• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4: O CONTEXTO DE TRABALHO, SIGNIFICADO, POSSIBILIDADES

4.2 A construção das relações sociais e dinâmica do cotidiano de trabalho no CAPS

4.2.8 Operacionalização do trabalho

Quanto às dificuldades enfrentadas para operacionalizar o trabalho, encontrou-se como principal ponto de impasse a rede, que por vezes está aprisionada em julgamentos morais que inviabilizam a execuções de ações integrais aos (às) usuários (as) de álcool e outras drogas; seguida da ausência de trabalho em equipe em alguns casos, assim como também percebe-se a necessidade de aumentar a oferta para que mais pessoas possam ser inseridas nos serviços especializados.

A entrevistada Penélope vai destacar que processos de trabalho realizados de forma desarticulada e desconsiderando o fazer de outro profissional, dentro da equipe, pode provocar desgaste e rompimento de ações de saúde que vislumbrem o indivíduo em sua integralidade.

[...] porque quando você trabalha com uma visão, você estabelece uma rotina, você cria uma dinâmica de trabalho onde no CAPS precisa ter o aspecto de equipe; se ela não existir, ela elimina o trabalho, então o que eu sinto muito é justamente ainda ter profissionais que não trabalham com essa visão de equipe [...] (PENÉLOPE, 2016).

A entrevistada citada no depoimento anterior questiona que em alguns episódios vivenciados dentro do serviço sentiu falta da articulação do trabalho em equipe e até mesmo de comunicação. Isto significa que não há como estabelecer um cuidado contínuo e integral sem exercer a comunicação entre os profissionais da saúde, tanto da mesma categoria como das distintas profissões.

Outro ponto importante segundo o entrevistado “Tom, 2016” são as questões logísticas e burocráticas também atrapalham o desenvolvimento mais célere das atividades.

A rede familiar também foi destacada como um elemento importante para o processo de reabilitação social dos (as) usuários (as). Neste sentido, Silva et al. (2012) demonstram que a origem da demanda, em 2010, era composta prioritariamente por meio dos encaminhamentos realizados por outras instituições, que corresponderam a 33, 91%, seguido de 15,09% da demanda espontânea, quando o (a) usuário (a) decide livremente pelo tratamento; enquanto que a família correspondia a 11,06%, nesse aspecto podemos perceber que em consonância com o depoimento a seguir que a família é uma das redes de apoio para o início e continuidade no tratamento: “[...] a rede só precisa que a família dê um suporte para que essa pessoa não fique só, porque ela está passando por um processo muito difícil, e sozinho tudo é mais difícil” (LULUZINHA, 2016).

A família é apontada por vezes como um dos fatores de maior influência na iniciação do uso de drogas, contraditoriamente, ela também é um dos determinantes no tratamento e recuperação. Neste sentido, Payá (2011) entende que o comprometimento da família durante o período de tratamento tem gerado êxitos nos resultados almejados. É no âmbito familiar que a rede de inter-relações, valores, crenças, afetividades se manifesta, motivando ou desmotivando a recuperação dos (as) usuários (as) de drogas.

Outros aspectos relevante para a operacionalização do trabalho segundo a compreensão dos entrevistados estão: os recursos governamentais destinados as políticas sociais, a rede intersetorial e o trabalho multiprofissional, conforme retratam os depoimentos a seguir.

[...] precisaria mais recursos financeiros para investimentos, [sic] para que tivesse sua melhor qualidade de estrutura, de materiais; mesmo para eles, aqui é tudo muito sucateado, quando tem, ou então é pouco; falta muitos recursos para o nosso trabalho e para que a gente possa fazer algo mais qualificado. E falta também o entendimento de um trabalho em rede, herança da saúde individualizada, e também tem uma contribuição forte da saúde privada, aquela atenção clínica; [...] é que essas pessoas não sabem trabalhar juntas, e aí essa ideia de multiprofissionalidade, interdisciplinaridade é algo muito novo; a nível de rede a gente sente mais dificuldades ainda [...] (CAILLOU, 2016).

[...] a gente trabalha numa rede que nem sempre essa está bem amarrada, por exemplo, o dependente químico sofre muita discriminação, e se usuário morador de rua, quando a pessoa fala: “não, é depende químico vá pro CAPS”, às vezes nem é depende químico, às vezes é hipertenso, diabético; têm outras questões que envolvem a vida, às vezes que ele quer fazer um tratamento de dentes, fazer uma avaliação oftalmológica, não tem nada a ver com dependência química, mas tudo eles querem tratar aqui; e uma outra coisa também que atrapalha o nosso trabalho é o indivíduo terminar querendo usufruir do CAPS pra outras questões que o CAPS não tem, e não é uma atribuição do CAPS; [...] acha que é um centro de convivência, não que aqui não seja uma das atribuições, mas não é a principal; [...] o usuário dependente químico grave, ele tem que ter as três características básicas: dificuldade de lidar com dinheiro, com as responsabilidades da vida e vínculos familiares e sociais; é um indivíduo que não consegue pegar em dinheiro, que quer comprar droga. [...] E volta para cá a questão social; às vezes eu quero tratar um indivíduo, mas ele está na situação de rua, aí vou, ligo para o abrigo, não tem vaga no abrigo, aí ele vem para o CAPS com intenção de se tratar, mas quando sai daqui vai para a rua, encontra o uso na rua, situações de uso, de violência, de vulnerabilidade e termina se expondo e recai (CLOVER, 2016).

Por esse ângulo, não há como exercer de forma eficaz a produção do cuidado sem contextualizar as particularidades-singularidades-universalidades que compõem a vida dos sujeitos, sejam nos aspectos políticos, históricos, sociais, culturais, de modo que as repercussões do seu modo de vida exercem efeitos sobre o seu cuidado em saúde, isto é, práticas e ações.

rede, intersetorial, justamente pelo estigma e preconceito que pessoas usuárias de drogas sofrem na sociedade como um todo; e nos demais serviços, por ser usuário ou usuária de drogas, o indivíduo perde os outros aspectos de sua sociabilidade, o cuidado integral não é realizado, e esse fator agrava ainda mais a sua condição de vulnerabilidade.

Como retrato dessa discussão, a pesquisa de Silva et al. (2012) denominada “Estratégias de atenção aos usuários de crack e outras drogas na rede de atenção primária à saúde no município de Aracaju/SE” evidenciou que 68% dos funcionários das equipes de saúde analisadas declaram que sentem limitações em relação à capacidade pessoal de lidar com esse público em específico. Como apresenta o depoimento da entrevistada da pesquisa de Silva et al. (2012, p. 164): “USF não tem estrutura nem profissional capacitado para lidar com esses usuários (P5) ”.

Esse breve retrato da realidade atual demonstra que o medo, assim como o preconceito contribuem para que hajam encaminhamentos antecipados sem que ocorra uma escuta mais precisa sobre a história desse (a) usuário (a). Silva et al. (2012) vão destacar, ainda, que 17% dos entrevistados vão afirmar a inexistência da integração UBS e CAPS AD, outros 59% dos participantes vão afirmar que a maior parte da articulação entre esses dois serviços ocorre por meio de encaminhamentos, contatos telefônicos e visitas institucionais. Citou-se ainda que a ausência de intercâmbio entre as instituições vem ocorrendo pela dificuldade de realização da referência e contra referência, que seria um feedback da situação atendida de forma adequada.

A esse respeito vale pontuar que nessa mesma pesquisa os autores identificaram que 62% dos profissionais do CAPS AD que atuavam naquele ano também se declararam despreparados para lidar com a temática, e nesse aspecto perceberam-se “[...] reduzidas oportunidades de vivências teórico-práticas no ensino superior e de educação continuada, como as capacitações ” (SILVA et al., 2012, p.170-171). Nota-se a falta de investimento em educação permanente e do apoio institucional para esses profissionais que estão na ponta dos serviços de atendimento a usuários (as) de álcool e outras drogas.

Outro ponto importante citado pela entrevistada “Clover, 2016” na pesquisa atual é a falta de suporte para o momento pós-tratamento; em sua opinião, e como constatado na literatura, há uma escassez de serviços que contribuam com esse processo, e quando há, não existem vagas suficientes para receber a população, o que torna o tempo de espera muito longo e prejudicial, pois fragmenta a continuidade do tratamento. Destaca-se justamente essa contradição vivenciada no contexto brasileiro, em que há um investimento financeiro para o tratamento, mas pouca atenção para prevenção e cuidados posteriores à passagem desse

indivíduo pelo CAPS. Aponta, ainda, como proposta a construção de redes de políticas sociais que oportunizem a vivência dessas pessoas como protagonistas de sua história, mesmo que a decisão seja por continuar um uso moderado de alguma SPA. “[...] Se isso não acontecer, ele tem sérios riscos de recair e ficar entregue ao fenômeno anacrônico da invisibilidade social, despatriado da sua história” (SILVA, 2011, p. 38).

É preciso pensar a política para além do alcance daqueles que estão em condição de dependentes químicos; a esfera da prevenção articulada às políticas sociais com enfoque na intersetorialidade; o preparo acadêmico dos profissionais das diversas áreas, porque o (a) usuário (a) é também usuário (a) das demais políticas públicas; a capacitação continuada, que pode ser estabelecida pela educação permanente; a troca de experiências e saberes entre os profissionais, no processo de tratamento, para que o (a) usuário (a) passe a ter acesso necessário às políticas e no momento de sua desvinculação do CAPS.

O trabalho interdisciplinar e intersetorial tem a capacidade de amplificar o “cuidado”, além de alargar as possibilidades para que o indivíduo decida quais as suas necessidades de saúde, o que os torna sujeitos políticos ativos, que contribuem para o fortalecimento da rede.