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4 FINANCIAMENTO DA SAÚDE PÚBLICA E DIRECIONAMENTO DE RECURSOS NO ESTADO NEOLIBERAL: AS INTENÇÕES DA CONSTITUINTE SOTERRADAS

5 CRISE NOS HOSPITAIS UNIVERSITÁRIOS E EBSERH: PÓS-DEMOCRACIA E AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA ÀS AVESSAS

5.1 A OMS E O SEMINÁRIO “A FUNÇÃO ADEQUADA DOS HOSPITAIS UNIVERSITÁRIOS NO SISTEMA DE SAÚDE”

Em 1995, a Organização Mundial da Saúde (OMS) organizou um seminário com 22 países526 dos seis continentes para discutir a situação dos Hospitais de Ensino (ou Universitários). O resultado das discussões foi sistematizado no documento “The proper

function of teaching hospitals within health systems”, numa tradução livre, “A função adequada

dos hospitais universitários no sistema de saúde”.

Apesar do Brasil não fazer parte desse seminário, a análise das resoluções é de extrema importância, de forma que pode ser traçado um paralelo entre o que se debateu na década de 1990 e a atual configuração dos HUs do país.

Após o estudo individualizado da situação dos Hospitais Universitários em cada um dos países (documentos anexos ao texto oficial da OMS), o evento propôs a elaboração de uma estratégia comum visando auxiliá-los a concretizar suas funções nos sistemas de saúde locais527.

O conceito de Hospital Universitário adotado foi o de

centro complexo de cuidado à saúde caracterizado pelo: importante papel que desempenha na prestação de atenção terciária; o envolvimento no ensino e pesquisa relacionados ao tipo de atendimento dispensado; atração de alta concentração de recursos; a importante influência política que exercem e o alto custo528.

O documento considera as diferenças e abismos existentes entre os países – principalmente no que diz respeito à geografia, cultura e desenvolvimento econômico –, de forma meramente ementária, sem interpretar que esta multiplicidade de variantes traz impactos distintos na situação da saúde em cada Estado.

Assim, levanta-se o quantitativo populacional, PIB per capita, expectativa de vida, despesas com saúde (tendo como referência o PIB), despesas hospitalares (avaliada na porcentagem do gasto em saúde) e custo dos hospitais universitários também em relação ao PIB529. Outras questões são ranqueadas sem maiores aprofundamentos, a exemplo: taxa de crescimento populacional, população rural, mortalidade infantil, empregos no setor de saúde, número de leitos e treinamentos dos profissionais de saúde.

526 Albânia, Austrália, Benin, Colômbia, Coréia do Sul, Chile, China, Egito, Filipinas, França, Holanda, Indonésia,

Jamaica, Japão, Marrocos, Nigéria, Paquistão, Reino Unido, Suécia, Suíça, Tanzânia e Vietnã.

527 WHO. The proprer function of teaching hospitals within health systems. Paris: Institute for Health Policy

Studies, 1995, p. 2. Disponível em:

http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/63088/WHO_SHS_DHS_96.1.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 20 dez. 2018.

528 Idem. Ibidem, p. 2. 529 Idem. Ibidem, p. 4-5.

Os países participantes do Seminário concluíram que “a função primordial do Hospital Universitário é cuidar do doente”, ou seja, dedicando-se mais à cura do que necessariamente à prevenção, o que seria evidenciado pela disposição orçamentária, pois boa parte da receita seria aplicada no atendimento, enquanto um valor menor seria dedicado à pesquisa e ao ensino530.

Apesar do multifacetado conceito de saúde explicitado no Capítulo 3 deste trabalho, a OMS defende que os HUs existem para o atendimento de questões que exigem maior complexidade e uso de tecnologias, sendo os cuidados primários e secundários resguardados aos hospitais que compõem o sistema de saúde local531.

Denuncia-se que os HUs atraem muitas pessoas por conta da amplitude de especialistas, causando uma superutilização de profissionais e atendimentos que poderiam ser realizados em outros estabelecimentos. Nesse sentido, na década de 1990 já se pensava na imprescindibilidade da formulação de novas estruturas de organização e de novos tipos de tratamento aos HUs, bem como a observância adequada dos níveis de saúde e locais de atendimento532.

O documento insiste no questionamento à necessidade de treinamento dos médicos533 nestes espaços de atenção terciária, uma vez que poderiam ser realizados em outros locais. Para tanto, traz os exemplos do Paquistão, em que as doenças comuns são ensinadas nas unidades de saúde locais, não necessariamente dentro dos Hospitais Universitários, e do Chile, em que os estudantes visitam outras instituições além dos centros de tecnologia avançada534.

Define-se que a pesquisa não é uma atividade essencial a todos os hospitais, sendo em alguns países considerada, inclusive, um fardo, posto que poderiam ser desenvolvidas fora do ambiente do HU, tais como nas “universidades, na indústria farmacêutica, indústrias de alta tecnologia ou instituições especiais como o Instituto Nacional Francês de la Santé et de la

Recherche Médicale (INSERM) ou o Centro Nacional de la Recherche Scientifique

(CNRS)”535.

No caso do financiamento dos HUs, acordou-se que era fundamental uma cooperação entre os Ministérios da Saúde e da Educação536, devendo as verbas destinadas ao cuidado à

530 WHO. The proprer function of teaching hospitals within health systems. Paris: Institute for Health Policy

Studies, 1995, p. 16. Disponível em:

http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/63088/WHO_SHS_DHS_96.1.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 20 dez. 2018.

531 Idem. Ibidem, p. 17. 532 Idem. Ibidem, p. 17-19.

533 É recorrente a desconsideração do fato de que os Hospitais Universitários são importantes não somente à

formação dos profissionais da medicina, mas também da saúde, tecnologia e ciências humanas.

534 Idem. Ibidem, p. 19. 535 Idem. Ibidem, p. 21. 536 Idem. Ibidem, p. 20.

saúde serem dissociadas daquelas destinadas à pesquisa, facultada a esta última o custeamento por “financiamento estatal, fundações privadas, indústria farmacêutica, patrocinadores, etc.”537. A função social dos HUs é questionada quando se afirma que não deveriam assumir o ofício “de um orfanato ou refúgio para os que não têm”, evitando-se “os problemas médicos que são de natureza essencialmente social, simplesmente porque as instituições sociais responsáveis para lidar com esses problemas são inadequadas ou inexistentes”538.

O arquivo avalia que os custos com HUs são mais elevados do que com hospitais ordinários, representando nos países participantes, um gasto entre 0,1% (Marrocos) e 1,4% (Coréia do Sul) do PIB nacional. Recomenda-se a redefinição de prioridades políticas, sobretudo no tocante aos gastos com financiamento dos Hospitais e da saúde em sua completitude539.

De acordo com o que se definiu, um hospital universitário pode ou não fazer parte da estrutura universitária, isto é: a universidade pode ter um Hospital ou ser oficialmente afiliada. Para os participantes do Seminário, não importaria se público ou privado, pois os problemas seriam semelhantes e “seu status não seria algo importante, exceto talvez no caso do Chile, onde o status privado envolve uma seleção de pacientes e estudantes de acordo com critérios econômicos...”540.

Como síntese final, há a constatação de que as instituições em análise não cumprem a função atribuída, coexistindo as seguintes situações: (a) “HUs superlotados atendendo em todos os níveis, injustificadamente” e (b) “um sistema de atenção primária e secundária que não encaminha [aos HUs] os pacientes que necessitam de cuidados de nível terciário para os manter em si mesmos, em detrimento à saúde desses pacientes”541.

Conclui-se encorajando a existência de debates acerca dos Hospitais Universitários, inclusive com a proposta de proteção das funções destas instituições por meio de leis contra “interferências políticas”542, garantindo-se um espaço de diálogo e cooperação entre estas instituições e o resto do sistema de saúde, através da formalização do sistema de referência, introdução de arranjos que observem os níveis de atenção (evitando o curto-circuito, isto é, que

537 WHO. The proprer function of teaching hospitals within health systems. Paris: Institute for Health Policy

Studies, 1995, p. 21. Disponível em:

http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/63088/WHO_SHS_DHS_96.1.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 20 dez. 2018.

538 Idem. Ibidem, p. 22. 539 Idem. Ibidem, p. 22. 540 Idem. Ibidem, p. 24. 541 Idem. Ibidem, p. 26. 542 Idem. Ibidem, p. 25.

os níveis fossem pulados), criação de níveis de financiamento independentes, conscientização acerca dos níveis de atenção e a relação entre estes543.

Ainda que necessário, causa estranheza a forma de condução e as conclusões advindas do debate. Mais uma vez, a “saúde fiscal” é posta acima do bem-estar da população e do forçoso equilíbrio entre direitos sociais que este demanda. O movimento internacional de contrarreformas – protagonizado pelo Banco Mundial com caráter específico e direcionado às privatizações, mercantilização e empresariamento da saúde – caracterizado nos capítulos anteriores, indica que, ao invés de compreender as dimensões e fatores que qualificam os desafios à realização do direito à saúde nos países, há uma tendência de uniformização gerencial baseada em análises quantitativas dos gastos, visando, prioritariamente, sua redução.

Além disso, resta descaracterizada a função social dos hospitais-escola, em específico os HUs. O documento constrói a noção de cisão entre o que seria espaço e propriedade dos HUs e das Universidades, quando, em verdade, deveriam ser considerados pelo todo, tendo em vista a importância acadêmica e social dos Hospitais Universitários.

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