naquilo a que Boff (1998:118) chamou a “situação de galinha (…) e no apagar

da sua consciência a vocação sacrossanta de águia”66, entendo também que público e

privado se espelham mutuamente e que, em qualquer sistema de interacção humana e social (por mais escondida que ocorra no espaço dos afazeres domésticos), não há algozes e vítimas, nem ganhadores e perdedores – do ponto de vista ecológico da dignificação e da construção do humano que aqui interessa considerar, quando alguém perde, todos perdemos e, mesmo que isso só se revele a longo prazo, as maiores vítimas dos algozes são os próprios algozes.

Prefiro, então, continuar a procurar referências que, do ponto de vista individual (e, por isso, também social), possam ajudar a reflectir sobre a responsabilidade de cada um em todo este processo; e se, ao longo deste texto, surgem conceitos como os de “sociedade”, “fenómeno social”, “controlo social*”, “constrangimento social”, etc., compreender que tais conceitos não têm só implícita a imputação de responsabilidades a um qualquer sistema ou grupo mais ou menos anónimos e indefinidos – como “a

instituição e a norma só existem na medida em que os actores as praticam e reproduzem” (Ferreira de Almeida, 1994:218), como os sistemas e os grupos são gerados (ou, pelo menos, alimentados) nos contextos sinérgicos do privado, também implicam a responsabilidade e a capacidade do fazer diferente de “cada eu”.

Deste modo, e porque acredito que uma investigação aplicada (ainda para mais desenvolvida na área da Educação de Adultos) precisa criar espaços de reflexão sobre a responsabilidade, decisão, e mudança individuais, procuro reforçar e manter presente

66 Para Boff (1998:113), a “galinha” expressa a situação humana no seu quotidiano, na dimensão de

limitações e sombras que marcam a vida, enquanto que a águia representa a mesma vida humana na sua criatividade, na sua capacidade de romper barreiras, nos seus sonhos, na sua luz.

uma das maiores lições que as Ciências Sociais me têm dado: o entendimento de que sou e como sou simultaneamente livre e condicionada, mas também o entendimento de que, quanto maior for a consciência do meu condicionamento, mais livre me posso tornar e, por isso, mais capaz de ser co-criadora da própria existência.

Assim, e apesar de, pela multiplicidade das interferências, não ser possível apresentar um quadro que cubra todas as situações, definições e relações do fenómeno do medo e do desenvolvimento humano, passo à apresentação das contribuições de alguns dos autores que mais me ajudaram a construir e situar esta questão nessa oscilação entre mentalidades individuais e imprinting cultural* – mesmo que, às vezes, esta distinção não queira significar mais do que o espírito com que, no momento, foi estabelecida.

Todos os nomes do medo

Relembrando, como já tive oportunidade de dizer na introdução desta tese, que estou a deixar de lado as situações patológicas de medo – tanto as que dão origem ao pânico e às fobias, como aquelas que, sob qualquer forma ou dimensão, movem quem exerce violência com o firme propósito de fazer mal (agressores, torturadores, violadores, assassinos…); relembrando também que só pretendo estudar aquilo a que chamei “medo da vida”, isto é, “medos muito correntes mas que dificultam a vida de quem os

sofre” (Marina, 2006:111), começo pelo princípio, isto é, começo pela consulta dos sentidos lexical e analógico da palavra medo.